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domingo, 12 de abril de 2020

CARREGADORES DE CAIXÃO DE GANA: UM OLHAR ANTROPOLÓGICO POR TRÁS DO MEME.

A morte, assim como qualquer outra experiência humana, é vivida de formas diferentes, de acordo com cada expressão cultural. Para nós brasileiros, marcados pela cultura judaico-cristã, a morte é cercada pelo sofrimento, pois é como se a vida terminasse com ela. Mas não ficamos no vazio do sofrimento. Esperamos e cremos em uma vida para além da morte. Por isso que, para nós, os serviços funerários existem com a finalidade de oferecer conforto para a dor da perda de um ente querido.

Em outras culturas, porém, a morte é uma experiência completamente diferente. Em alguns povos orientais, o defunto continua fazendo parte da família. Depois de morrer a pessoa é mumificada e continua sendo cuidada pela família.

Em outras culturas, por exemplo, como acontece em muitos povos africanos, a morte é um momento de júbilo, de alegria, de festa. Como se, na verdade, a vida começasse com ela.

É em uma dessas culturas africanas que um grupo funerário surgiu para inovar criativamente o momento da morte. Eles são de Gana, nação da África Ocidental, e oferecem serviços funerários de acordo com o pacote solicitado pela família. As performances dependem do pacote solicitado e pago, obviamente, porque independente da cultura, a necessidade de lucrar com a morte (seja ela alegre ou triste) perpassa as particularidades culturais. Mas foi por causa desse grupo de Gana que o meme viralizou na Internet. E é bem provável que tenha viralizado particularmente naquelas culturas que acharam a situação engraçada ou estranha, simplesmente porque é apenas diferente.

Talvez, para muitas culturas diferentes da nossa, um vídeo de um grupo de pessoas chorando em torno de um defunto num caixão seja igualmente engraçado ou estranho. O importante é não acharmos que somente a nossa expressão cultural é a correta.

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

KAIRÓS: O TEMPO NOSSO DE CADA DIA

Diário remanso: encontros, acontecimentos, leituras... Intuições.
O clarão de uma anedota. Uma angústia, uma esperança.
Não à crônica; sua decantação. Vinho descansado.
Ou o instante de uma borboleta. Ou um latido.
Ou Deus passando como uma ventania, como uma brisa.
Nossa história em suas horas: o Kairós que alguém detecta.
O círculo concêntrico do remanso.
E o borbulhar do manancial.
(Pedro Casaldáliga)

Um dia desses, quando o coração parece estar mais propenso a entender algumas verdades que passam despercebidas aos sentidos, ouvi um comentário que ficou ressoando no coração como uma dúvida que não pode ser respondida imediatamente e como poesia que precisa ser apenas ruminada, decantada. Ouvia que, ultimamente, o tempo tem passado mais rápido que o normal, que os anos e meses parecem estar mais curtos... E, de fato, depois de abrir um bate papo sobre o assunto na sala de aula, comentávamos e compartilhava-mos essa mesma impressão. O tempo está mais rápido, se tornou relativo, parece ter perdido seu caráter absoluto.


Porém, no silêncio daqueles mistérios que só são possíveis na solidão, fiquei me perguntando: será mesmo que é o tempo que está diminuindo ou somos nós que estamos ficando maiores, com o coração maior, com a mente maior? Aliás, mais cheios de tudo. Antes, quando era mais criança e, por isso mesmo, dava mais atenção ao essencial, lembro que conseguia parar mais tempo para fazer certas coisas simples... coisas que parecem ter deixado de ser simples. Hoje, não consigo mais sentar, uma hora se quer do nosso dia, para uma boa conversa, ou para simplesmente contemplar aquelas coisas simples e lindas – e por isso mesmo essenciais – que passam despercebidas como um suspiro de saudade... Hoje não consigo mais escutar Deus como quando era criança, ou deitar em seu colo materno-paterno para simplesmente lembrar quem sou, de onde vim e para onde vou...


Há pouco tempo atrás nosso coração e nossa mente não precisava de assimilar tantas coisas e tanta informação ao mesmo tempo. Fazíamos poucas coisas, mas sentíamos que o pouco que fazíamos deveria ser bem feito. Hoje, tudo é colocado diante da gente ao mesmo tempo, tudo precisa ser feito no mínimo de tempo possível e o máximo possível. Será que ao aprender a quantificar as coisas não esquecemos também de qualificá-las? Ou mais sério ainda: será que, nessa mesma sociedade, não aprendemos a agir com as pessoas da mesma forma que agimos com as coisas? Estamos coisificando as pessoas? Estamos nos tornando mais cegos, surdos e mudos, pois perdemos a capacidade de enxergar o essencial, de ouvir o essencial, de falar o essencial... Perdemos a noção do tempo.


Sim, o tempo diminuiu. Aquele tempo que aprendemos na escola, o linear, o histórico, aquele sucessivo punhados de fatos que acumulamos na memória. Esqueceram de nos ensinar que o tempo é, sobretudo, cíclico, Kairós, tempo favorável, tempo de graça... Instante presente, aquele onde o essencial da vida se escancara diante de nós, ora como mistério, ora como graça. Mais cegos, mais surdos e mais mudos, as coisas passam mais rápido, assim como os anos, os meses, os dias e, talvez, assim como as pessoas... Porém, quando assumimos a grandiosidade do mistério que nos rodeia como tempo favorável e tempo de graça, onde o presente infinito e eterno é o único tempo que vale a pena de se viver, os anos, meses, dias e as pessoas não passam, simplesmente ficam... São eternizadas, na memória e no coração.

José Wilson Correa Garcia, em algum tempo desses...
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sábado, 23 de novembro de 2013

EU MAIOR

Dentro de cada um de nós se encontra, mais ou menos escondido, um desejo de infinito, um desejo de compreensão daquilo que nos parece estar para além da banalidade e superficialidade de tudo. Há momentos em que experimentamos algo que parece nos levar para além. É quando sentimos que as amarras que nos prendem a esse mundo contingente se desprendem e o mistério se escancara nos jogando para uma busca irresistível e inevitável de algo, seja a felicidade, seja a transcendência, seja a justiça, seja a verdade... Encontramos os meios, uns na Arte, outros na Filosofia, outros na Ciência e outros ainda na Religião...
No mundo em que nós vivemos hoje, nunca foi tão propício a busca pelo infinito de sentido, há muitas mensagens, há muitas propostas, há muitos caminhos, há muitas verdades... Mas qual é a certa?  Qual é a verdadeira? Todos e, ao mesmo tempo, nenhum... E isso pode parece um pensamento relativista, mas não é. Todos porque cada uma tenta oferecer, mais ou menos e da sua forma, as respostas necessárias. Nenhum porque apesar da tentativa, no fim das contas, estaremos sempre a mercê de um anseio que não pode ser preenchido com qualquer resposta que achemos aqui... Não constitui isso a suprema angústia do homem/mulher modernos?! Em todo caso, podemos conhecer melhor as muitas opções, os muitos pontos de vistas, as muitas verdades...

“EU MAIOR” é um filme longa metragem, produzido em formato de documentário, que pode ajudar, pois traz uma reflexão atual e contemporânea sobre autoconhecimento e busca da felicidade, através de entrevistas com personagens que são expoentes de diferentes áreas, incluindo líderes espirituais (como a Monja Coen e o Teólogo Leonardo Boof), intelectuais (como Rubem Alves), artistas (como a Letícia Sabatella) e esportistas (como Waldemar Niclevicz, primeiro brasileiro a escalar o Monte Everest). Com perfis bem distintos, os entrevistados têm em comum a disposição de compartilhar perguntas, respostas, e experiências de vida que ampliaram suas percepções de si e do mundo. Vale a pena ser assistido, vale a pena ser experimentado...

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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O FECHAMENTO DA CAJU, DA IGREJA E DOS JESUÍTAS

Tenho acompanhado de longe – mas nem por isso distante – e com perplexidade os acontecimentos que levaram o fechamento arbitrário da CAJU, em Goiânia.


Para quem não conhece, a Casa da Juventude (CAJU) se tornou, durante 30 anos, um Centro de Capacitação e Formação Juvenil de referência Local, Nacional e Internacional. Ali acontecia formação para Jovens, Pastorais e Movimentos de diversos segmentos da Igreja e da Sociedade, em praticamente todos os âmbitos do universo juvenil: litúrgico/religioso, político, artístico, tecnológico, científico, etc. Mais ainda:, apesar de estar localizada em Goiânia, GO a CAJU esteve presente em quase todos os espaços de assessoria e formação de forma itinerante, seja no Brasil ou fora dele. Mas não quero falar da CAJU como um espectador estatístico. Não! Quero falar da CAJU como homem, como pessoa que foi transformado por sua missão, quero recordar nomes que me marcaram profunda e positivamente. Mas também quero lembrar nomes que, agora, são motivo de vergonha e tristeza...


Fui Jesuíta durante mais de 10 anos. Por uma série de circunstâncias que não vale a pena me estender agora, me desliguei da Companhia de Jesus e hoje sou Professor, amo e sou amado pela Gabriela, com muito orgulho e sou muito feliz por isso tudo. Durante o tempo em que estive na Ordem dos Jesuítas, por opção pessoal e pastoral, estive próximo do serviço a juventude, primeiramente através do Instituto de Pastoral da Juventude do Regional Leste II da CNBB, em Belo Horizonte (IPJ Leste II). Evidentemente, os trabalhos que assumíamos, nos colocaram em contato direto com outras pessoas, centros e institutos espalhados pelo Brasil. Assim conheci as primeiras pessoas que atuavam na CAJU. Depois, também por iniciativa pessoal, tive a oportunidade de fazer um Curso de Pós-graduação em Adolescência e Juventude no Mundo Contemporâneo, que acontecia e era articulado pela própria CAJU. Ali pude experimentar, verdadeiramente, o que é a CAJU. Ali conheci a Carmem, a Edina, o Lourival, a Jaciara e tantas outras e outros que faziam da CAJU um sonho possível e necessário de ser realizado. Nunca, em anos como jesuíta, tinha encontrado uma obra com tanto protagonismo leigo e dedicação à sua missão...


Como Jesuíta, e pelo fato de a CAJU ser uma obra ligada à Companhia de Jesus, quis saber quem eram os Jesuítas que, naquele momento, estavam por trás de toda aquela obra. É que geralmente, nas obras dos Jesuítas, normalmente eles definem e determinam quase tudo dentro dela, pois como ouvi muito dizer, “quem tem poder tem controle”. Para meu espanto, encontrei, como diretor, Pe. Geraldo Labarrère Nascimento, uma figura incrivelmente próxima, jovial e espantosamente amiga, muito diferente dos outros jesuítas da Província Centro-leste, que assumem um estereótipo de “intocáveis”, muito diferente dos Jesuítas, por exemplo, do Nordeste. Na segunda etapa descobri que o Pe. Geraldo não era mais o diretor, e sim a Carmem Lúcia Teixeira. Sim, uma mulher (diga-se de passagem, capacitadíssima) como diretora de uma obra dos Jesuítas, algo que nunca tinha visto, principalmente ali, naquela região. Também, tinha o Pe. Hilário Dick, que apesar de ser da Província da Sul (outro que tinha tudo para ser um “intocável”), esteve muito ligado à CAJU e naqueles dias estava facilitando uma disciplina na pós-graduação. Para quem conhece o Pe. Hilário, ele dispensa apresentações. É uma figura psicodélica, que fala da juventude como uma poesia constante, diária e necessária, que é como um sino que alerta constantemente a Igreja no Brasil da necessidade de ter um olhar e uma ação diferenciada para a Juventude. Pe. Geraldo e Pe. Hilário foram os dois Jesuítas que me ensinaram o que os Jesuítas deveriam fazer com suas obras, mas não fazem...


Hoje, quando percebo todo o desfecho que levou o fechamento da CAJU, apesar de sentir e de compartilhar a dor e a indignação de muitos que tem aquela casa como referência, confesso que não fico tão admirado assim. Meu espanto por encontrar, na CAJU, uma autonomia e um protagonismo leigo era, na verdade, um presságio. Sim, para mim o desfecho da CAJU é a confirmação de uma postura que, desgraçadamente, se enraizou e se afirmou na Igreja: o autoritarismo nada evangélico.


São pouquíssimos os bispos e padres que, hoje, tem a intenção de formar gente que pense por si, que se sinta verdadeiramente Igreja de Jesus Cristo... Pe. Geraldo, por exemplo, é um desses pastores. Seu sucessor, Pe. Nilson Marostica, é radicalmente o inverso e quando fiquei sabendo que ele tinha sido destinado para substituir o Pe. Geraldo, pensei no meu coração, “Ai vem coisa...”, mas preferi guardar esses acontecimentos no coração, como Maria. Entendo perfeitamente que Pe. Nilson, junto com o Provincialato dos jesuítas da Província Centro-leste, Pe. Smida e Pe. Carlos Fritzen, tenham argumentos econômicos e administrativos/filantrópicos para justificar essa atitude arbitrária e autoritária de fechar a CAJU. Mas no coração de quem vivenciou e entendeu a missão da CAJU, não existe justificativa possível... No fim das contas, aí está, mais uma vez, a afirmação de um modelo de igreja e de trabalho com a juventude que tem o controle como centro.


A CAJU fechou? Os que compartilharam com essa arbitrariedade e irresponsabilidade (sim, irresponsabilidade, pois nenhuma obra que funcionou com mais de 30 anos de projeto, é simplesmente fechada tão rápido quando inconseqüentemente), dirão que não, a CAJU continuará, mas em outra linha, em outra perspectiva de trabalho... Os que entendem a CAJU profundamente, afirmam acertadamente que ela fechou, sim. E fechou porque a CAJU não era somente a obra física, mas era a missão, o protagonismo, a autonomia... coisas tão desejadas e queridas pelos últimos documentos das Congregações Gerais e Normas dos Jesuítas. Mas quem perde não é somente a juventude brasileira e latino-americana, que não terão mais um centro de referência e formação, com tanta experiência e material sistematizado e publicado. Quem perde também é a igreja...


Apesar de tudo, ainda me sinto Igreja de Jesus. E como tal sofro porque sinto que, institucionalmente, a Igreja e os jesuítas perdem, em muito, com atitudes como essa. Estão se afastando do mundo. Acham que o punhado de jovens que conseguem controlar dentro de suas obras é o suficiente para a missão que Deus os confia... Mas não é...


A CAJU fechou? Institucionalmente, sim. E, com ela, também fechou a Igreja, fechou também os Jesuítas... Sinto e sei, contudo, que a CAJU também continua, no coração daquelas e daqueles que entenderam e viveram sua missão de levar para o mundo a mensagem do jovem Jesus de Nazaré... Isso não se fecha!



José Wilson Correa Garcia.
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quinta-feira, 3 de maio de 2012

Gritos dos/as Excluídos/as 2012


      O Grito dos Excluídos é uma manifestação popular carregada de simbolismo. È um espaço de animação e profecia, sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos(as).
      O Grito dos(as) Excluídos(as), como indica a própria expressão, constitui-se numa mobilização com três sentidos:
  • denunciar o modelo político e econômico que, ao mesmo tempo, concentra riqueza e renda e condena milhões de pessoas à exclusão social;
  • tornar público, nas ruas e praças, o rosto desfigurado dos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria e da fome;
  • propor caminhos alternativos ao modelo econômico neoliberal, de forma a desenvolver uma política de inclusão social, com a participação ampla de todos os cidadãos.
      O Grito se define como um conjunto de manifestações realizadas no Dia da Pátria, 7 de setembro, tentando chamar à atenção da sociedade para as condições de crescente exclusão social na sociedade brasileira. Não é um movimento nem uma campanha, mas um espaço de participação livre e popular, em que os próprios excluídos, junto com os movimentos e entidades que os defendem, trazem à luz o protesto oculto nos esconderijos da sociedade e, ao mesmo tempo, o anseio por mudanças.
      As atividades são as mais variadas: atos públicos, romarias, celebrações especiais, seminários e cursos de reflexão, blocos na rua, caminhadas, teatro, música, dança, feiras de economia solidária, acampamentos – e se estendem por todo o território nacional.
      Em 2012 o Grito dos(as) Excluídos(as) traz como tema: “Queremos um Estado a serviço da Nação, que garanta direitos a toda população!”

Ajude a divulgar e faça parte desta manifestação popular!

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quarta-feira, 2 de maio de 2012

Da ética e da política

      "Na política, não há certezas. Causamos males, indubitáveis, em troca de um bem maior, mas inseguro. Pagamos o preço, mas ganhamos algo em troca? Não sabemos", escreve Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo, em artigo publicado no jornal Valor, 12-03-2012.

      E ele pergunta: "O que fazer quando a ética usual, a do não-matarás, não basta para nos orientar?"
      Segundo Janine Ribeiro, no 500º aniversário d'O Príncipe de Maquiavel, "seria melhor discutir isso, expor isso, quem sabe respondê-lo, do que manipular a ética e enganar os ingênuos".
Eis o artigo.

      No ano que vem, "O Príncipe", de Maquiavel, completará meio milênio de sua primeira difusão em manuscrito. Nesses cinco séculos, a questão mais importante sobre a ética tem sido: como acontece que ela não seja suficiente? Quais são seus limites? O que fazer quando a ética não nos orienta sobre a ação que podemos julgar correta? Maquiavel e os utilitaristas provavelmente são quem mais elaborou essa questão, mas no século XX ela recebeu tratamento sofisticado, entre outros por pensadores do quilate do sociólogo Max Weber ou dos filósofos Merleau-Ponty e Isaiah Berlin. Nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso citava Weber em profusão, quando discutia as fronteiras entre sua atuação como cientista social e como político. Num caso se procura conhecer; no outro, agir. Weber também servia a FHC para explicar por que este não fez tudo o que prometeu ou quis. O presidente sociólogo assim popularizou, entre nós, termos como ética de princípios e ética da responsabilidade.

      Tendemos todos a concordar quanto a alguns preceitos éticos fundamentais: não matar, não furtar, em suma, não prejudicar o outro. Mas podemos divergir sobre o que eles significam. Por exemplo, "não matar" é apenas não tirar a vida de outra pessoa? Ou podemos matar outras pessoas por omissão, se não acudirmos alguém ameaçado por um agressor ou não socorrermos um faminto? Num caso, para eu ser ético, basta não fazer mal algum. Não preciso fazer o bem. É suficiente não fazer o mal. Não fiz nada de errado. Mas desta maneira terei feito o que é certo? Talvez não. Porque a ética é exigente. Nunca serei ético comodamente. A ética me incomodará. A ética exigirá que eu lute contra a fome. E quando começo a pensar desse modo, não paro mais. Para ser ético, precisarei dar comida a quem está esfomeado? E bastará isso, se eu não batalhar pela adoção de políticas contra a fome? E essas, serão eficazes ou contraproducentes? Esse é um ponto essencial da discussão ética. Ela é interminável. Não visa a nos confortar. Está aí para nos questionar. Se não o fizer, será falsa. Uma ética confortável é apenas um álibi.

      Mas a discussão importante sobre a ética não é apenas sobre o que ela diz ou orienta, e sim sobre o que ela não pode dizer nem orientar. Há pelo menos cinco séculos que os observadores mais atilados da condição humana sabem que muito se faz à margem, ou mesmo contra, a ética. Maquiavel, tão mal entendido, percebeu que a ação política obedece a uma lógica diferente da moral, digamos, privada ou cristã. O pensador liberal Isaiah Berlin diz: Maquiavel não é anti-ético. Ao contrário, ele é um filósofo da ética: uma ética da cidade, da política, uma ética da vida neste mundo. Berlin a considera uma ética pagã, greco-romana. E por isso, em seu prefácio à edição brasileira d'O Príncipe, FHC apresenta Maquiavel como um cientista político de excelente qualidade, não como quem acharia que os fins justificariam os meios (o que, por sinal, ele nunca disse). Dizer as coisas como são, não como fantasiamos ou desejamos que seriam: isso é lucidez.

      O que a ética não pode dizer é, exatamente, o que é mais difícil na vida social e política. Os dez mandamentos cristãos, ou outros princípios éticos, podem orientar em boa medida a vida privada de muita gente. Mas, quando passamos à vida coletiva e em especial quando o demônio do poder entra em cena, eles não dão conta. Os utilitaristas, como Jeremy Bentham, trataram disso com franqueza brutal. Exemplo célebre: seria justo matar uma pessoa para salvar cinco? Na falta de critérios absolutos, revelados por uma suposta divindade, cada vida vale o mesmo que outra. Cinco vidas valem mais que uma. Então, se para o Brasil prosperar é preciso avançar o sinal ético na privatização ou na obtenção de maioria no Congresso (por hipótese), o preço é nojento, mas pequeno. O bem comum assim causado supera de longe os danos.

      Quais os problemas, nessa questão? São dois. Nunca se tem certeza de que o que chamamos de bem comum é, realmente, bom. Não há consenso a respeito. Uns aplaudem a privatização, outros não; o mesmo quanto aos sucessos do governo Lula. Os males causados podem ser tangíveis, reais. Mas há divergência sobre o bem comum que terão produzido. Este é o primeiro problema. Na política, não há certezas. Causamos males, indubitáveis, em troca de um bem maior, mas inseguro. Pagamos o preço, mas ganhamos algo em troca? Não sabemos.

      O segundo problema é mais grave. É que na política se age como descrevi, mas isso não se discute. Um silêncio terrível paira sobre a generalização da corrupção - no mundo todo. Qualquer observador atento sabe que, na era do marketing, mais e mais dinheiro é preciso para as campanhas eleitorais. Papel vem de árvores; dinheiro, não. Vem de cofres públicos. É difícil um partido fazer sua campanha sem tais meios heterodoxos. Essa corrupção deve ser generalizada, porque todos os partidos necessitam de fartos recursos para suas campanhas. Mas é fácil usar esse fato seletivamente. Acuso o partido de que não gosto. É muito provável que o meu tenha agido da mesma forma, mas sobre isso me calo. Daí que a ética vire arma vil num debate que esconde sua real natureza política. Mas essa realidade sempre existiu; e a questão foi formulada há cinco séculos, por Maquiavel. O que fazer quando a ética usual, a do não-matarás, não basta para nos orientar? Seria melhor discutir isso, expor isso, quem sabe respondê-lo, do que manipular a ética e enganar os ingênuos. Em 2013, "O Príncipe" completa 500 anos. Quem sabe ser honesto e abrir o jogo seria um bom modo de celebrar a data?

Fonte: IHU.
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