quarta-feira, 9 de março de 2016

A NOITE ESCURA DA ALMA

Passei minha vida de criança, adolescente e jovem quase inteira na mesma casa, no mesmo bairro. E ainda hoje, depois de mais de 20 anos morando fora, me pego lembrando dos pequenos detalhes do meu bairro, de cada esquina, de cada detalhe de suas praças, de cada castanheira. Muito disso já não existem mais da forma como lembro, mas para mim é como se nunca tivesse deixado de existir. E o que me faz recordar todos esses pequenos e essenciais detalhes foram as brincadeiras de “pique esconde” de uma infância mística e pura. Entre os momentos de acharmo-nos e perdermo-nos uns dos outros conhecíamos aquilo que ficou eternamente gravado na memória do coração.

Hoje, quando escutava uma interpretação da poesia “A noite escura da alma” do místico espanhol São João da Cruz lembrei dessa experiência da nossa infância.

Toda experiência mística cristã, aquela de união profunda com Deus, acontece a partir de uma experiência de vazio e aridez, que São João da Cruz traduziu por “noite escura”. Outros grandes místicos como Teresa D´Ávila, Inácio de Loyola, Madre Teresa de Calcutá, etc. viveram esse tipo de experiência. Cada pessoa, em algum momento de sua vida, viveu ou viverá algo parecido com essa experiência. A “noite escura” é o silêncio de Deus, é a falta de sentido, é a ausência de respostas. Nela, Deus se esconde como uma criança e cada vez que estamos nos aproximando de encontrá-lo, Ele se esconde ainda mais. Madre Teresa de Calcutá viveu essa ausência solitária de Deus por mais de 60 anos, até o momento de sua morte. Seus escritos nos deixaram essa misteriosa verdade. E pra que? Eis a profundidade do mistério do encontro da Alma com Deus. O que a Alma mais procura é o que ela mais conhece, sem saber. Conhecerá definitivamente quando se unir definitivamente a Deus. Até lá, continuará brincando de “pique esconde”, conhecendo cada parte Daquele que se mostra e se esconde na nossa “noite escura”.



THE DARK NIGHT OF THE SOUL – A NOITE ESCURA DA ALMA
(Interpretação de Loreena McKennitt, no álbum “The Mask and Mirror”)

Em uma noite escura
A chama do amor queimava em meu peito
E, no clarão de uma lanterna
Fugi de casa enquanto todos dormiam
Encoberto pela noite
e pelo meu destino incerto rapidamente corria
O véu ocultava os meus olhos
Enquanto todos em casa repousavam como mortos.

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Adentro esta noite enevoada
Em segredo, para além daquela visão mortal
Sem um guia ou uma luz
Senão a que ardia tão profundamente em meu coração.
Esta chama que me guiava
Com brilho mais claro que o do sol do meio-dia
Para onde ele me esperava, imóvel 
Era um lugar onde ninguém mais podia chegar 

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Dentro do meu palpitante coração
Que se guardou inteiramente para ele
Ele mergulhou no seu sono
Debaixo do cedros, todo o meu amor eu lhe dei
E, pelos muros da fortaleza
O vento roçava seus cabelos contra a sua testa.
E com sua mão macia
Acariciava todos os meus sentidos possíveis

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Eu me entreguei a ele 
E repousei minha face nos seios do meu amor
A inquietação e a tristeza tornaram-se escuras
Como uma enevoada manhã que se transforma em luz
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.



CANÇÃO DA ALMA (Poema original de São João da Cruz)

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que, inteiro, para Ele só guardava
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, O regalava,
E dos cedros o leque O refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.



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