NOTA: Há pouco
tempo fiz, com meus alunos e alunas das turmas de terceiro ano da Escola
Profissionalizante de Russas, uma aula de campo das disciplinas de Filosofia e
Sociologia para trabalharmos a temática da Ética Ambiental, Sociedade e Meio
Ambiente. O local escolhido foi a Comunidade do Alto São João, localizada na
cidade de Russas, às margens de tudo: da BR 116, do lixão municipal e de tantas
outras marginalizações. O relato que segue foi o testemunho humanista de uma
aluna, Bárbara, a partir de seu olhar humanista. Qualquer tentativa de
explicação se tornará injusta. Apenas leiam...
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)
Fazendo menção ao poema de Manuel Bandeira, expresso um pouco daquilo
que vi e senti em meio a um espaço geográfico composto por um lixo tóxico de
descaso, indiferença e que, em meio a tudo isso, vivi algo que até então ficava
apenas aos meus ouvidos, discursos e mais discursos da vida surreal daqueles e
daquelas que tiram seu sustento dos lixões.
“Vi ontem um bicho na imundície do
pátio catando comida entre os detritos.”
Vi sim, a imundície que somos capazes de produzir e que somos incapazes
de buscar pôr em prática em um simples ato, a coleta seletiva. Não, a única
coleta que percebi que estamos fazendo é a coleta de nossa hipocrisia, a que
nos cega ao ponto de sermos indiferentes ao descaso dessas condições, que faz
do ser humano um concorrente de urubus, porcos e insetos.
Ao sair de minha zona de conforto e ir até o “pátio” é que dei conta que
o odor que senti naquele momento não chega perto ao que exala as políticas
públicas que simplesmente adiam as possíveis melhorias dessas condições. Afinal, o prazo final para
implantação dos chamados aterros sanitários instituída pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, era para
2014, mas pelo que consta no calendário, já se vão dias e anos deste prazo.
É inadmissível perceber, enquanto se
prolongam os prazos, a vida dos que estão a mercê dessas condições vão se
confundindo entre sacos, restos de comida, plástico, etc. E tudo aquilo que é “lixo”
se confunde com aquilo que é vida. Vi que é muito fácil para uma visitante
chegar, se indignar, trocar a roupa pois o cheiro ficou entravado, mas é muito
difícil tomar parte da responsabilidade da formação disso tudo.
Talvez não seja o lixo literalmente falando que salta aos olhos e que
faz tremer a pele, aperta o coração e faz a consciência ficar atordoada. Mas,
sim, se dar conta de uma realidade que faz parte da vida de várias Marias,
Josés, Inácios - e tantos que fogem ao alcance - e lembrar que junto desta
realidade, há milhares de outras.
Senti silenciosamente além dos gemidos daqueles que ali encontrei, os
gemidos da mãe natureza, tão maltratada, tão esquecida que participa da luta em
favor da vida daqueles que estão lançados, muitas vezes, à sorte de encontrar
os materiais que possam gerar um maior lucro... até mesmo o alimento do dia.
“O bicho não era um cão, não era
um gato, não era um rato.”
O poema de Bandeira finaliza com o espanto de que nenhum animal que ali
estava era ele mesmo. Era e é o homem que se prostra às condições que o faz
bicho, que o faz sentir vergonha. Porém, mesmo diante de tudo isso que
testemunhei e compartilho, apesar de não ser um rato, um gato ou um cão e sim
um ser humano, este possui e sempre irá possuir em sua pele, em seu coração e
sua consciência a vontade mais singela, a de ser homem nas legitimidade das
condições humanas.
Talvez eu tenha sido um pouco quanto humanista nas entrelinhas, mas isso
foi reflexo do que de humano não percebi em todo aquele lixo que estava aos
meus olhos e que em algum lugar em meio a todo ele, estava meu lixo, não
somente o lixo no seu contexto literal, mas também o meu lixo de indiferença e
descaso.
“O bicho, meu Deus, era um homem.”
Por, Bárbara
das Graças de Lima.
Aluna do terceiro ano de Comércio da Escola
Profissionalizante de Russas, Prof. Walquer Cavalcante Maia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário