segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

HOMOSSEXUALIDADE EM DEBATE: a dialética moral.



Recentemente tivemos uma palestra em nossa escola sobre o tema da homosexualidade, promovida pela Associação Russana da Diversidade Humana e pela Secretaria Estadual de Políticas públicas para o público LGBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais). A palestra aconteceu por ocasião da realização da quarta parada regional pela diversidade humana. Evidentemente, é um tema e um evento que causam muitas reações e debates polêmicos nos diversos espaços da sociedade. Em todo lugar é assim, de um lado o público LGBTT e simpatizantes das causas trazidas pelo movimento e do outro lado os opositores, defensores de uma moral que vê a homossexualidade como um erro ou um mal. Essa oposição dialética existe porque, aparentemente, há sempre no meio das polêmicas dois discursos opostos que tentam se afirmar como verdadeiros. É preciso, no entanto, entender e separar bem esses dois discursos implícitos nas polêmicas que giram em torno do tema da homossexualidade, para, a partir daí, perceber que são duas formas de compreensão e discursos que não podem e não devem ser "misturados"...


Fundamentalmente, diria que há um discurso CIVIL e outro MORAL. O discurso moral nos faz olhar para a homossexualidade do ponto de vista do certo ou do errado. Já o discurso civil nos impele a olhar o tema a partir do ponto de vista dos direitos. Como eles se misturam e se contrapõem a ponto de gerar tantas divisões e, em alguns casos, a ponto de causar tantas agressões? Aprofundemos, como exemplo, a polêmica questão do, erroneamente chamado, "casamento gay"...

O ser humano é naturalmente lançado para a relação interpessoal, seja lá de que forma essa relação se manifeste. Aristóteles já dizia que o homem (antropos) é naturalmente político, naturalmente social e sociável. Historicamente, a necessidade de sociabilidade foi sendo cultural e diversamente construída. E não foi diferente no âmbito da cultura ocidental em que vivemos e habitamos, profundamente marcada pelo cristianismo e, consequentemente, por seu ethos (conjunto de valores morais). É por isso que a compreensão de união construída na cultura ocidental está fundamentada sob o conceito de "casamento", elaborado pela moral judaico cristã. E enquanto instituição moral judaico cristã o casamento é uma expressão de união fundamentalmente heterossexual. Exatamente por isso, particularmente, penso que o chamado "casamento gay" é incoerente e desrespeitoso com os próprios homossexuais...

Porém, há um outro aspecto da expressão humana de união que, na proposta desta reflexão, parece apontar para além da compreensão moral, que é o de união civil. Nesta, qualquer cidadão ou cidadã ao se unir com um outro ou outra garante para si determinados direitos civis, como a partilha de bens, entre outros... E é a partir desta compreensão civil de união que o público homossexual reivindica para si o direito de união. Porém, como foi dito, essa dialética compreensão nem sempre é tão claramente distinta, principalmente porque a própria compreensão de direito civil está fundamentada na compreensão de direito natural, onde o ser humano é considerado natural e biologicamente homem e mulher, e o debate se aprofunda mais, porque toca na própria essência da compreensão do conceito de "humano"...

O que é ser "humano"? É possível uma resposta que não reduza o ser humano a apenas um aspecto, seja ele biológico, social,  moral ou religioso? Mais ainda: é possível uma resposta que não implique confusamente os diversos aspectos? Acreditamos que sim, principalmente se reconhecermos que cada aspecto tem seu limite, exatamente porque o que parece definir essencialmente o ser humano é mais do que o que o reduz ao puramente biológico, social, moral ou religioso... Porque, no fim das contas, somos mais do que aquilo que tenta nos definir.

Voltemos a questão da homossexualidade. Para além das definições biológica, social, religiosa e moralmente construídas a pessoa com orientação homossexual sempre estará para além daquilo que tente a definir, exatamente porque, antes de ser homossexual, ela é humana. A afirmação moral religiosa que está por trás da argumentação de que a homossexualidade é biologicamente errada e incoerente, é tanto limitada quanto a afirmação de que a homossexualidade é natural ou biologicamente adquirida. As duas concepções tem seus limites (porque são reducionistas) e esses devem ser reconhecidos quando se dispõe a refletir, dialogar e debater sobre o assunto... Foi o que parece ter feito o Papa Francisco, líder espiritual da maior instituição religiosa/moral do mundo, ao afirmar que a Igreja não deve "interferir espiritualmente" na vida das pessoas de orientação homossexual. Ele reconheceu que, apesar de moralmente contra, a Igreja deve assumir seu limite e, assumindo seu limite, ser o que define sua essência: testemunhar e anunciar o amor a toda pessoa humana.

Particularmente, como cristão, é exatamente isso que penso e nisso que acredito. Tenho muitos amigos e conhecidos de orientação homossexual. Penso que não preciso concordar com suas orientações para amá-los. O que posso fazer é reconhecer meu limite em compreender profundamente as razões das diversas manifestações de sua humanidade. E, mesmo assim... e, talvez por isso mesmo, acolher o misterioso sentido da existência da vida humana que é maior do que nós mesmos.


José Wilson Correa Garcia é blogueiro e educador.
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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A ESPERANÇA POLÍTICA DO ADVENTO

Não há maior incoerência entre os cristãos de hoje do que pertencer a uma religião que não o faz olhar para as injustiças e desigualdades da sociedade em que se vive. Mais ainda, é anacrônico pensar que posso viver uma experiência de fé tão pessoal sem me comprometer com a construção de um mundo melhor, de um país melhor, de uma cidade melhor, de um bairro melhor, de uma família melhor... Exatamente por isso, a fé é uma opção Política, no sentido verdadeiramente grego (penso que não preciso esclarecer seu sentido verdadeiro, suponho que o bom entendedor já o consiga fazê-lo, caso contrário não precisa continuar lendo). E mesmo sem conhecer os gregos, Jesus de Nazaré, seu projeto de vida e sua missão partem de uma experiência fundamentalmente de fé-comprometida e, por isso mesmo, Política.
Há muitas inspirações bíblicas que afirmam isso, entre elas a pergunta desconcertante presente na Carta de Tiago: “...se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, do que adianta isso?” A vida do próprio Jesus pode nos ajudar a esclarecer o sentido verdadeiro daquilo que constantemente é chamado e narrado pelos textos bíblicos como “obras”. Sim, Jesus poderia somente curar feridas e doenças, somente oferecer acolhida a quem não tinha nada, poderia somente distribuir bens aos muitos pobres e miseráveis de seu tempo, mas ele foi além disso... Suas obras são marcadas por uma opção Política. O leproso curado é convidado a se apresentar àquelas instituições e àqueles que o afirmavam como socialmente impuro. À “pecadora” perdoada é devolvida a dignidade como mulher, esquecida pela cultura machista e pré-conceituosa. E tantos outros exemplos...
Para Jesus cada situação de “pecado”, dor e sofrimento escondiam uma raiz muito mais profunda: a injusta e a desigualdade. Raiz que não era possível ser extirpada definitivamente somente com a boa vontade de “obras” paliativas, ou como diria hoje, de “obras” assistencialistas. De que adiantaria perdoar a “pecadora” sem denunciar o falso moralismo religioso e social que gera e multiplica o verdadeiro pecado no mundo? De que adiantaria dar esmola sem lutar por uma sociedade onde não houvesse necessidade de se pedir para viver. É nesse sentido que uma religião, uma fé e uma experiência de Deus que não me torna politicamente comprometido, é morta, vazia e se converte em adereço, em enfeite. Por isso, Jesus foi a chegada de um novo tempo marcado pela esperança, construtora da Justiça e da Igualdade, contra toda injustiça e desigualdade política (social e religiosa). Jesus foi uma novidade, um adventus, palavra latina que significa “chegada”, “chegar a”...
O ano do calendário litúrgico cristão começa com o Tempo do Advento, exatamente as quatro semanas (representadas na simbologia das quatro velas) que antecedem o período natalino. Para muitos é um tempo de alegria assistencialista, seja por causa dos presentes na árvore de natal, seja por causa da presença e imagem da criancinha branca de olhos azuis no presépio. Para poucos, o Advento é um momento para se renovar a esperança política... por que, mesmo contra toda desesperança (no mundo, no Brasil, na cidade, no bairro e na família) Deus, ainda, insiste em revelar seu filho como fonte e anúncio da Justiça e da Igualdade, que supõe denúncia contra toda injustiça e desigualdade...

José Wilson Correa Garcia, blogueiro e educador.
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sábado, 23 de novembro de 2013

EU MAIOR

Dentro de cada um de nós se encontra, mais ou menos escondido, um desejo de infinito, um desejo de compreensão daquilo que nos parece estar para além da banalidade e superficialidade de tudo. Há momentos em que experimentamos algo que parece nos levar para além. É quando sentimos que as amarras que nos prendem a esse mundo contingente se desprendem e o mistério se escancara nos jogando para uma busca irresistível e inevitável de algo, seja a felicidade, seja a transcendência, seja a justiça, seja a verdade... Encontramos os meios, uns na Arte, outros na Filosofia, outros na Ciência e outros ainda na Religião...
No mundo em que nós vivemos hoje, nunca foi tão propício a busca pelo infinito de sentido, há muitas mensagens, há muitas propostas, há muitos caminhos, há muitas verdades... Mas qual é a certa?  Qual é a verdadeira? Todos e, ao mesmo tempo, nenhum... E isso pode parece um pensamento relativista, mas não é. Todos porque cada uma tenta oferecer, mais ou menos e da sua forma, as respostas necessárias. Nenhum porque apesar da tentativa, no fim das contas, estaremos sempre a mercê de um anseio que não pode ser preenchido com qualquer resposta que achemos aqui... Não constitui isso a suprema angústia do homem/mulher modernos?! Em todo caso, podemos conhecer melhor as muitas opções, os muitos pontos de vistas, as muitas verdades...

“EU MAIOR” é um filme longa metragem, produzido em formato de documentário, que pode ajudar, pois traz uma reflexão atual e contemporânea sobre autoconhecimento e busca da felicidade, através de entrevistas com personagens que são expoentes de diferentes áreas, incluindo líderes espirituais (como a Monja Coen e o Teólogo Leonardo Boof), intelectuais (como Rubem Alves), artistas (como a Letícia Sabatella) e esportistas (como Waldemar Niclevicz, primeiro brasileiro a escalar o Monte Everest). Com perfis bem distintos, os entrevistados têm em comum a disposição de compartilhar perguntas, respostas, e experiências de vida que ampliaram suas percepções de si e do mundo. Vale a pena ser assistido, vale a pena ser experimentado...

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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

SOBRE A MORTE E O MORRER - Rubem Alves


O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de 
um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...” 

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...” 

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.
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domingo, 16 de junho de 2013

O PARAÍSO - Rubem Alves

Dizem os fundamentalistas... Ah! Você não sabe quem são eles. Vou explicar. Fundamentalistas são pessoas muito religiosas (se católicas, protestantes, muçulmanas ou judias pouco importa, pois todas pensam do mesmo jeito). Elas pensam que Deus é dono de um jornal. Não só dono como também redator-chefe, repórter e linotipista. Nesse jornal, que se chama O Correio Divino, tudo sai diretamente da pena de Deus, os editoriais, as reportagens, os artigos, os obituários, com a devida autenticação dos carimbos do cartório dos anjos. Por essa razão, tudo o que é ali publicado tem de ser acreditado tintim por tintim, nos seus mínimos detalhes: Deus não espalha boatos falsos, só para aumentar a venda. O Correio Divino publica só o que aconteceu de verdade, não importa quão fantástico possa parecer; para Deus tudo é possível, como o portento de Josué, que fez parar o Sol no meio do céu, e o do profeta Jonas, engolido e vomitado por um peixe, depois de gozar de sua hospitalidade visceral por três dias.
Pois eles, baseados no tal jornal, afirmam que Deus plantou um jardim maravilhoso há muito tempo, quase 6 mil anos, muito longe, lá pelas bandas do Iraque. Por um desentendimento entre Deus, o casal de jardineiros e uma cobra, Deus expulsou os dois de lá e fechou a porta do Paraíso, que nunca mais foi achado. Por lá, hoje, só se acha areia, guerra e petróleo, e dizem os entendidos que foi isso que restou do jardim de Deus, transformado em óleo preto por artes do Demo.
Acho um desperdício. Se o que Deus queria era só plantar um paraisinho, por que gastar tempo e energia fazendo um mundo tão grande, tão bonito, o Rio Amazonas, o Himalaia, o mar, as praias com coqueiros, os riachinhos nas montanhas, o Pantanal e o Lago de Como, que é onde estou agora? Teria sido muito mais lógico fazer um mundo do tamanho do jardim, seria mais fácil tomar conta, e assim tudo caberia num asteróide, como aquele onde morava o Pequeno Príncipe.
Claro que isso tudo que falei é brincadeira, pois não acredito em nada disso. Eu leio os textos sagrados como quem lê poesia e não como quem lê jornal. Prefiro pensar que Deus é poeta a imaginá-lo como dono de um jornal. Existirá ofensa maior para um poeta que perguntar se o seu poema é reportagem?
Sendo esse o caso, posso bem sonhar que Deus não fez um Paraíso só, ele fez muitos, tantos quantas são as suas criaturas, para cada uma delas um Paraíso diferente, e os espalhou pelo mundo inteiro. Em volta de cada pessoa existe um Paraíso diferente do seu, como se fosse uma bolha transparente. Você já viu?
Não. Você nunca viu. Sugiro consultar um oculista, alguma coisa deve estar errada com os seus olhos, você não está vendo direito. Diagnóstico sugerido pelos mesmos poemas sagrados, que atestam que o primeiro dano do pecado foi estragar nossa visão. Com o que concorda Alberto Caeiro, oftalmologista de renome, que diz que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. O mundo está cheio de cegos com vista perfeita.
Quem oferece colírios curativos para olhos cegos (muito embora só sejam cegos para o belo, tendo vista muito boa para o feio!) é um místico medieval, Ângelo Silésio, que escreveu num dos seus poemas: Quem, dentro de si mesmo, um Paraíso não for capaz de encontrar, não será capaz também de, um dia, nele entrar...
Não quero fazer inveja a ninguém, mas eu estou no Paraíso, aqui na Itália, num castelo, às margens do Lago de Como, cercado de montanhas, que eu vejo agora através da janela do meu quarto enquanto escrevo. São três e meia da tarde, o Sol brilha forte, o castelo está circundado de parques, mais de dez quilômetros de caminhos pelos bosques de coníferas altíssimas, ninféias, fontes com repuxos, o cheiro da resina dos pinheiros vai até o fundo da alma, o silêncio só é quebrado pelo apito dos barcos lá longe e pelo repicar do sino da igreja que acabou de bater. Bateu também dentro de mim uma saudade não sei de quê, eu sou uma saudade imensa cercada de carne por todos os lados...
Fiquei imaginando Deus, andando pelos caminhos onde eu andei, no vento fresco da tarde, do jeitinho como diz o texto sagrado. Ele deve ter sentido a mesma coisa que eu senti: quanto maior era a beleza, maior também era a tristeza. A beleza, em solidão, é sempre triste. Beleza solitária dá vontade de chorar. Para ser boa, a beleza exige, pelo menos, dois pares de olhos tranqüilos se olhando, dois pares de mãos amigas brincando, e bocas de voz mansa sussurrando...
Acho que foi naquele momento, quando Deus sentiu tristeza ao ver a beleza, que ele entendeu por que Adão estava tão deprimido: deuses e homens são muito parecidos... E foi então que ele aprendeu – pois Deus também aprende – que não é bom que o homem fique só. Fez dormir Adão, e ordenou que aquilo que ele sonhasse, aquilo mesmo acontecesse. E ele sonhou com dois olhos tranqüilos, duas mãos brincalhonas, e uma voz mansa... E assim nasceu a mulher, o sonho mais belo do homem, para trazer alegria ao Paraíso...
Fico mesmo é com dó de Deus. Os entendidos, que privam de sua vida íntima, teólogos, clérigos, papas e cardeais, dizem que não devo me preocupar, pois Ele está sempre em boa companhia, tem mãe puríssima, que nasceu sem pecado. É um filho obedientíssimo, que sempre faz o que lhe é mandado. Dizem que isso basta para a felicidade de Deus.
Discordo. Sem o olhar dos olhos apaixonados, sem o toque das mãos brincalhonas, sem o som da voz mansa, nem Deus pode se sentir feliz.
Essa é uma felicidade possível aos homens. Mas, e Deus? Andando sozinho pelo jardim. Coitado! Tanta beleza. Tanta tristeza...
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quinta-feira, 6 de junho de 2013

O SILÊNCIO DA BORBOLETA...

Há dias em que tento silenciar e há silêncios que são mais incômodos que qualquer barulho. Quando o interior não quer fazer silencio não há nada que faça aquietar a alma... Ela sempre deseja ir além do corpo, que parece limitá-la como se estivesse presa a ele, como se quisesse libertar-se dele. Tem gente que diz que o corpo é a prisão da alma, como se fossem duas coisas que pudessem se separar. Eu, particularmente, não acredito que Deus seria tão imperfeito ao ponto de me dar uma individualidade tão volátil ao ponto de separá-la. Não! Creio que o ser humano é uma unidade e uma individualidade perfeitamente harmônica e indivisível, mesmo que às vezes essa harmonia não seja perfeitamente vivida por causa dos barulhos e ruídos, sejam os de fora ou os de dentro.
Em certos instantes a vida me presenteia com a possibilidade de transformá-la a partir do silêncio. São momentos raros, às vezes é uma brisa suave que sopra, outras um pousar de uma borboleta, outras vezes um beijo e um abraço sincero de quem se ama. O fato é que o silencio que transforma sempre me joga pra dentro de mim mesmo e depois me lança pra fora ao encontro também de mim mesmo. Encontro-me aqui dentro, mas também ali onde minha vida se converge a todos e a tudo.
Lembro que em 2002 fiz um retiro espiritual com os jesuítas, em uma ilha na cidade de Itaparica – Salvador, na Bahia. É a experiência chamada Exercícios Espirituais Inacianos, que podem ser vividos em 30 dias corridos. E foi assim, trinta dias inteiro rodeado por um silêncio absurdamente transformador. Recordo que nos primeiros dias era quase doloroso silenciar, deixar o meu tempo se transformar no tempo de Deus. Eu queria tudo muito rápido, logo... Esquecia que tinha 30 dias pela frente pra aprender a calar. E foi com muito custo e, evidentemente, muita paciência que fui aprendendo aos poucos a falar para calar...
Hoje é difícil eu cavar tempo para fazer novamente aquela experiência transformadora de silêncio durante 30 dias. Mas ela deixou marcas tão profundas em mim que o silêncio se tornou uma necessidade cotidiana. Descobri que as transformações que dão verdadeiramente sentido acontecem no silêncio, exatamente como a metamorfose do casulo que carrega a larva precisa de silêncio para transformar-se em borboleta... Depois de transformada, a borboleta entra em um ritmo frenético. Porém, ela não esquece que necessita do silêncio... é o que vemos sempre que uma borboleta está pousada, ela apenas – e por necessidade vital – silencia, fica imóvel, as vezes movimentando bem lentamente suas asas acostumadas ao ritmo louco de sua curta vida... Assim também acontece comigo. Adélia Prado expressa tudo isso do seu jeito simples e profundo quando afirma: “Uma borboleta pousada ou é Deus ou é nada”.

José Wilson Correa Garcia - em um desses silêncios qualquer...
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terça-feira, 5 de março de 2013

AMOR - Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

MINHA VIDA, MEU AMOR...

Dizem que a Vida
só é possível de ser vivida compartilhada.
Não gosto de pensá-la – a Vida –
apenas como um instante de troca
ou doação, que seja...
Muito menos de vivê-la
como um hábito de encontros e desencontros,
de reencontros e despedias,
de desejos doados e vazios preenchidos...
Não! A Vida não é apenas isso,
a Vida é tudo isso,
e mais um pouco,
muito mais...

Desejava existirem palavras possíveis
de preencherem vazios imensos,
aqueles que nos alcançam
como um abraço apertado de dor,
onde o silêncio nos beija
como a única possibilidade
de uma Vida vivida com paixão...

Conheci vastos mares de silêncios e solidões.
Andei por caminhos que não se acabam,
e ainda ando, com os pés descalços,
mesmo que muitos digam que é em vão...

Sonhei com as flores do campo
repletas de belezas,
sem saber onde pisar ou como colher...
Chorei e sorri sozinho,
com Deus e sem Ele...

E antes de esta mesma Vida ter-me desfeito,
naquele silêncio que se dissolve nas palavras,
conheci a importância de falar para calar.

Foi então que entendi
que a saudade é apenas uma palavra...
Uma palavra carregada de sentido,
cheia de carne e sangue.
E que o Amor
é aquela força transformadora
que nos tira de dentro de nós mesmos
para nos jogar dentro de tudo,
e nos transformar em absolutamente tudo...

E foi assim,
que conheci uma vida cheia de sentido.
Conheci o Amor, meu Amor, Minha Vida...
Aprendi que na sua fragilidade
é preciso respeitar o que o silêncio grita,
e chorar junto quando for preciso...
E mesmo sem saber como,
ou onde, e a que distância,
cuidar para que o Amor e a Vida
não se percam no esquecimento de uma solidão morta,
mas que sejam cuidados a cada momento de encontro
simplesmente para que sejam eternos enquanto durarem...



José Wilson Correa Garcia
Canoa Quebrada, Ceará, Brasil - Num desses verões, sentado na varanda, em um fim de tarde, quando o vento sopra mais misterioso e o céu se converte num vermelhidão de sentimentos...
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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

HOJE PENSEI MUITO NA MINHA INFÂNCIA

Hoje pensei muito na minha infância. E lembrar-se dela me fez recordar, isto é, fiz passar novamente pelo coração, a verdade de que a Vida é realmente um mistério! Sim, lembrei que não tinha preocupações, que tudo parecia ser tão fácil, exatamente porque quase tudo não dependia simplesmente de mim. Lembrei que não tinha cerimônias com muitas coisas, por exemplo, quando comia bolacha (ou biscoito) amassado na minha tigela de café com leite. Ou quando corríamos com os pés descalços enquanto mamãe gritava o nosso nome chamando pra tomar banho, porque o horário de ir à escola já se aproximava. Ou quando ainda brincávamos de pique esconde, como uma espécie de presságio sobre o futuro inevitável que se aproximava, quando deixaríamos de ser apenas crianças e sentiríamos necessidade, de vez em quando, de se esconder do mundo...


Não me sinto mais criança, reconheço que sou adulto, tenho outras demandas, outras responsabilidades, outros desejos, outros sonhos... Mas há algo dentro de mim que não permite que minha infância seja simplesmente apagada. E é por isso que hoje recordei que a Vida é realmente um mistério, porque ela sempre exige da gente uma liberdade que a gente só têm quando é criança. Não qualquer liberdade, mas aquela que nos faz reconhecer que a vida não depende só da gente e que, por isso mesmo, devemos sempre confiar... É exatamente por isso que a lembrança mais nítida e surpreendentemente distante que tenho da minha infância é de quando eu ainda estava de colo, talvez com pouco mais de um ano. Não lembro ao certo o que estava se passando a minha volta naquele dia – é que a gente quando é muito criancinha não se preocupa muito com aquilo que está para além daquilo que nossos sentidos e sentimentos podem absorver. O fato é que lembro de papai me carregando no colo. Estava descendo comigo a escadaria da Igreja e no meio do caminho para pra me mostrar uns miquinhos (sim, macaquinhos) que viviam por ali em uma casinha de madeira suspensa por um galho seco... e papai jogava alguma coisa pra eles pegarem, e eu ficava maravilhado com aquilo – é que quando a gente é criança a gente, também, tem uma sensibilidade mais aguçada, o que nos torna capaz de se maravilhar mais facilmente com aquilo que hoje consideramos simples e, por vezes, banal.


Enfim, acho que há algo de mágico na infância que nos ensina que a vida é, sobretudo, um ato de confiança – exatamente como confiava no colo de meu pai, ou na voz da minha mãe. E que o tempo, aquele mostro que parece engolir com sua boca enorme os anos de nossa liberdade, nada mais é do que o instante presente que temos para confiar, amando com intensidade e cuidado da criança que misteriosamente nos habita e, oxalá, sempre habitará...
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DESEJO DE UNIDADE


Não tenho inclinação para ser melodramático, nem tão pouco excessivamente otimista comigo mesmo, nem muito menos com os outros. Na verdade às vezes me sinto como uma barca a deriva, balançando entre pessimismos e realismos... E entendo que assim mesmo, de vez em quando, é necessário que seja, como se essa fosse a única forma de não esquecer que a Vida não é aquele punhado de sonhos que aprendi nos tempos de minha infante liberdade...

Sinto, na verdade, que ela, a Vida, é um emaranhado caótico de forças antagônicas que brincam com meu corpo. As vezes os pés caminham por caminhos que não são possíveis às mãos tocarem. A cabeça fala de coisas que o coração não sente, ou o coração sente coisas que não é possível à cabeça entender...

Me sinto assim, disperso de mim mesmo, partido em pedaços que não se encontram, como se o elemento ou o elo que liga as minhas partes estivesse, também, disperso...

...Falando em elo, tem tempo que não deito a cabeça no colo de Deus... lá onde sempre consegui ser eu mesmo, sem máscaras, humanamente eu, simplesmente Ele... Sinto saudades da Sua voz gritando do Mar, "não temas", enquanto sentia medo na barca. Ou quando sentava ao Seu lado, na mesa, pra comer do mesmo pão e beber da mesma água ou vinho, que seja... Sinto saudades de quando, sentados diante da arte ou daquelas coisas simples que esquecemos de contemplar, ríamos e chorávamos juntos, dos meus desmantelos e das minhas doidices... Sem julgamentos, sem o peso do bem ou do mau...

Sim, sinto necessidade dessa unidade que dá sentido àquilo que sou.

Desejo um abraço apertado, neste exato momento, daqueles e daquelas que são minha carne, meu sangue e minha alma, e o sabem...

Como sacramento dessa unidade necessariamente tardia, desejo tudo aquilo que está longe de mim, pois no fim das contas, sou solidão, mas também esperança e amor...


Para minha família, que está longe e nunca deixo de sentir saudades, e Gabriela, a mulher que amo, e de quem sinto falta todos os dias...

José Wilson Correa Garcia

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O MAR

Nunca consegui ficar muito tempo longe do Mar. Desde criança ele sempre habitou minha vida e ela sempre esteve mergulhada nele. Lembro que na casa de mamãe e papai, naquele tempo em que éramos ingenuamente livres, quando chovia muito forte, eu e meu irmão, sem medo de trovões e relâmpagos, pegávamos a bola e corríamos para a beira da praia, onde brincávamos e, as vezes, brigávamos... Depois, caíamos no Mar. Nunca nos contentávamos apenas com a água da chuva, sempre desejávamos o Mar mesmo, e fazíamos do nosso desejo - que não precisava ser dito - realidade. Ficávamos somente com a cabeça do lado de fora, buscando fôlego (a água do Mar com chuva, para quem conhece esse tempo, é morna e melancólica). A torrente d'água da chuva caindo sobre a superfície espelhada do Mar produzia um som contínuo e estridente. Não nos ouvíamos direito, mas nos entendíamos...
 
Depois de um tempo buscando fôlego eu abaixava a cabeça, ficava totalmente submerso. Lá não se ouvia mais barulho algum, somente o silêncio daqueles mistérios que só pertencem ao Mar, aqueles que vem e vão, incessantemente, como as ondas.... Lá embaixo, o mundo e a vida davam um suspiro silenciosamente desconcertante, e tudo parecia simplesmente aquietar-se... Era apenas eu e meu mistério.

Curiosamente, hoje, enquanto dormia, sonhei com o Mar! Foi um sonho de paz e misteriosa quietude. Eu e meu irmão já não corremos mais em direção à praia chuvosa de nossa infância... Cada um de nos dois teve que crescer e achar seus amores. Mas o Mar continua habitando minha vida como se dela nunca tivesse saído ou mudado, apesar de seu incessante e constante ir e vir. Mas foi exatamente naquela infância que aprendi que as conchas escondem dentro de si o barulho do Mar, aquele mesmo... E é verdade! Gostava de ficar deitado, antes de dormir, com uma delas perto do ouvido, simplesmente escutando... Hoje, no sonho, descobri que minhas duas mãos, em forma de concha, podem reproduzir exatamente o mesmo mistério, exatamente porque, apesar do tempo e da distância, elas continuam habitadas por aquilo que aprenderam, desde sempre, a amar: o Mar.

José Wilson Correa Garcia


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