sábado, 23 de abril de 2016

O LIXO DO DESCASO E DA INDIFERENÇA - Por Bárbara das Graças de Lima

NOTA: Há pouco tempo fiz, com meus alunos e alunas das turmas de terceiro ano da Escola Profissionalizante de Russas, uma aula de campo das disciplinas de Filosofia e Sociologia para trabalharmos a temática da Ética Ambiental, Sociedade e Meio Ambiente. O local escolhido foi a Comunidade do Alto São João, localizada na cidade de Russas, às margens de tudo: da BR 116, do lixão municipal e de tantas outras marginalizações. O relato que segue foi o testemunho humanista de uma aluna, Bárbara, a partir de seu olhar humanista. Qualquer tentativa de explicação se tornará injusta. Apenas leiam...



O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)

Fazendo menção ao poema de Manuel Bandeira, expresso um pouco daquilo que vi e senti em meio a um espaço geográfico composto por um lixo tóxico de descaso, indiferença e que, em meio a tudo isso, vivi algo que até então ficava apenas aos meus ouvidos, discursos e mais discursos da vida surreal daqueles e daquelas que tiram seu sustento dos lixões.

“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos.”

Vi sim, a imundície que somos capazes de produzir e que somos incapazes de buscar pôr em prática em um simples ato, a coleta seletiva. Não, a única coleta que percebi que estamos fazendo é a coleta de nossa hipocrisia, a que nos cega ao ponto de sermos indiferentes ao descaso dessas condições, que faz do ser humano um concorrente de urubus, porcos e insetos.

Ao sair de minha zona de conforto e ir até o “pátio” é que dei conta que o odor que senti naquele momento não chega perto ao que exala as políticas públicas que simplesmente adiam as possíveis melhorias dessas condições. Afinal, o prazo final para implantação dos chamados aterros sanitários instituída pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, era para 2014, mas pelo que consta no calendário, já se vão dias e anos deste prazo.

É inadmissível perceber, enquanto se prolongam os prazos, a vida dos que estão a mercê dessas condições vão se confundindo entre sacos, restos de comida, plástico, etc. E tudo aquilo que é “lixo” se confunde com aquilo que é vida. Vi que é muito fácil para uma visitante chegar, se indignar, trocar a roupa pois o cheiro ficou entravado, mas é muito difícil tomar parte da responsabilidade da formação disso tudo.

Talvez não seja o lixo literalmente falando que salta aos olhos e que faz tremer a pele, aperta o coração e faz a consciência ficar atordoada. Mas, sim, se dar conta de uma realidade que faz parte da vida de várias Marias, Josés, Inácios - e tantos que fogem ao alcance - e lembrar que junto desta realidade, há milhares de outras.

Senti silenciosamente além dos gemidos daqueles que ali encontrei, os gemidos da mãe natureza, tão maltratada, tão esquecida que participa da luta em favor da vida daqueles que estão lançados, muitas vezes, à sorte de encontrar os materiais que possam gerar um maior lucro... até mesmo o alimento do dia.

“O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato.”

O poema de Bandeira finaliza com o espanto de que nenhum animal que ali estava era ele mesmo. Era e é o homem que se prostra às condições que o faz bicho, que o faz sentir vergonha. Porém, mesmo diante de tudo isso que testemunhei e compartilho, apesar de não ser um rato, um gato ou um cão e sim um ser humano, este possui e sempre irá possuir em sua pele, em seu coração e sua consciência a vontade mais singela, a de ser homem nas legitimidade das condições humanas.

Talvez eu tenha sido um pouco quanto humanista nas entrelinhas, mas isso foi reflexo do que de humano não percebi em todo aquele lixo que estava aos meus olhos e que em algum lugar em meio a todo ele, estava meu lixo, não somente o lixo no seu contexto literal, mas também o meu lixo de indiferença e descaso.

“O bicho, meu Deus, era um homem.”

Por, Bárbara das Graças de Lima.
Aluna do terceiro ano de Comércio da Escola Profissionalizante de Russas, Prof. Walquer Cavalcante Maia.

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