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sábado, 8 de agosto de 2020

MEMÓRIA DE UMA MISSÃO: SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA E DOM PEDRO CASALDÁLIGA

 

“VIDAS PELA VIDA. VIDAS PELO REINO!”

dom Pedro Casaldáliga

Bispo da prelazia de são Félix do Araguaia

Mato Grosso – BRASIL

  

Desde o primeiro momento que pisei nestas plagas mato-grossenses o espírito profético desse grande homem – Pedro Casaldáliga – se fez presença atuante e viva.

            Realmente as distâncias são imensas. A prelazia de São Félix do Araguaia é uma região localizada ao norte do Estado do Mato Grosso com 150.000 Km2. Só se tem noção destas distancias quando se percorre, mesmo que uma pequena parcela, deste imenso território de missão.

            Para chegar até o lugar onde passei as duas semanas de missão tive que sair de Goiânia, de onde me dirigi para Canarana, já no Mato Grosso. Desta cidade dirigi-me para Querência, uma cidadezinha ainda menor, formada por retirantes do Sul do País, que acolhia a 100 Km de sua sede os quatro assentamentos que se tornaram referência para mim.

            O sistema de transporte rodoviário, desde Canarana, se mostrou totalmente precário. Era difícil de acreditar que o ônibus naquele estado pudesse agüentar os 200 Km que ligavam Canarana a Querência. As estradas nem se falam. O que sobrava do asfalto se juntava aos buracos e à terra vermelha da região.

            No Caminho a realidade da região se descortinava. Eram camponeses que iam e vinham das diversas cidadelas. Famílias indígenas com suas mulheres carregando no colo sempre suas crianças que calavam o choro com a ordem do pai, sempre melhor vestido.

            Uma região exclusivamente agrária, onde a presença das grandes fazendas latifundiárias é tão marcante que chegam a configurar e interferir visivelmente na geografia.

            Me escandalizei ao percorrer duas horas de ônibus dentro de uma mesma fazenda. E, por incrível que pareça, um camponês falou que aquela fazenda não era tão grande em comparação a outras que existem na região. Milhares e milhares de hectares desmatados por causa das lavouras, geralmente de soja.

            Grande parte da fonte de renda se concentra em trabalhos nestas grandes fazendas latifundiárias, onde já foi detectada a presença da exploração de mão de obra escrava. Esses grandes latifúndios, na maioria das vezes, se revelam de forma oculta e silenciosa, como verdadeiros instrumentos de opressão e morte de tantos camponeses pela falta de opção, e de tantas nações indígenas que são cada vez mais espremidas e esmagadas pelo latifúndio.

            Graças ao trabalho da prelazia e a algumas instituições que ajudam a pensar soluções para esses problemas, muitas coisas já foram feitas, mesmo que a custa do sangue derramado de tantas e tantas vidas. Por causa de trabalhos como esses, nações indígenas hoje são olhadas com mais seriedade e responsabilidade; fazendas latifundiárias foram desapropriadas e distribuído terra a quem não tinha.

            Mas tudo o que já foi feito parece ser pouco diante da imensidão de problemas e desafios que esta região comporta.

             A distancia da sede de Querência até os quatro assentamentos que tive contato é de 100 Km. Esses assentamentos – Coutinho União, Brasil Novo, São Miguel e T65 – são desapropriações de terra do que já foi uma grande fazenda latifundiária. Cada família assentada recebe uma parcela de terra, estabelecida pelo INCRA, com média de 100 hectares.

            A aquisição dessas terras por parte das famílias e a forma de lidar com ela é um pouco complicada. Geralmente são terras nativas, cheias de árvores e animais silvestres. É comum encontrar nos assentamentos bichos como onça, sucuri, jacaré, capivara, veado, tatu, etc...

            Para o plantio é necessário que esta terra nativa seja tratada e preparada, por ser de uma qualidade “não muito boa”. E, para isso, são necessários recursos financeiros, de que nem sempre as famílias dispõem.

            Este é um grande desafio, pois já está mais que comprovado que não basta só distribuir terra se não se oferece o mínimo necessário para que o lavrador possa fazer esse pedaço de terra, que é seu, produzir.

            Aí entra um outro grande problema. O INCRA que é o órgão federal que deveria organizar a distribuição das terras de forma igualitária, bem como os recursos federais para o pequeno lavrador, age de forma descarada e corrupta, junto com as prefeituras, desviando grande parte dos recursos, que deveriam beneficiar os assentamentos, sabe-se lá para onde.

            Chego às vezes a pensar que esses recursos financeiros quando chegam nas mãos do lavrador não bastam, independentemente da quantia, por incrível que pareça.

            Muitos usam o dinheiro, que era para ser usado no trato da terra, de forma desordenada e irregular. Isso sem falar na necessidade cega de se plantar para se produzir cada vez mais, com mais concorrência, com mais ganância, mais e mais... com isso, cada vez mais, milhares e milhares de hectares de matas são queimadas e desmatadas, dando assim, continuidade ao sistema de fazendas, só que agora em parcelas menores.

            Não! Acho que a reforma agrária não é isso. A reforma agrária é muito mais do que distribuição de terra e dinheiro. A reforma agrária é consciência comunitária, é consciência humana, ecológica e fraterna. Penso que é exatamente neste ponto que as vidas são doadas pela Vida, pelo Reino. É neste momento que posso falar e citar tantos homens e mulheres que doam suas vidas junto a essa realidade por uma causa que é maior que qualquer ideologia.

             O grupo de agentes de pastoral da prelazia de São Félix do Araguaia formados por religiosos, religiosas, ministros ordenados, leigos e leigas estão inseridos em todo território da prelazia e articulados por regionais e comunidades eclesiais de base (CEB’s). A articulação pastoral se dá por conselhos, que vão desde o conselho comunitário de base, passa pelo conselho regional, até o conselho geral da prelazia. Numa divisão dinâmica e discernida, todas as propostas de atividades e decisões passam respectivamente por esses conselhos; de baixo para cima, é claro.

            Mas a base de toda atividade pastoral da prelazia está no silêncio e no anonimato dos agentes inseridos nas realidades de cada comunidade, vila ou assentamento.

            Eu, nestas semanas de missão, tentei me inserir junto à realidade de três irmãs Capuchinhas Missionárias: Maria José, Núbia e Elismar; que vivem na fraternidade Margarida Alves no assentamento Coutinho União. Elas, juntas com alguns moradores dos assentamentos, prestam assistência no que for necessário a cada realidade particular.

            Junto ao trabalho e estilo de vida destas irmãs experimentei o que chamarei de “utopia da vida religiosa”. Nada mais próximo ou mais distante dos assentamentos. Assim vivem essas religiosas, e creio que a maioria dos agentes de pastoral da prelazia. Com um estilo de vida dinâmico e criativo, de acordo com cada necessidade, elas  vivem sua consagração e vida respeitando os limites de cada pessoa dos assentamentos, assumindo os desafios, dificuldades e alegrias como se fossem seus – o que na verdade são. Mas nem por isso deixam de ser uma presença que questiona, anima, trabalha e celebra.

 Em realidades como essas dos assentamentos é difícil de se encontrar uma estrutura já definida e formada de comunidade: com pastorais e grupos. Por isso, a necessidade de uma presença que saiba escutar, dialogar e respeitar o ritmo e a caminhada deste povo, sem esperar resultados imediatos e sem interferir, de forma brusca, no ritmo de vida já tão martirizado pelo trabalho duro ou mesmo pela falta dele.

Penso que nenhuma ação pastoral é mais eficaz que aquela capaz de se inserir concretamente na realidade local, dinamizando com maturidade e responsabilidade o testemunho, que se dá a partir da opção de vida própria do religioso e religiosa e seu carisma.

De forma lenta, anônima, mas sólida o agente de pastoral vai incutindo no meio da comunidade, vila ou assentamento o espírito evangélico dos libertados, marcado radicalmente pela acolhida e pelo Amor fraterno a todos e a todas, sem distinção de raça, cor ou credo.

As “casas das equipes”, como são chamadas as casas pertencentes à prelazia onde residem os agentes de pastoral, estão sempre abertas, prontas para acolher a qualquer hora, qualquer pessoa que chegue e peça ajuda, ou mesmo para uma visita ou conversa de fim de tarde.

Elas se refletem, de forma muito parecida, com a residência do bispo, na simplicidade na acolhida e na humildade, muito diferente do que estamos acostumados a ver pelo Brasil e pelo mundo afora.

Dom Pedro – faço questão de chamá-lo assim, apesar dele preferir somente Pedro – conserva uma serenidade impressionante. A lucidez de suas colocações e posições em relação à igreja e à sociedade são muito mais atuais que muitas posições caducas de hoje em dia. Me marcou profundamente sua acolhida e sua disponibilidade em servir a todos, de todas as formas possíveis. Um místico com um olhar penetrante e profundo, que me parece ir além das coisas visíveis.

Em sua casa, em sua presença tudo respira um ar de paz e profecia. Alias, esse foi o ar que respirei ao longo dessas semanas. Um ar que penetrou como testemunho, fé e serviço o seio de toda nossa igreja, particularmente da igreja latino-americana e brasileira. Um ar que ainda hoje, apesar das intenções contrarias pessoais e institucionais, continua e penetrar e a inundar os corações de tantos irmãos e irmãs fieis ao espírito de Jesus Cristo que se manifesta na presença questionadora dos pobres.

 

No coração permanece a lembrança e as cicatrizes dos corações de tantas pessoas, pelo peso da opressão e do descaso nesta bendita terra de missão, mas, sobretudo a certeza de que levo um pouco do fogo que ainda queima com força esses mesmos corações sedentos de Justiça, Dignidade e Paz.

Com o braço e coração erguidos, não em sinal de despedida, mas de bênção ou talvez de até logo, está aquele grande homem na porta de sua simples casa. Ele que soube como ninguém doar sua vida pela Vida, sua vida pelo reino. É inevitável a lembrança do abraço apertado e fraterno de Dom Pedro, carregado de Paz e acolhida exclamando para mim: “Zé Wilson, seja fiel, aos pobres”.

  

José Wilson Correa Garcia

São Félix do Araguaia, 25 de Dezembro de 2004.


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domingo, 19 de abril de 2020

EMAÚS EM TEMPOS DE PANDEMIA


O caminho de Emaús é o caminho de cada um de nós. Particularmente neste tempo de isolamento, não só das pessoas, mas também de ideais e das pequenas e mais importantes coisas da vida.

Eu sempre gostei desta narrativa do Evangelho de Lucas que a Igreja propõe na Liturgia de hoje. Está em Lc 24,13-35. A Palavra é surpreendentemente simples. É porque Deus sabe que o mais importante está nas coisas mais simples. Por isso, é assim que Ele fala...

E fala de dois corações no caminho, mas um só sentimento: a falta de esperança. Gosto sempre de pensar que eram dois amigos, ou duas amigas, ou um casal. No caminho carregam ideais perdidos, sonhos destruídos, incertezas por situações que não dependem deles. O caminho é pesado, as lembranças dolorosas, as histórias angustiam. Alguém entra na conversa e faz o caminho junto com eles. É Jesus, claro! Mas eles não o reconhecem. Óbvio! A gente nunca sabe que Deus pode estar do nosso lado em momentos de desesperança e de sofrimento. E o que Jesus faz? Apenas escuta. Escuta a história, escuta a vida. Quantos de nós não quer apenas falar e ser escutado? Quantos de nós não quer apenas alguém pra nos dizer e mostrar que, apesar de tudo, a vida continua a nos ensinar e nos fazer crescer. É isso que Jesus faz. Por isso o coração da dupla arde no caminho. No fim dele, na mesa da partilha, o reconhecimento definitivo de que Deus nunca os abandonou.

O caminho da quarentena é igualmente pesado ao coração. É possível que Deus esteja caminhando ao nosso lado. Talvez não percebamos porque insistimos em dar atenção àquilo que pesa ao coração. Quantos de nós não aguenta mais tanta informação e notícia ruim? Mas quantos procurou informações e notícias boas? Quando aprendemos a dedicar nossa atenção àquilo que realmente importa, o coração queima. E queima porque sente que, no fim das contas, apesar das distâncias e pesos, não estamos sozinhos. Mas os olhos ainda não conseguem enxergar. Mas enxergará, no momento em que, tendo passado tudo isso, voltarmos a nos reencontrar na simplicidade daquelas coisas que, hoje, distantes e isolados, aprendemos a dar valor: o abraço, a presença, o cuidado.



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quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O AMOR FAZ DO OUTRO SAGRADO


Antes que digam, sei que a história que vou contar a seguir não é verdadeira. Mas nunca uma história falsa foi tão verdadeira.

Disseram que esta criança da foto tinha perdido a mãe na guerra e, no pátio do orfanato, rabisca seu desenho e se deita na memória do aconchego do seu ventre, deixando de lado as sandálias em sinal de respeito, como é costume nas tradições orientais ao se entrar em um lugar sagrado.

Dizem que saudade só existe na língua portuguesa. Acho que depois dessa foto, a saudades pode ser compreendida em qualquer língua.

E isso me fez pensar que esta imagem representa bem o significado da espiritualidade. Espiritualidade é Saudade. Quando o coração deseja o aconchego da fonte de sua criação, faz porque tem sede de Deus. É o que deveria acontecer todas as vezes que vamos à Igreja. É o que deveria acontecer todas as vezes que encontramos aqueles a quem Jesus chama de próximo: as crianças, os leprosos, as prostitutas, os pecadores, os miseráveis, os pobres e excluídos... também os amigos. Entrar na sacralidade da vida dessas pessoas, como ventre, e de pés descalços.
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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A ATUALIDADE DO CONSERVADORISMO NO BRASIL

Está em curso no Brasil a ascensão de uma ordem conservadora em praticamente todos os âmbitos da sociedade. Vemos se repetir diante de nossos olhos a tentativa de afirmação liberal que legitimou as maiores injustiças e desigualdades da história das sociedades ocidentais.

Intelectualmente, tenta-se suprimir qualquer interpretação crítica que mostre a luta classista que divide a humanidade em ricos cada vez mais ricos, vivendo à custa da exploração de pobres cada vez mais pobres. Figuras como olavo de carvalho estão aí pra convencer os mais ingênuos (muitos deles legitimamente indignados e desesperançados) sobre o suposto "perigo" de uma suposta ordem comunista ou socialista, querendo se afirmar no mundo de forma diabólica e nefasta. Um discurso tão descontextualizado quanto ultrapassado, que convence quando não se tem coragem e disposição para buscar novas alternativas intelectuais.

Politicamente, o crescimento de discursos e posturas fundamentalistas criam um cenário sem representatividade. Figuras como bolsonaro, marco feliciano revelam o que de mais podre existe na política brasileira: a inversão de um discurso moral que aparenta ser bom por, supostamente, defender o cidadão de bem, porém, na prática, atende aos interesses de uma elite que usa o mesmo cidadão de bem fazendo-o acreditar e apoiar o que é pior para si mesmo.

Economicamente, tenta-se tirar do Estado a responsabilidade que tem sobre o cidadão: oferecer políticas públicas para saúde, educação, segurança, lazer, etc. que tenham qualidade e ofereçam dignidade. Como não se tem coragem para fazer a reforma política que o país necessita, busca-se a alternativa mais fácil: legitimar a autonomia e liberdade econômica privada. Repete-se o mesmo erro liberal que fez nascer os sistemas mais desiguais e injustos do mundo, com a falsa justificativa de que, assim, a crise econômica se resolverá. Mentira!

Aprendi com a vida que a melhor forma de convencer com uma mentira é repetí-la quantas vezes for necessário, até ser acreditada como verdade. Hoje existe sistemas de comunicação e de-formação que fazem isso muito bem. A rede globo é um deles. Não é a toa que os conservadores descobriram a força comunicadora das redes sociais. Olavo de carvalho, MBL, jair bolsonaro sequer existiriam ou seriam conhecidos se não fossem as redes sociais.

Sou de um tempo que as melhores ideias, os melhores mitos, as melhores pessoas, os melhores movimentos eram conhecidos nos livros, nas ruas e na luta.

O conservadorismo intelectual, político e econômico está longe de ser uma alternativa viável para o outro Brasil que necessitamos. Ou acordamos para o seu perigo ou continuaremos afundando na lama que tenta nos sufocar até a morte.
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sábado, 23 de abril de 2016

O LIXO DO DESCASO E DA INDIFERENÇA - Por Bárbara das Graças de Lima

NOTA: Há pouco tempo fiz, com meus alunos e alunas das turmas de terceiro ano da Escola Profissionalizante de Russas, uma aula de campo das disciplinas de Filosofia e Sociologia para trabalharmos a temática da Ética Ambiental, Sociedade e Meio Ambiente. O local escolhido foi a Comunidade do Alto São João, localizada na cidade de Russas, às margens de tudo: da BR 116, do lixão municipal e de tantas outras marginalizações. O relato que segue foi o testemunho humanista de uma aluna, Bárbara, a partir de seu olhar humanista. Qualquer tentativa de explicação se tornará injusta. Apenas leiam...



O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)

Fazendo menção ao poema de Manuel Bandeira, expresso um pouco daquilo que vi e senti em meio a um espaço geográfico composto por um lixo tóxico de descaso, indiferença e que, em meio a tudo isso, vivi algo que até então ficava apenas aos meus ouvidos, discursos e mais discursos da vida surreal daqueles e daquelas que tiram seu sustento dos lixões.

“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos.”

Vi sim, a imundície que somos capazes de produzir e que somos incapazes de buscar pôr em prática em um simples ato, a coleta seletiva. Não, a única coleta que percebi que estamos fazendo é a coleta de nossa hipocrisia, a que nos cega ao ponto de sermos indiferentes ao descaso dessas condições, que faz do ser humano um concorrente de urubus, porcos e insetos.

Ao sair de minha zona de conforto e ir até o “pátio” é que dei conta que o odor que senti naquele momento não chega perto ao que exala as políticas públicas que simplesmente adiam as possíveis melhorias dessas condições. Afinal, o prazo final para implantação dos chamados aterros sanitários instituída pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, era para 2014, mas pelo que consta no calendário, já se vão dias e anos deste prazo.

É inadmissível perceber, enquanto se prolongam os prazos, a vida dos que estão a mercê dessas condições vão se confundindo entre sacos, restos de comida, plástico, etc. E tudo aquilo que é “lixo” se confunde com aquilo que é vida. Vi que é muito fácil para uma visitante chegar, se indignar, trocar a roupa pois o cheiro ficou entravado, mas é muito difícil tomar parte da responsabilidade da formação disso tudo.

Talvez não seja o lixo literalmente falando que salta aos olhos e que faz tremer a pele, aperta o coração e faz a consciência ficar atordoada. Mas, sim, se dar conta de uma realidade que faz parte da vida de várias Marias, Josés, Inácios - e tantos que fogem ao alcance - e lembrar que junto desta realidade, há milhares de outras.

Senti silenciosamente além dos gemidos daqueles que ali encontrei, os gemidos da mãe natureza, tão maltratada, tão esquecida que participa da luta em favor da vida daqueles que estão lançados, muitas vezes, à sorte de encontrar os materiais que possam gerar um maior lucro... até mesmo o alimento do dia.

“O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato.”

O poema de Bandeira finaliza com o espanto de que nenhum animal que ali estava era ele mesmo. Era e é o homem que se prostra às condições que o faz bicho, que o faz sentir vergonha. Porém, mesmo diante de tudo isso que testemunhei e compartilho, apesar de não ser um rato, um gato ou um cão e sim um ser humano, este possui e sempre irá possuir em sua pele, em seu coração e sua consciência a vontade mais singela, a de ser homem nas legitimidade das condições humanas.

Talvez eu tenha sido um pouco quanto humanista nas entrelinhas, mas isso foi reflexo do que de humano não percebi em todo aquele lixo que estava aos meus olhos e que em algum lugar em meio a todo ele, estava meu lixo, não somente o lixo no seu contexto literal, mas também o meu lixo de indiferença e descaso.

“O bicho, meu Deus, era um homem.”

Por, Bárbara das Graças de Lima.
Aluna do terceiro ano de Comércio da Escola Profissionalizante de Russas, Prof. Walquer Cavalcante Maia.
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domingo, 17 de janeiro de 2016

A MORTE SEGUNDO MEUS SOBRINHOS

A perda do meu irmão Alexandre foi uma das experiências mais difíceis que eu já vivi. Não só eu, mas a família de uma forma geral. Não estávamos preparados para ela. Na verdade, nunca se está.

Os dias que passamos juntos foram intensos, envoltos em muitos sentimentos, questionamentos, silêncios. Entre nós, cada um a seu tempo e da sua maneira, a dor era vivida, experimentada e externada. Mas ficava observando meus sobrinhos e notava que, neles, era diferente...

A criança parece ter uma experiência completamente diferente de nós adultos da morte. Eles sentem, mas não entendem. Pelo menos não da forma como nós entendemos.
 
No dia seguinte ao enterro de Alexandre, saí com João Pedro pra frente da praia. Saí com medo, porque tinha certeza que ele falaria do pai e eu não teria força ou coragem pra responder. Ele já tinha começado a entender que algo tinha acontecido com o pai que machucava todo mundo, por isso não falava. Mas comigo ele falava, talvez pela aparência, não sei... Não deu outra. No meu colo sussurrou quase como um segredo sagrado: "Papai tá vindo?". Abracei ele forte, solucei... Depois de um tempo eu disse que o papai dele tinha ido morar com Papai do céu. Não sei se foi a melhor resposta, mas foi a que saiu do coração. Ele com uma certeza dolorosamente ingênua, termina: "papai tá trabalhando!". Me calei...

No coração de uma criança a morte não existe da forma como existe pra nós. Porque para eles a pessoa continua viva, mesmo que não fisicamente presente porque está distante, fazendo as coisas que sempre fez... Para eles a morte não é perda.

Algum tempo depois Pedro Henrique, meu sobrinho mais velho, compartilhava conosco que tinha sonhado com o tio. No sonho, experimentava a naturalidade das coisas que Alexandre sempre fez com ele. No sonho, saíram pra passear de barco, jogaram vídeo game, essas coisas simples da vida. Na volta pra casa, se despediram, o tio andando sobre a água (porque essas coisas são possíveis nos sonhos), Pedro perguntou se ele ia ficar bem. A resposta foi um sorriso afirmativo.

Curiosamente, também sonhei com ele. Não costumo sonhar com pessoas que já faleceram, mas com meu irmão foi um sonho diferente, porque foi um sonho de paz, tão real para o coração quanto para meus sobrinhos! Estava no quarto de mamãe, senti ele do meu lado, a gente conversava, aquelas coisas que só o coração sabe. Mamãe apareceu na porta, eu me calei, não queria machucá-la porque sabia que só eu estava vendo ele. Mesmo assim, acariciei seu braço e, no final, perguntei se ele estava bem. A resposta foi, também, um sorriso afirmativo.

Foi um sonho de criança. Um beijo consolado de esperança. Uma certeza estranha de que, mesmo com a morte, há vida. Meus sobrinhos sabem disso, porque vivem isso. Para eles o tio, de alguma forma, continua vivo, na memória do presente que só um coração de criança é capaz de viver plenamente. Hoje, depois de dois meses, a saudade do meu irmão é ainda vivida como perda, mesmo contra toda certeza que a fé me dá. Queria continuar sonhando com ele, mas os sonhos nem sempre acontecem da forma como desejamos. Por isso, tenho meus sobrinhos pra me recordar que a morte é uma parte estranha da vida, feita de memórias vivas de quem amamos...
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sábado, 5 de dezembro de 2015

ALEXANDRE: A MEMÓRIA DO CORAÇÃO.

Existem fatos da vida que não são possíveis de serem contidos nas palavras. Não cabem nelas, escapam delas, se perdem pra além delas, em um mistério quase impossível de ser entendido.

A morte do meu irmão Alexandre foi/é um desses fatos. Eu nunca tinha vivido uma experiência de perda prematura e trágica com alguém tão íntimo e próximo a mim. Na verdade, ninguém na minha família. Acho que nos preparamos pra tudo, só nunca havíamos nos preparado pra uma perda desse tipo. Definitivamente, não...

Quando Gabi chegou na escola para me dar a notícia, minha primeira reação foi de continuar fazendo o que estava, sem acreditar. É aquele tipo de coisa que, simplesmente, a gente acha que nunca vai experimentar, que nunca vai acontecer com a gente. O sentido do que tinha realmente acontecido foi caindo no coração aos poucos, o chão foi desaparecendo sob pés aos poucos. Desapareceu completamente quando ouvi, ao telefone, a voz desesperada das minhas duas irmãs. Solucei no colo de Gabi, solucei no colo da minha sogra, mas confesso que, em um segundo momento, não consegui soluçar no colo de Deus. Com Deus eu briguei.

No caminho entre o Ceará e o Espírito Santo foi lutando com Ele, como Jacó para conquistar a bênção. Mas eu não queria bênção, queria começar a entender o que tinha acontecido. Queria entender o significado de tudo. Sim, queria entender o significado e não aceitar desígnios. Aliás, nunca acreditei na morte, de quem quer que seja, como designo divino. Deus não deseja a morte. Mas creio no sentido que pode estar escondido atrás e para além da morte ou que, a partir dela, pode ser transformado e pode transformar as pessoas e o mundo que as rodeia. Esse sentido que me custa entender... Porque? Pra que? Me perco no que não entendo...

Fico com as imagens daqueles dias gravadas na memória, um sofrimento quase que obrigatoriamente moral. Imagem do pranto de mamãe, de papai e de minhas duas irmãs. Imagem da dor de minha cunhada Fernanda. Imagem do silêncio inocente de meus sobrinhos, principalmente o de João Pedro, perguntando quando o pai chegaria e dizendo que ele estava trabalhando. Imagem de cada parente, amigo e amiga de infância. Imagem de Alexandre, estampado em cada um desses rotos.

Em casa, os dias que se sucederam foram de dor mesmo, intensa, daquelas que quando vem não se controla. A memória também faz sofrer. A presença de Alexandre era (e ainda é) como um vendaval que chega de repente, sem um critério definido. Apenas vem e, em resposta, a gente chora junto, como única reação de todo esse turbilhão de sentimentos. As vezes sentíamos necessidade de esconder e engolir o choro, não sei ao certo porque... As vezes desabávamos todos juntos de uma vez só. Penso que assim continuaremos, talvez por um tempo excepcionalmente longo, principalmente mamãe. Porém, a ampulheta da vida há de continuar girando...

Ah, o tempo! Me recordo que naqueles dias o tempo estava nublado. No dia seguinte ao velório e ao enterro do meu irmão, choveu muito. Saí pra rua, em frente ao Mar, como fazíamos quando éramos criança para jogar bola na praia e tomar banho de mar. Dessa vez eu estava sozinho. Mas pulei no mar assim mesmo... e ali, com a água da chuva caindo sobre a superfície, eu submerso, me escondi do mundo, me escondi de Deus. Mas não estava sozinho, Alexandre estava comigo. Foi então que eu entendi que mesmo sem compreender, existem coisas que somente o tempo é capaz de arrumar. Não somente o tempo passado ou o que há de vir, mas este mesmo aqui, agora, transformado por tudo aquilo que creio, mesmo brigando com Deus, quando todos os apoios humanos caem. A fé, dessa forma, aparece não só como consolo, mas, sobretudo, como resposta, como sentido. Alexandre, meu irmão, aos poucos, vai se transformando naquilo que ficará eternamente guardado na memória do coração, porque como diz Rubem Alves: “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”.
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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

QUAL A VANTAGEM DE SER JOVEM E CONSERVADOR?

Há uma tendência, mais ou menos generalizada, de uma parcela da juventude hoje se apegar a conjuntos de ideologias, crenças e visões de mundo marcadas por legalismos extremados e conservadores. Aqueles mesmos que oferecem sempre respostas prontas, à custa da supressão de uma liberdade conquista de forma tão cara... quando não se precisa pensar, desde que você pense de acordo com o que se diz para pensar ou  que aja da forma como se diz para agir. A ideia é suprimir toda incoerência que nasce da liberdade da pessoa para se estabelecer uma ordem social, moral, religiosamente pura, sem manchas, sem pecado. Em um mundo assim, não há lugar para o “pecado”, não há lugar para a humanidade, não há lugar para o erro... Suprime-se tudo que é humano, tudo que leva a pecar, o corpo, a carne, o coração, o erro... exalta-se tudo que é “divino”...

Nietzsche, que é um desses filósofos que viveram há alguns séculos atrás, porém, nunca morreu, pois seu pensamento continua soando aos ouvidos como um címbalo desconfortável, foi um dos primeiros a perceber e alertar para esse perigo: de que quando se tem muita necessidade de afirmar perfeições aparentes, é porque o que realmente importa já foi abandonado, esquecido, morto... Dizendo de outra forma, o homem moderno aprendeu a esquecer de Deus. Quis ser tão perfeito que sua perfeição não foi suportada nem pelo próprio Deus. Era o que Nietzsche chamava de Niilismo, isto é, o esvaziamento dos valores.

Esse é o perigo que vejo no coração e na mente de muitos jovens apegados, desordenadamente, a conservadorismos exacerbados, jogando fora aquilo que de mais sagrado tem, sua paixão, sua força vital de transformar, sua liberdade... Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que perde sua liberdade, afirma-se o individualismo, o egocentrismo... Ser você, e só você, mas desde que dentro de uma fôrma. Essa é a proposta...

Por outro lado, eu até entendo o que se passa no coração de muitos desses jovens. Hoje, a falta de referências que testemunhem uma vida de sentido é um tapa na cara. Parece não haver mais referências sociais, políticas, religiosas... Nossos heróis já não existem mais ou, se existem, se tornaram humanos demais... Eu entendo isso.

Porém, a falta de referenciais não é necessariamente falta, é distanciamento, esquecimento, como já alertava Nietzsche... Nesse mundo louco de informações contraditórias e híbridas, esquecemos e nos distanciamos do essencial. Nesse cenário é fácil ser pescado por qualquer proposta aparentemente mais fácil, rápida ou prazerosa. Ainda mais se acompanhada de alguém que saiba convencer pelo discurso... Para um jovem crítico, indignado, sedento por novidade, gente como Olavo de Carvalho, Silas Malafaia, Jair Bolsonoro, cai como uma luva. Eles, esses patifes da pós-modernidade, têm tudo o que esse jovem, aparentemente e por um tempo bem determinado, precisa: respostas prontas, cheias de ódio, preconceitos e falácias... Mas não as suportam por muito tempo... Ou seja, eles matam os deuses que criaram, pois não se sustentam mesmo, e logo em seguida se sentem perdidos... Há vazios que se preenchem, outros que permanecem vazios infinitamente...

Há, porém, aqueles que continuam afirmando sua vida, sem moralismos, sem subterfúgios conservadores, sem niilismos... Esses não buscam referenciais, pois suas referências nunca saíram de dentro deles... Esses, quando falam são ouvidos, quando apontam são seguidos, quando gritam são respeitados...

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terça-feira, 8 de julho de 2014

Quando Jerusalém em 2014 faz lembrar Berlim em 1933

Os velhos jornais no Ocidente não terão coragem de publicar essa matéria. Críticas muito duras ao governo israelense vêm da própria imprensa liberal do país. Precisam ser conhecidas, para que setores interessados em paz e justiça no Oriente Médio saibam que podem encontrar apoio em importantes setores da sociedade israelense. Talvez estejam ainda apáticos, por se sentirem isolados em meio à manada que segue a propaganda oficial e a mídia, hegemonizada pelos setores mais sectários (o diário Haaretz, onde foi publicado o texto a seguir tem 10% dos leitores; os demais jornais são controlados por magnatas estrangeiros da mídia conservadora).

Jornalista israelense escreve: cenários não são iguais, mas surto de ódio antipalestino estimulado por Telaviv envergonha história judaica.

O artigo faz analogias entre o ambiente de histeria em Israel, estimulado de forma oportunista por políticos da direita, e o que a Alemanha respirou, nos estágios iniciais do nazista. A publicação de artigos como esse em Israel, embora chocantes, pode ser vista com esperança de que setores existentes na própria sociedade israelense poderão, um dia, virar o jogo. Mas isso só ocorrerá se houver também forte pressão internacional.

Trata-se de salvar Israel do fascismo, do isolamento internacional, e de estabelecer entre este país e os palestinos bases para um futuro de paz e boa vizinhança, única forma de ambos escaparem da tragédia humanitária que avança no Oriente Médio. (Sérgio Storch)

Em 9 de março de 1933, os paramilitares camisas-marrons da SA nazista lançaram uma ofensiva. “Em diversas partes de Berlim, um grande número de pessoas, a maioria das quais aparentemente judias, foi atacado abertamente nas ruas e golpeado. Algumas foram feridas gravemente. A polícia pode apenas recolhê-las e levá-las ao hospital”, relatou o jornal londrino The Guardian. “Os judeus foram espancados pelos camisas-marrons até sangrar nas faces e cabeças”, prosseguiu o jornal. “Diante de meus olhos, paramilitares, babando como bestas histéricas, perseguiram um homem em plena luz do dia e o chicoteavam”, escreveu Walter Gyssling, no jornal.

Sei que você ultrajou-se antes mesmo de chegar ao final do parágrafo anterior. “Como ele ousa comparar incidentes isolados em Israel com a Alemanha nazista?”, você está pensando. “Isso é uma banalização ofensiva do Holocausto”.

É claro que você tem razão. Minha intenção não é traçar um paralelo. Meus pais perderam, ambos, suas famílias, durante a II Guerra Mundial. Não preciso ser convencido de que o Holocausto é um crime tão único que figura de modo destacado, mesmo nos anais de outros genocídios premeditados.

Mas sou um judeu e há cenas no Holocausto que estão gravadas indelevelmente em minha mente, ainda que não estivesse vivo à época. Quando assisti vídeos e vi imagens de gangues de judeus racistas de direita marchando pelas ruas de Jerusalém, cantando “Morte aos Árabes”, caçando árabes aleatoriamente, identificando-os por sua aparência ou sotaque, perseguindo-os em plena luz do dia, “babando como bestas histéricas” e golpeando-os antes que a polícia pudesse chegar, a associação histórica foi automática. Foi o que primeiro saltou à mente. Deveria ser, penso, a primeira coisa a saltar à mente de qualquer judeu.

Israelenses queimam a bandeira palestina e gritar slogans racistas durante um protesto anti-palestino em Gush Etzion.

Não é preciso dizer que Israel de 2014 não é “O Jardim das Bestas”, expressão que Erik Larson usou para descrever, em seu livro, a Alemanha de 1933. O governo de Telaviv não é tolerante com o vigilantismo ou os gângsters, como foram os nazistas por algum tempo, antes que os alemães começassem a se queixar de desordem nas ruas e dos danos à reputação internacional de Berlim. Não tenho duvidas de que a polícia fará todo o possível para prender os assassinos do garoto palestino cujo corpo calcinado foi encontrado numa floresta de Jerusalém. Até rezo para descobrirem que o assassinato não foi um crime de ódio [Em 6/7, a polícia israelense prendeu, de fato, pessoas – judeus ortodoxos de extrema-direita – que confessaram a autoria do crime, evidentemente motivado por ódio e racismo (Nota da Tradução)].

Mas não nos enganemos. As gangues de valentões judeus promovendo caçadas humanas não são uma aberração. Não foi um acesso incontrolável e único de raiva, que se seguiu à descoberta dos corpos de três estudantes sequestrados. Seu ódio inflamado não existe num vácuo. É uma presença marcante, que cresce a cada dia, engolfando setores cada vez mais amplos da sociedade israelense, alimentada num ambiente de ressentimento, isolamento e auto-vitimização, impulsionado por políticos e “especialistas” – alguns cínicos, outros sinceros – que se cansaram da democracia e suas brechas e que anseiam por ver a imagem de Israel associada a um único Estado, uma única nação e, em algum ponto desta espiral descendente, um único Líder.

Em apenas 24 horas, uma página do Facebook convocando “revanche” pelos assassinatos dos três garotos sequestrados recebeu dezenas de milhares de “curtidas”, e encheu-se de centenas de apelos explícitos para matar árabes, onde quer que estejam. Outra página, pedindo a execução de “extremistas de esquerda”, alcançou quase dez mil “likes”, em dois dias. Além disso, inúmeros textos na web e nas mídias sociais estão inundados de comentários dos leitores vomitando o pior tipo de bile racista e pedindo morte, destruição e genocídio.

Estes sentimentos foram ecoados nos últimos dias, ainda que em termos um pouco mais velados, por membros do Knesset [o Parlamento israelense], que citam versos da Torah sobre o Deus da Vingança e seu ordem de extermínio dos amalequitas. David Rubin, que descreve a si mesmo como ex-prefeito de Shiloh, foi mais explícito: em um artigo publicado no Israel Ntional News, ele escreveu: “Um inimigo é um inimigo e a única maneira de vencer esta guerra é destruir o inimigo, sem levar excessivamente em conta quem é soldado e quem é civil. Nós, judeus, atiraremos primeiro nossas bombas sobre alvos militares, mas não há, em absoluto, necessidade de nos sentirmos culpados por arruinarmos as vidas, matarmos ou ferirmos civis inimigos que são, quase sempre, apoiadores do Fatah ou do Hamas”.

Pairando sobre tudo isso estão o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo, que insistem em descrever o conflito com os palestinos em tons rudes de “preto e branco”, “bem contra o mal”; que descrevem os adversários de Israel como incorrigíveis e irredimíveis; que nunca demonstraram o mínimo sinal de empatia ou compreensão, diante das reivindicações de um povo que vive sob ocupação israelense por meio século; que fazem pronunciamentos voltados para desumanizar os palestinos aos olhos do público israelense; que perpetuam o sentimento público de isolamento e injustiça; e que, portanto, estão abrindo caminho para ondas de ódio homicida que começaram a emergir.

Algumas pessoas ensaiarão um paralelo entre a terrível violência de direita que varreu Israel depois dos Acordos de Oslo e a maré crescente de racismo. Em ambas, está implicado o premiê Netanyahu. De seus discursos virulentos na Praça Sion contra o governo da época ao assassinato de Yitzhak Rabin, à época; e de sua retórica antipalestina áspera à explosão horrível de racismo hoje.

Mas é uma resposta fácil demais. Não basta culpar Netanyahu, sem questionar o resto de nós, Judeus em Israel ou na Diáspora, os que fecham os olhos e os que desviam o olhar, os que retrata os palestinos como monstros desumanos e os que veem qualquer autocrítica como um ato de traição judaica.

A comparação certamente é válida: a máxima de Edmund Burke – “Para o triunfo [do mal], basta que os homens bons nada façam” – era correta em Berlim no início dos anos 1930 e permanece verdadeira em Israel. Se nada for feito para reverter a maré, o mal certamente triunfará – e não será preciso esperar muito.

CHEMI SHALEV
ON 07/07/2014CATEGORIAS: CAPA, GEOPOLÍTICA, MUNDO

In.: OUTRAS PALAVRAS.

Chemi Shalev

Jornalista israelense, nascido em 1953. Atua como correspondente e editor, nos Estados Unidos, do jornal Haaretz -- tanto em hebreu quanto em inglês. Publica um blog em inglês intitulado West of Eden, que trata das relações entre EUA e Israel.

 

 

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A ESPERANÇA POLÍTICA DO ADVENTO

Não há maior incoerência entre os cristãos de hoje do que pertencer a uma religião que não o faz olhar para as injustiças e desigualdades da sociedade em que se vive. Mais ainda, é anacrônico pensar que posso viver uma experiência de fé tão pessoal sem me comprometer com a construção de um mundo melhor, de um país melhor, de uma cidade melhor, de um bairro melhor, de uma família melhor... Exatamente por isso, a fé é uma opção Política, no sentido verdadeiramente grego (penso que não preciso esclarecer seu sentido verdadeiro, suponho que o bom entendedor já o consiga fazê-lo, caso contrário não precisa continuar lendo). E mesmo sem conhecer os gregos, Jesus de Nazaré, seu projeto de vida e sua missão partem de uma experiência fundamentalmente de fé-comprometida e, por isso mesmo, Política.
Há muitas inspirações bíblicas que afirmam isso, entre elas a pergunta desconcertante presente na Carta de Tiago: “...se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, do que adianta isso?” A vida do próprio Jesus pode nos ajudar a esclarecer o sentido verdadeiro daquilo que constantemente é chamado e narrado pelos textos bíblicos como “obras”. Sim, Jesus poderia somente curar feridas e doenças, somente oferecer acolhida a quem não tinha nada, poderia somente distribuir bens aos muitos pobres e miseráveis de seu tempo, mas ele foi além disso... Suas obras são marcadas por uma opção Política. O leproso curado é convidado a se apresentar àquelas instituições e àqueles que o afirmavam como socialmente impuro. À “pecadora” perdoada é devolvida a dignidade como mulher, esquecida pela cultura machista e pré-conceituosa. E tantos outros exemplos...
Para Jesus cada situação de “pecado”, dor e sofrimento escondiam uma raiz muito mais profunda: a injusta e a desigualdade. Raiz que não era possível ser extirpada definitivamente somente com a boa vontade de “obras” paliativas, ou como diria hoje, de “obras” assistencialistas. De que adiantaria perdoar a “pecadora” sem denunciar o falso moralismo religioso e social que gera e multiplica o verdadeiro pecado no mundo? De que adiantaria dar esmola sem lutar por uma sociedade onde não houvesse necessidade de se pedir para viver. É nesse sentido que uma religião, uma fé e uma experiência de Deus que não me torna politicamente comprometido, é morta, vazia e se converte em adereço, em enfeite. Por isso, Jesus foi a chegada de um novo tempo marcado pela esperança, construtora da Justiça e da Igualdade, contra toda injustiça e desigualdade política (social e religiosa). Jesus foi uma novidade, um adventus, palavra latina que significa “chegada”, “chegar a”...
O ano do calendário litúrgico cristão começa com o Tempo do Advento, exatamente as quatro semanas (representadas na simbologia das quatro velas) que antecedem o período natalino. Para muitos é um tempo de alegria assistencialista, seja por causa dos presentes na árvore de natal, seja por causa da presença e imagem da criancinha branca de olhos azuis no presépio. Para poucos, o Advento é um momento para se renovar a esperança política... por que, mesmo contra toda desesperança (no mundo, no Brasil, na cidade, no bairro e na família) Deus, ainda, insiste em revelar seu filho como fonte e anúncio da Justiça e da Igualdade, que supõe denúncia contra toda injustiça e desigualdade...

José Wilson Correa Garcia, blogueiro e educador.
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