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domingo, 17 de janeiro de 2016

A MORTE SEGUNDO MEUS SOBRINHOS

A perda do meu irmão Alexandre foi uma das experiências mais difíceis que eu já vivi. Não só eu, mas a família de uma forma geral. Não estávamos preparados para ela. Na verdade, nunca se está.

Os dias que passamos juntos foram intensos, envoltos em muitos sentimentos, questionamentos, silêncios. Entre nós, cada um a seu tempo e da sua maneira, a dor era vivida, experimentada e externada. Mas ficava observando meus sobrinhos e notava que, neles, era diferente...

A criança parece ter uma experiência completamente diferente de nós adultos da morte. Eles sentem, mas não entendem. Pelo menos não da forma como nós entendemos.
 
No dia seguinte ao enterro de Alexandre, saí com João Pedro pra frente da praia. Saí com medo, porque tinha certeza que ele falaria do pai e eu não teria força ou coragem pra responder. Ele já tinha começado a entender que algo tinha acontecido com o pai que machucava todo mundo, por isso não falava. Mas comigo ele falava, talvez pela aparência, não sei... Não deu outra. No meu colo sussurrou quase como um segredo sagrado: "Papai tá vindo?". Abracei ele forte, solucei... Depois de um tempo eu disse que o papai dele tinha ido morar com Papai do céu. Não sei se foi a melhor resposta, mas foi a que saiu do coração. Ele com uma certeza dolorosamente ingênua, termina: "papai tá trabalhando!". Me calei...

No coração de uma criança a morte não existe da forma como existe pra nós. Porque para eles a pessoa continua viva, mesmo que não fisicamente presente porque está distante, fazendo as coisas que sempre fez... Para eles a morte não é perda.

Algum tempo depois Pedro Henrique, meu sobrinho mais velho, compartilhava conosco que tinha sonhado com o tio. No sonho, experimentava a naturalidade das coisas que Alexandre sempre fez com ele. No sonho, saíram pra passear de barco, jogaram vídeo game, essas coisas simples da vida. Na volta pra casa, se despediram, o tio andando sobre a água (porque essas coisas são possíveis nos sonhos), Pedro perguntou se ele ia ficar bem. A resposta foi um sorriso afirmativo.

Curiosamente, também sonhei com ele. Não costumo sonhar com pessoas que já faleceram, mas com meu irmão foi um sonho diferente, porque foi um sonho de paz, tão real para o coração quanto para meus sobrinhos! Estava no quarto de mamãe, senti ele do meu lado, a gente conversava, aquelas coisas que só o coração sabe. Mamãe apareceu na porta, eu me calei, não queria machucá-la porque sabia que só eu estava vendo ele. Mesmo assim, acariciei seu braço e, no final, perguntei se ele estava bem. A resposta foi, também, um sorriso afirmativo.

Foi um sonho de criança. Um beijo consolado de esperança. Uma certeza estranha de que, mesmo com a morte, há vida. Meus sobrinhos sabem disso, porque vivem isso. Para eles o tio, de alguma forma, continua vivo, na memória do presente que só um coração de criança é capaz de viver plenamente. Hoje, depois de dois meses, a saudade do meu irmão é ainda vivida como perda, mesmo contra toda certeza que a fé me dá. Queria continuar sonhando com ele, mas os sonhos nem sempre acontecem da forma como desejamos. Por isso, tenho meus sobrinhos pra me recordar que a morte é uma parte estranha da vida, feita de memórias vivas de quem amamos...
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domingo, 6 de julho de 2014

A memória sexual: base biológica da sexualidade humana.

Para compreendermos em profundidade a sexualidade humana, precisamos entender que ela não existe isolada, mas representa um momento de um processo maior: o biogênico.

A nova cosmologia nos habituou a considerar cada realidade singular dentro do todo que vem sendo urdido já há 13,7 bilhões de anos e a vida há 3,8 bilhões de anos. As realidades singulares (elementos físico-químicos, microorganismos, rochas, plantas, animais e seres humanos) não se juxtapõem mas se entrelaçam em redes interconectadas constituindo uma totalidade sistêmica, complexa e diversa.

Assim, a sexualidade emergiu há um bilhão de anos como um momento avançado da vida. Depois da decifração do código genético por Crick e Dawson nos anos 50 do século passado. sabemos hoje comprovadamente que vigora a unidade da cadeia da vida: bactérias, fungos, plantas, animais e humanos somos todos irmãos e irmãs porque descendemos de uma única forma originária de vida. Temos, por exemplo, 2.758 genes iguais aos da mosca e 2.031 idênticos aos do verme.

Esse dado se explica pelo fato de que todos, sem exceção, somos construídos a partir de 20 proteinas básicas combinadas com quatro ácidos nucleicos (adenina, timina, citosina e guanina). Todos descendemos de um antepassado ancestral comum, originando a ramificação progressiva da árvore da vida. Cada célula de nosso corpo, mesmo a mais epidérmica, contém a informação básica de toda vida que conhecemos. Há, pois, uma memória biológica inscrita no código genético de todo organismo vivo.

Assim como existe a memória genética, existe também a memória sexual que se faz presente na nossa sexualidade humana. Consideremos alguns passos desse complexo processo. O antepassado comum de todos os seres vivos foi, muito provavelmente, uma bactéria, tecnicamente chamada de procarionte que significa um organismo unicelular, sem núcleo e com uma organização interna rudimentar. Ao se multiplicar rapidamente por divisão celular (denominada mitose: uma célula-mãe se divide em duas células-filhas idênticas) surgiram colônias de bactérias. Reinaram, sozinhas, durante quase dois bilhões de anos. Teoricamente a reprodução por mitose confere imortalidade às células, pois seus descendentes são idênticos, sem mutações genéticas.

Por volta de dois bilhões de anos atrás, ocorreu um importante fenômeno para a posterior evolução, somente suplantado pelo surgimento da própria vida: a irrupção de uma célula com membrana e dois núcleos. Dentro deles se encontram os cromossomos (material genético) nos quais o DNA se combina com proteinas especiais. Tecnicamente é chamada de eucarionte ou também célula diplóide, isto é, célula com núcleo duplo.

A importância desta célula binucleada reside no fato de nela se encontrar a origem do sexo. Em sua forma mais primitiva, o sexo significava a troca de núcleos inteiros entre células binucleadas, chegando a fusão em um único núcleo diplóide, contendo todos os cromossomos em pares. Até aqui as células se multiplicavam sozinhas por mitose (divisão) perpetuando o mesmo genoma. A forma eucariota de sexo, que se dá pelo encontro de duas células diferentes, permite uma troca fantástica de informações contidas nos respectivos núcleos. Isso origina uma enorme biodiversidade.

Surge, pois, um novo ser vivo, a célula que se reproduz sexualmente a partir do encontro com outra célula. Tal fato já aponta para o sentido profundo de toda sexualidade: a troca que enriquece e a fusão que cria pradoxalmente a diversidade. Esse proceso envolve imperfeições, inexistente na mitose. Mas favorece mutações, adaptações e novas formas de vida.

A sexualidade revela a presença da simbiose (composição de diferentes elementos) que, junto com a seleção natural, representa a força mais importante da evolução.

Tal fato vem carregado de consequências filosóficas. A vida é tecida de cooperação, de trocas, de simbioses, muito mais do que de luta competitiva pela sobrevivência. A evolução chegou até o estágio atual graças à essa lógica cooperativa entre todos.

Deixando de lado muitos outros dados fundamentais e indo diretamente à sexualidade humana devemos reconhecer que ela está embasada num bilhão de anos de sexogênese. Mas possui algo singular: o instinto se transforma em liberdade, a sexualidade desabrocha no amor. A sexualidade humana não está sujeita ao ritmo biológico da reprodução. O ser humano se encontra sempre disponível para a relação sexual, porque esta não se ordena apenas à reprodução da espécie mas também e principalmente à manifestação do afeto entre os parceiros. O amor reorienta a lógica natural da sexualidade como instinto de reprodução; o amor faz com que a sexualidade se descentre de si para se concentrar no outro. O amor torna os parceiros preciosos uns para os outros, únicos no universo, fonte de admiração, de enamoramento e de paixão. É por causa dessa aura que o amor se revela como o âmbito da suprema realização e felicidade humana ou, no seu fracasso, da infelicidade e da guerra dos sexos.

O ser humano precisa aprender a combinr instinto e amor. Sente em si, necessidade de amar e de ser amado. Não por imposição, mas por liberdade e espontaneidade. Sem essa liberdade de quem dá e de quem recebe, não existe amor. É a liberdade e a capacidade de amorização que constroem as formas de amor que humanizam o ser humano e lhe abrem perspectivas espirituais ultrapassando em muito as demandas do instinto.

Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro, recém falecida, Feminino-masculino: um novo paradigma para uma nova relação, Record 2010. Esse artigo é pensandoem sua homenagem pois com ela trabalhei mais de vinte anos.

In.: Leonardo Boff

 

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

KAIRÓS: O TEMPO NOSSO DE CADA DIA

Diário remanso: encontros, acontecimentos, leituras... Intuições.
O clarão de uma anedota. Uma angústia, uma esperança.
Não à crônica; sua decantação. Vinho descansado.
Ou o instante de uma borboleta. Ou um latido.
Ou Deus passando como uma ventania, como uma brisa.
Nossa história em suas horas: o Kairós que alguém detecta.
O círculo concêntrico do remanso.
E o borbulhar do manancial.
(Pedro Casaldáliga)

Um dia desses, quando o coração parece estar mais propenso a entender algumas verdades que passam despercebidas aos sentidos, ouvi um comentário que ficou ressoando no coração como uma dúvida que não pode ser respondida imediatamente e como poesia que precisa ser apenas ruminada, decantada. Ouvia que, ultimamente, o tempo tem passado mais rápido que o normal, que os anos e meses parecem estar mais curtos... E, de fato, depois de abrir um bate papo sobre o assunto na sala de aula, comentávamos e compartilhava-mos essa mesma impressão. O tempo está mais rápido, se tornou relativo, parece ter perdido seu caráter absoluto.


Porém, no silêncio daqueles mistérios que só são possíveis na solidão, fiquei me perguntando: será mesmo que é o tempo que está diminuindo ou somos nós que estamos ficando maiores, com o coração maior, com a mente maior? Aliás, mais cheios de tudo. Antes, quando era mais criança e, por isso mesmo, dava mais atenção ao essencial, lembro que conseguia parar mais tempo para fazer certas coisas simples... coisas que parecem ter deixado de ser simples. Hoje, não consigo mais sentar, uma hora se quer do nosso dia, para uma boa conversa, ou para simplesmente contemplar aquelas coisas simples e lindas – e por isso mesmo essenciais – que passam despercebidas como um suspiro de saudade... Hoje não consigo mais escutar Deus como quando era criança, ou deitar em seu colo materno-paterno para simplesmente lembrar quem sou, de onde vim e para onde vou...


Há pouco tempo atrás nosso coração e nossa mente não precisava de assimilar tantas coisas e tanta informação ao mesmo tempo. Fazíamos poucas coisas, mas sentíamos que o pouco que fazíamos deveria ser bem feito. Hoje, tudo é colocado diante da gente ao mesmo tempo, tudo precisa ser feito no mínimo de tempo possível e o máximo possível. Será que ao aprender a quantificar as coisas não esquecemos também de qualificá-las? Ou mais sério ainda: será que, nessa mesma sociedade, não aprendemos a agir com as pessoas da mesma forma que agimos com as coisas? Estamos coisificando as pessoas? Estamos nos tornando mais cegos, surdos e mudos, pois perdemos a capacidade de enxergar o essencial, de ouvir o essencial, de falar o essencial... Perdemos a noção do tempo.


Sim, o tempo diminuiu. Aquele tempo que aprendemos na escola, o linear, o histórico, aquele sucessivo punhados de fatos que acumulamos na memória. Esqueceram de nos ensinar que o tempo é, sobretudo, cíclico, Kairós, tempo favorável, tempo de graça... Instante presente, aquele onde o essencial da vida se escancara diante de nós, ora como mistério, ora como graça. Mais cegos, mais surdos e mais mudos, as coisas passam mais rápido, assim como os anos, os meses, os dias e, talvez, assim como as pessoas... Porém, quando assumimos a grandiosidade do mistério que nos rodeia como tempo favorável e tempo de graça, onde o presente infinito e eterno é o único tempo que vale a pena de se viver, os anos, meses, dias e as pessoas não passam, simplesmente ficam... São eternizadas, na memória e no coração.

José Wilson Correa Garcia, em algum tempo desses...
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domingo, 16 de junho de 2013

O PARAÍSO - Rubem Alves

Dizem os fundamentalistas... Ah! Você não sabe quem são eles. Vou explicar. Fundamentalistas são pessoas muito religiosas (se católicas, protestantes, muçulmanas ou judias pouco importa, pois todas pensam do mesmo jeito). Elas pensam que Deus é dono de um jornal. Não só dono como também redator-chefe, repórter e linotipista. Nesse jornal, que se chama O Correio Divino, tudo sai diretamente da pena de Deus, os editoriais, as reportagens, os artigos, os obituários, com a devida autenticação dos carimbos do cartório dos anjos. Por essa razão, tudo o que é ali publicado tem de ser acreditado tintim por tintim, nos seus mínimos detalhes: Deus não espalha boatos falsos, só para aumentar a venda. O Correio Divino publica só o que aconteceu de verdade, não importa quão fantástico possa parecer; para Deus tudo é possível, como o portento de Josué, que fez parar o Sol no meio do céu, e o do profeta Jonas, engolido e vomitado por um peixe, depois de gozar de sua hospitalidade visceral por três dias.
Pois eles, baseados no tal jornal, afirmam que Deus plantou um jardim maravilhoso há muito tempo, quase 6 mil anos, muito longe, lá pelas bandas do Iraque. Por um desentendimento entre Deus, o casal de jardineiros e uma cobra, Deus expulsou os dois de lá e fechou a porta do Paraíso, que nunca mais foi achado. Por lá, hoje, só se acha areia, guerra e petróleo, e dizem os entendidos que foi isso que restou do jardim de Deus, transformado em óleo preto por artes do Demo.
Acho um desperdício. Se o que Deus queria era só plantar um paraisinho, por que gastar tempo e energia fazendo um mundo tão grande, tão bonito, o Rio Amazonas, o Himalaia, o mar, as praias com coqueiros, os riachinhos nas montanhas, o Pantanal e o Lago de Como, que é onde estou agora? Teria sido muito mais lógico fazer um mundo do tamanho do jardim, seria mais fácil tomar conta, e assim tudo caberia num asteróide, como aquele onde morava o Pequeno Príncipe.
Claro que isso tudo que falei é brincadeira, pois não acredito em nada disso. Eu leio os textos sagrados como quem lê poesia e não como quem lê jornal. Prefiro pensar que Deus é poeta a imaginá-lo como dono de um jornal. Existirá ofensa maior para um poeta que perguntar se o seu poema é reportagem?
Sendo esse o caso, posso bem sonhar que Deus não fez um Paraíso só, ele fez muitos, tantos quantas são as suas criaturas, para cada uma delas um Paraíso diferente, e os espalhou pelo mundo inteiro. Em volta de cada pessoa existe um Paraíso diferente do seu, como se fosse uma bolha transparente. Você já viu?
Não. Você nunca viu. Sugiro consultar um oculista, alguma coisa deve estar errada com os seus olhos, você não está vendo direito. Diagnóstico sugerido pelos mesmos poemas sagrados, que atestam que o primeiro dano do pecado foi estragar nossa visão. Com o que concorda Alberto Caeiro, oftalmologista de renome, que diz que não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. O mundo está cheio de cegos com vista perfeita.
Quem oferece colírios curativos para olhos cegos (muito embora só sejam cegos para o belo, tendo vista muito boa para o feio!) é um místico medieval, Ângelo Silésio, que escreveu num dos seus poemas: Quem, dentro de si mesmo, um Paraíso não for capaz de encontrar, não será capaz também de, um dia, nele entrar...
Não quero fazer inveja a ninguém, mas eu estou no Paraíso, aqui na Itália, num castelo, às margens do Lago de Como, cercado de montanhas, que eu vejo agora através da janela do meu quarto enquanto escrevo. São três e meia da tarde, o Sol brilha forte, o castelo está circundado de parques, mais de dez quilômetros de caminhos pelos bosques de coníferas altíssimas, ninféias, fontes com repuxos, o cheiro da resina dos pinheiros vai até o fundo da alma, o silêncio só é quebrado pelo apito dos barcos lá longe e pelo repicar do sino da igreja que acabou de bater. Bateu também dentro de mim uma saudade não sei de quê, eu sou uma saudade imensa cercada de carne por todos os lados...
Fiquei imaginando Deus, andando pelos caminhos onde eu andei, no vento fresco da tarde, do jeitinho como diz o texto sagrado. Ele deve ter sentido a mesma coisa que eu senti: quanto maior era a beleza, maior também era a tristeza. A beleza, em solidão, é sempre triste. Beleza solitária dá vontade de chorar. Para ser boa, a beleza exige, pelo menos, dois pares de olhos tranqüilos se olhando, dois pares de mãos amigas brincando, e bocas de voz mansa sussurrando...
Acho que foi naquele momento, quando Deus sentiu tristeza ao ver a beleza, que ele entendeu por que Adão estava tão deprimido: deuses e homens são muito parecidos... E foi então que ele aprendeu – pois Deus também aprende – que não é bom que o homem fique só. Fez dormir Adão, e ordenou que aquilo que ele sonhasse, aquilo mesmo acontecesse. E ele sonhou com dois olhos tranqüilos, duas mãos brincalhonas, e uma voz mansa... E assim nasceu a mulher, o sonho mais belo do homem, para trazer alegria ao Paraíso...
Fico mesmo é com dó de Deus. Os entendidos, que privam de sua vida íntima, teólogos, clérigos, papas e cardeais, dizem que não devo me preocupar, pois Ele está sempre em boa companhia, tem mãe puríssima, que nasceu sem pecado. É um filho obedientíssimo, que sempre faz o que lhe é mandado. Dizem que isso basta para a felicidade de Deus.
Discordo. Sem o olhar dos olhos apaixonados, sem o toque das mãos brincalhonas, sem o som da voz mansa, nem Deus pode se sentir feliz.
Essa é uma felicidade possível aos homens. Mas, e Deus? Andando sozinho pelo jardim. Coitado! Tanta beleza. Tanta tristeza...
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quinta-feira, 6 de junho de 2013

O SILÊNCIO DA BORBOLETA...

Há dias em que tento silenciar e há silêncios que são mais incômodos que qualquer barulho. Quando o interior não quer fazer silencio não há nada que faça aquietar a alma... Ela sempre deseja ir além do corpo, que parece limitá-la como se estivesse presa a ele, como se quisesse libertar-se dele. Tem gente que diz que o corpo é a prisão da alma, como se fossem duas coisas que pudessem se separar. Eu, particularmente, não acredito que Deus seria tão imperfeito ao ponto de me dar uma individualidade tão volátil ao ponto de separá-la. Não! Creio que o ser humano é uma unidade e uma individualidade perfeitamente harmônica e indivisível, mesmo que às vezes essa harmonia não seja perfeitamente vivida por causa dos barulhos e ruídos, sejam os de fora ou os de dentro.
Em certos instantes a vida me presenteia com a possibilidade de transformá-la a partir do silêncio. São momentos raros, às vezes é uma brisa suave que sopra, outras um pousar de uma borboleta, outras vezes um beijo e um abraço sincero de quem se ama. O fato é que o silencio que transforma sempre me joga pra dentro de mim mesmo e depois me lança pra fora ao encontro também de mim mesmo. Encontro-me aqui dentro, mas também ali onde minha vida se converge a todos e a tudo.
Lembro que em 2002 fiz um retiro espiritual com os jesuítas, em uma ilha na cidade de Itaparica – Salvador, na Bahia. É a experiência chamada Exercícios Espirituais Inacianos, que podem ser vividos em 30 dias corridos. E foi assim, trinta dias inteiro rodeado por um silêncio absurdamente transformador. Recordo que nos primeiros dias era quase doloroso silenciar, deixar o meu tempo se transformar no tempo de Deus. Eu queria tudo muito rápido, logo... Esquecia que tinha 30 dias pela frente pra aprender a calar. E foi com muito custo e, evidentemente, muita paciência que fui aprendendo aos poucos a falar para calar...
Hoje é difícil eu cavar tempo para fazer novamente aquela experiência transformadora de silêncio durante 30 dias. Mas ela deixou marcas tão profundas em mim que o silêncio se tornou uma necessidade cotidiana. Descobri que as transformações que dão verdadeiramente sentido acontecem no silêncio, exatamente como a metamorfose do casulo que carrega a larva precisa de silêncio para transformar-se em borboleta... Depois de transformada, a borboleta entra em um ritmo frenético. Porém, ela não esquece que necessita do silêncio... é o que vemos sempre que uma borboleta está pousada, ela apenas – e por necessidade vital – silencia, fica imóvel, as vezes movimentando bem lentamente suas asas acostumadas ao ritmo louco de sua curta vida... Assim também acontece comigo. Adélia Prado expressa tudo isso do seu jeito simples e profundo quando afirma: “Uma borboleta pousada ou é Deus ou é nada”.

José Wilson Correa Garcia - em um desses silêncios qualquer...
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terça-feira, 5 de março de 2013

AMOR - Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

HOJE PENSEI MUITO NA MINHA INFÂNCIA

Hoje pensei muito na minha infância. E lembrar-se dela me fez recordar, isto é, fiz passar novamente pelo coração, a verdade de que a Vida é realmente um mistério! Sim, lembrei que não tinha preocupações, que tudo parecia ser tão fácil, exatamente porque quase tudo não dependia simplesmente de mim. Lembrei que não tinha cerimônias com muitas coisas, por exemplo, quando comia bolacha (ou biscoito) amassado na minha tigela de café com leite. Ou quando corríamos com os pés descalços enquanto mamãe gritava o nosso nome chamando pra tomar banho, porque o horário de ir à escola já se aproximava. Ou quando ainda brincávamos de pique esconde, como uma espécie de presságio sobre o futuro inevitável que se aproximava, quando deixaríamos de ser apenas crianças e sentiríamos necessidade, de vez em quando, de se esconder do mundo...


Não me sinto mais criança, reconheço que sou adulto, tenho outras demandas, outras responsabilidades, outros desejos, outros sonhos... Mas há algo dentro de mim que não permite que minha infância seja simplesmente apagada. E é por isso que hoje recordei que a Vida é realmente um mistério, porque ela sempre exige da gente uma liberdade que a gente só têm quando é criança. Não qualquer liberdade, mas aquela que nos faz reconhecer que a vida não depende só da gente e que, por isso mesmo, devemos sempre confiar... É exatamente por isso que a lembrança mais nítida e surpreendentemente distante que tenho da minha infância é de quando eu ainda estava de colo, talvez com pouco mais de um ano. Não lembro ao certo o que estava se passando a minha volta naquele dia – é que a gente quando é muito criancinha não se preocupa muito com aquilo que está para além daquilo que nossos sentidos e sentimentos podem absorver. O fato é que lembro de papai me carregando no colo. Estava descendo comigo a escadaria da Igreja e no meio do caminho para pra me mostrar uns miquinhos (sim, macaquinhos) que viviam por ali em uma casinha de madeira suspensa por um galho seco... e papai jogava alguma coisa pra eles pegarem, e eu ficava maravilhado com aquilo – é que quando a gente é criança a gente, também, tem uma sensibilidade mais aguçada, o que nos torna capaz de se maravilhar mais facilmente com aquilo que hoje consideramos simples e, por vezes, banal.


Enfim, acho que há algo de mágico na infância que nos ensina que a vida é, sobretudo, um ato de confiança – exatamente como confiava no colo de meu pai, ou na voz da minha mãe. E que o tempo, aquele mostro que parece engolir com sua boca enorme os anos de nossa liberdade, nada mais é do que o instante presente que temos para confiar, amando com intensidade e cuidado da criança que misteriosamente nos habita e, oxalá, sempre habitará...
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DESEJO DE UNIDADE


Não tenho inclinação para ser melodramático, nem tão pouco excessivamente otimista comigo mesmo, nem muito menos com os outros. Na verdade às vezes me sinto como uma barca a deriva, balançando entre pessimismos e realismos... E entendo que assim mesmo, de vez em quando, é necessário que seja, como se essa fosse a única forma de não esquecer que a Vida não é aquele punhado de sonhos que aprendi nos tempos de minha infante liberdade...

Sinto, na verdade, que ela, a Vida, é um emaranhado caótico de forças antagônicas que brincam com meu corpo. As vezes os pés caminham por caminhos que não são possíveis às mãos tocarem. A cabeça fala de coisas que o coração não sente, ou o coração sente coisas que não é possível à cabeça entender...

Me sinto assim, disperso de mim mesmo, partido em pedaços que não se encontram, como se o elemento ou o elo que liga as minhas partes estivesse, também, disperso...

...Falando em elo, tem tempo que não deito a cabeça no colo de Deus... lá onde sempre consegui ser eu mesmo, sem máscaras, humanamente eu, simplesmente Ele... Sinto saudades da Sua voz gritando do Mar, "não temas", enquanto sentia medo na barca. Ou quando sentava ao Seu lado, na mesa, pra comer do mesmo pão e beber da mesma água ou vinho, que seja... Sinto saudades de quando, sentados diante da arte ou daquelas coisas simples que esquecemos de contemplar, ríamos e chorávamos juntos, dos meus desmantelos e das minhas doidices... Sem julgamentos, sem o peso do bem ou do mau...

Sim, sinto necessidade dessa unidade que dá sentido àquilo que sou.

Desejo um abraço apertado, neste exato momento, daqueles e daquelas que são minha carne, meu sangue e minha alma, e o sabem...

Como sacramento dessa unidade necessariamente tardia, desejo tudo aquilo que está longe de mim, pois no fim das contas, sou solidão, mas também esperança e amor...


Para minha família, que está longe e nunca deixo de sentir saudades, e Gabriela, a mulher que amo, e de quem sinto falta todos os dias...

José Wilson Correa Garcia

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O MAR

Nunca consegui ficar muito tempo longe do Mar. Desde criança ele sempre habitou minha vida e ela sempre esteve mergulhada nele. Lembro que na casa de mamãe e papai, naquele tempo em que éramos ingenuamente livres, quando chovia muito forte, eu e meu irmão, sem medo de trovões e relâmpagos, pegávamos a bola e corríamos para a beira da praia, onde brincávamos e, as vezes, brigávamos... Depois, caíamos no Mar. Nunca nos contentávamos apenas com a água da chuva, sempre desejávamos o Mar mesmo, e fazíamos do nosso desejo - que não precisava ser dito - realidade. Ficávamos somente com a cabeça do lado de fora, buscando fôlego (a água do Mar com chuva, para quem conhece esse tempo, é morna e melancólica). A torrente d'água da chuva caindo sobre a superfície espelhada do Mar produzia um som contínuo e estridente. Não nos ouvíamos direito, mas nos entendíamos...
 
Depois de um tempo buscando fôlego eu abaixava a cabeça, ficava totalmente submerso. Lá não se ouvia mais barulho algum, somente o silêncio daqueles mistérios que só pertencem ao Mar, aqueles que vem e vão, incessantemente, como as ondas.... Lá embaixo, o mundo e a vida davam um suspiro silenciosamente desconcertante, e tudo parecia simplesmente aquietar-se... Era apenas eu e meu mistério.

Curiosamente, hoje, enquanto dormia, sonhei com o Mar! Foi um sonho de paz e misteriosa quietude. Eu e meu irmão já não corremos mais em direção à praia chuvosa de nossa infância... Cada um de nos dois teve que crescer e achar seus amores. Mas o Mar continua habitando minha vida como se dela nunca tivesse saído ou mudado, apesar de seu incessante e constante ir e vir. Mas foi exatamente naquela infância que aprendi que as conchas escondem dentro de si o barulho do Mar, aquele mesmo... E é verdade! Gostava de ficar deitado, antes de dormir, com uma delas perto do ouvido, simplesmente escutando... Hoje, no sonho, descobri que minhas duas mãos, em forma de concha, podem reproduzir exatamente o mesmo mistério, exatamente porque, apesar do tempo e da distância, elas continuam habitadas por aquilo que aprenderam, desde sempre, a amar: o Mar.

José Wilson Correa Garcia


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domingo, 19 de agosto de 2012

VERDADE


Porque a verdade é sempre dura?
Porque expressá-la
de forma pessoal, clara e sincera
incomoda tanto?

A Verdade!
Ela só pode ser o que diz,
aquilo que é pessoalmente óbvio.
Claro, de um pondo de vista realmente particular.

Nela não há fantasias,
não há projeções,
não há ilusões.
Há, talvez, um pouco de Paixão.
E talvez esta seja necessária.
Quem sabe a própria verdade
só seja possível com Paixão!?

Toda Verdade deve ser respeitada
seja lá qual for seu peso,
seja lá qual for sua força,
seja lá qual for sua verdade.
Ela pode parecer vergonhosa
talvez por revelar o óbvio
encarcerado em nossas consciências.

Consciência corrompida,
oprimida, limitada, convidada.

Sim, a Verdade é um convite.
Convite à liberdade.

Liberdade da Consciência.
Liberdade do Coração.
Liberdade da Alma.

Ela dói tanto para quem ouve,
quanto para quem fala.
Talvez por que nenhum dos dois
sejam donos dela.
A Verdade é uma realidade Revelada
que não nos pertence.
Talvez por isso doa tanto.

José Wilson
Belo Horizonte,
outono de 2006.
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sexta-feira, 6 de julho de 2012

SOBRE A JUSTIÇA NA POLÍTICA BRASILEIRA

      Uma aproximação estética atualizada, de um ponto de vista crítico, da imagem que simboliza a Justiça, aqui no Brasil, daria pano pra manga e seria, no mínimo, interessante. Vamos nos contentar, primeiramente, com a interpretação clássica.
      A primeira protagonista que surge é a deusa grega Têmis, guardiã dos juramentos dos homens e da lei, sempre invocada pelos magistrados nos julgamentos públicos. Na imagem original grega ela aparece com uma balança em uma das mãos. Uma de suas filhas, Diké, a exemplo da mãe, carrega em uma das mãos a balança, mas com o acréscimo da espada na outra. Uns afirmam ser Têmis a deusa da justiça, outros atribuem esse título a Diké. A cultura romana, da qual nossa justiça é diretamente influenciada, assimilou a imagem da justiça a uma mulher (Justitia) com as mesmas características gregas, porém é importante afirmar a diferença conceitual, no que diz respeito à justiça, entre o gênio prático dos romanos e a sabedoria teórica dos gregos.
      Polêmicas estilísticas e históricas a parte, o fato é que até os nossos dias a justiça continua sendo representada e afirmada como uma mulher segundando em uma das mãos a balança, onde se equilibra razão e julgamento; na outra a espada, representando a defesa dessa justiça; e um adereço, ironicamente introduzido por um artista alemão do século XVI, que retirou-lhe a visão colocando nos olhos da imagem uma venda, simbolizando a imparcialidade da justiça. Imparcialidade é diferente de neutralidade. Aquela é necessária, esta não existe... Pode-se deixar de ser imparcial, mas não se pode ser absolutamente neutro, pois há sempre um lado. A questão é: de que lado está a justiça? Enfim...
      Nossa interpretação estético/polítca da Justiça brasileira atual desconstrói radicalmente a influência do gênio prático romano e da sabedoria teórica grega como ideais de Justiça. Pode até ser considerada, do ponto de vista científico e teórico, superficial, mas não lhe poderá ser tirada o caráter prático popular, crítico e, quiçá, irônico/cômico...
      Olhando do ponto de vista do cenário político brasileiro atual, o que tem feito a justiça? Resumindo, ela tem permitido que homens como Fernando Collor de Melo, Paulo Maluf, José Dirceu, Carlos Cachoeira, Demóstenes Torres, e companhia i-limitada (só para citar algumas figuras do cenário nacional – cabe a aproximação local a cada cidadão/eleitor) continuem se perpetuando impunes no poder, na representação do cidadão e na gestão pública.
      É claro que reconhecemos as raríssimas e preciosas exceções jurídicas... Mas, infelizmente, essa é a realidade da justiça eleitoral brasileira. Ela tem em uma das mãos a balança, não para equilibrar a razão e o julgamento, mas para saber de que lado foi colocado mais dinheiro. Ela tem nos olhos a venda, não porque é imparcial, mas porque é cega quando se trata da defesa do bem comum, dos direitos do cidadão mais pobre e, ironicamente, enxerga muito bem quando a balança começa a pesar. Ela tem na outra mão a espada, não para defender o justo julgamento, mas para cortar qualquer possibilidade de julgamento que condene a impunidade daquelas que apertaram a venda e acrescentaram peso em um lado da balança.

Por José Wilson Correa Garcia
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sexta-feira, 11 de maio de 2012

Tempos de crise – tempos de cuidado. Artigo de Leronardo Boff

      "O cuidado é exigido em praticamente todas as esferas da existência, desde o cuidado do corpo, da vida intelectual e espiritual, da condução geral da vida até ao se atravessar uma rua movimentada. Como já observava o poeta romano Horácio, “o cuidado é aquela sombra que  nunca nos abandona porque somos feitos a partir do cuidado” escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
      Citando documentos de repercussão internacional, ele afirma que "a ética do cuidado se aplica tanto a nivel internacional como  a níveis nacional e individual; nenhuma nação é auto-suficiente; todos lucrarão com a sustentabilidade mundial e todos estarão ameaçados se não conseguirmos atingi-la".

Eis o artigo. Fonte: IHU

      O tema do cuidado é, nos últmos tempos, cada vez mais recorrente na reflexão cultural. Primeiramente, foi veiculado pela medicina e pela enfermagem, pois representa a ética natural destas atividades. Depois foi assumido pela educação e pela ética e feito paradigma por filósofas e teólogas feministas especialmente norteamericanas. Veem nele um dado essencial da dimensão da anima, presente no homem e na mulher. Produziu e continua produzindo uma acirrada discussão especialmente nos EUA entre a ética de base patriarcal centrada no tema da justiça e a ética de base matriarcal assentada no cuidado essencial.

      Ganhou força especial na discussão ecológica, constituindo uma peça central da Carta da Terra. Cuidar do meio-ambiente, dos recursos escassos, da natureza e da Terra se tornaram imperativos do novo discurso. Por fim, viu-se o cuidado como definição esencial do ser humano, como é abordado  por Martin Heidegger em Ser e Tempo recolhendo uma tradição que remonta aos gregos, aos romanos e aos primeiros pensadores cristãos como São Paulo e Santo Agostinho.

      Constata-se outrossim que a categoria cuidado vem ganhando força sempre que emergem situações críticas. É ele que impede que as crises se transformem em tragédias fatais.

      A Primeira Grande Guerra (1914-1918), desencadeada entre paises cristãos, destruira o glamour ilusório da era vitoriana e produziu profundo desamparo metafísico. Foi quando Martin Heidegger (1889-1976) escreveu seu genial Ser e Tempo (1929), cujos parágrafos centrais (§ 39-44) são dedicados ao cuidado como ontologia do ser humano.

      Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), despontou a figura do pediatra e psicólogo D. W. Winnicott (1896-1971) encarregado pelo governo inglês para acompanhar crianças órfãs ou vítimas dos horrorres dos bombardeios nazistas sobre Londres. Desenvolveu toda uma reflexão e uma prática ao redor dos conceitos de cuidado (care), de preocupação pelo outro (concern) e de conjunto de apoios a crianças ou a pessoas vulneráveis (holding), aplicáveis também aos processos de crescimentoz e de educação.

      Em 1972 o Clube de Roma lançou o alarme ecológico sobre o estado doentio da Terra. Identificou a causa principal: o nosso padrão de desenvolvimento, consumista, predatório, perdulário e totalmente sem cuidado para com os recursos escassos da natureza e os dejetos produzidos. Depois de vários encontros organizados pela ONU a partir dos anos 70 do século passado, chegou-se à proposta do um  desenvolvimento sustentável, como expressão  do cuidado humano pelo meio ambiente mas centrado especialmente no aspecto econômico.

      O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) elaboraram em 1991 uma estratégia minuciosa para o futuro do planeta sob o signo Cuidando do Planeta Terra (Caring for the Earth 1991). Ai se diz: A ética do cuidado se aplica tanto a nivel internacional como  a níveis nacional e individual; nenhuma nação é auto-suficiente; todos lucrarão com a sustentabilidade mundial e todos estarão ameaçados se não conseguirmos atingi-la.

      Em março de 2000, recolhendo esta tradição, termina em Paris, depois de oito anos de trabalho a nível mundial, a redação da Carta da Terra. A categoria sustentabilidade, cuidado ou o modo sustentável de viver constituem os dois eixos articuladores principais do novo discurso ecológico, ético e espiritual. Em 2003 a UNESCO assumiu oficialmente a Carta da Terra e a apresentou como um substancial instrumento pedagógico para a construção responsável de nosso futuro comum.

      Em 2003 os Ministros ou Secretários do meio ambiente dos países da América Latina e do Caribe elaboram notável documento Manifesto pela vida, por uma ética da sustentabilidade onde a categoria cuidado é incorporada na idéia de um desenvolvimento para que seja efetivamente sustentável e radicalmente humano.

      O cuidado está especialmente presente nas duas pontas da vida: no nascimento e na morte. A criança sem o cuidado não existe. O moribundo precisa do cuidado para sair decentemente  desta vida.

      Quando desponta alguma crise num grupo gerando  tensões e divisões, é a sabedoria do cuidado  o caminho mais adequado para ouvir as partes, favorecer o diálogo e buscar convergências. O cuidado se impõe quando irrompe alguma crise de saúde que exige internação hospitalar. O cuidado é posto em ação por parte dos médicos, médicas, dos enfermeiros e enfermeiras, decidindo sobre o que melhor fazer.

      O cuidado é exigido em praticamente todas as esferas da existência, desde o cuidado do corpo, da vida intelectual e espiritual, da condução geral da vida até ao se atravessar uma rua movimentada. Como já observava o poeta romano Horácio, “o cuidado é aquela sombra que  nunca nos abandona porque somos feitos a partir do cuidado”.

      Hoje dada a crise generalizada seja social seja ambiental, o cuidado torna-se imprescindível para preservarmos a integridade da Mãe Terra e salvaguardar a continuidade de nossa espécie e de nossa civilização.             
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quinta-feira, 3 de maio de 2012

PARA ENTENDER O "VETA DILMA" - Código Florestal atropela Rio+20. E agora Dilma?

Há muita movimentação, principalmente nas rede sociais sobre o movimento VETA DILMA. Mais do que um movimento, é uma ação coletiva dos movimentos sociais contra as consequências do modelo do código florestal que está sendo proposto pelo governo. Eis, abaixo, uma análise de conjuntura muito boa que achei no portal ECODEBATE. Poderá ajudar a entender melhor essa atual movimentação social no Brasil hoje... Boa leitura!


Código Florestal atropela Rio+20
      A presidente Dilma Rousseff corre contra o tempo. Precisa desativar uma bomba de efeito devastador a curtíssimo prazo. Daqui a pouco mais de um mês, o país sediará a Rio+20 e a aprovação do retalhamento do Código Florestal às vésperas da Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável empurra o país para uma situação delicada uma vez que é o anfitrião do evento. Da pretensa “vanguarda” no debate mundial sobre a mitigação do aquecimento global, o país pode correr o risco de passar vexame. A decisão está nas mãos de Dilma.
      Rompendo acordo com o governo, os ruralistas aprovaram o retalhamento do Código ampliando ainda mais os retrocessos do texto aprovado no Senado.
      O resultado foi uma derrota para o governo que defendia a aprovação na íntegra do texto definido no final do ano passado. Reiteradas falas do governo anunciaram que o texto dos senadores não era o ideal, mas o possível de ser alcançado pela mediação dos interesses presentes no Congresso Nacional. A bancada ruralista, entretanto, mantendo-se fiel aos seus interesses de classe desconsiderou a posição do Palácio do Planalto e atropelou a tudo e a todos.
      Agora o governo encontra-se numa saia justa. A participação do país na Rio+20 – ousadia ou vexame – está condicionada à postura que a presidente Dilma adotará em relação às alterações do Código Florestal. Organizações ambientalistas internacionais já afirmam que o Brasil pode estar perdendo a liderança no movimento ecológico global caso mantenha as alterações no Código Florestal.
      Representantes da WWF e do Greenpeace disseram que o Brasil sempre foi visto como um dos países mais ativos na promoção de ideias ambientais em fóruns internacionais, como as reuniões sobre mudanças climáticas da ONU. Mas, a aprovação do texto do deputado Paulo Piau (PMDB-MG) pode provocar uma mudança nessa percepção. “É um choque estarem alterando o Código Florestal que protege a floresta amazônica. Com a proximidade da Rio+20, isso bota muita pressão sobre a presidente Dilma Rousseff. Será muito difícil para ela se apresentar como defensora do ambiente”, disse Sarah Shoraka, ativista especialista em florestas do Greenpeace do Reino Unido.
      “Durante a campanha ela [Dilma Rousseff] havia dito que não apoiaria nenhuma legislação que aumentasse o desmatamento e que desse anistia a criminosos, mas a proposta atual faz exatamente essas duas coisas. Agora é tudo uma questão da credibilidade dela, e o quanto ela está disposta a mudar”, reafirmou Sarah Shoraka. Segundo ela, “o Brasil tem uma trajetória de país moderno, que sempre esteve na liderança dos compromissos ambientais tendo em vista a sua posição na Conferência de Mudanças Climáticas de Copenhague [2009]. O país sempre esteve na frente e puxando os outros países. A aprovação deste texto é um retrocesso”, disse a ativista.

E agora Dilma?
      Para os ambientalistas que acompanharam o embate em Brasília, o sentimento é de tristeza. “Estamos tentando digerir o que aconteceu. Estamos nos preparando para ajudar a presidente Dilma a exercer poder de veto completo”, afirmou Maria Cecilia Wey de Brito, secretária-geral. Para ela, “a mensagem para a sociedade brasileira é negativa. Fica claro que os deputados acham aceitável que as pessoas que cometem ilegalidade sejam perdoadas. E quem sempre cumpriu a lei fica se achando injustiçado”.
      Sobre as mudanças no Código Florestal, a ex-ministra Marina Silva afirma que “as avaliações são unânimes em dizer que foi o maior retrocesso no arcabouço institucional das políticas socioambientais no Brasil desde a ditadura”. “Agora é a hora de se confirmar para quem esse governo foi eleito”, destaca o jornalista Leonardo Sakamoto. Segundo ele, “seja qual for a decisão que Dilma tomar sobre o novo Código Florestal, aprovado pela Câmara dos Deputados, ela será emblemática. Mostrará o que será o resto do seu mandato presidencial”.
      Com o peso de ter sido ministra do meio ambiente e forte credibilidade internacional, Marina Silva, comentou que “o novo Código Florestal aprovado pela Câmara é tudo, menos florestal”. Segundo a ex-ministra, “a presidente Dilma terá que decidir qual modelo de desenvolvimento quer para o país. Não dá para ter na mesma base de apoio o sonido da motosserra e o canto do uirapuru. Agora, resta a ela usar seu poder de veto ou compactuar com o que está posto. Chegou a hora da verdade. Veta, Dilma. Veta tudo, não pela metade”, pede ela.
      Marina Silva, tendo presente a proximidade da Rio+20 e provável pré-candidata à presidência em 2014, dá uma estocada em Dilma: “Temos todas as condições de liderar o processo de transição para o desenvolvimento sustentável. O Brasil pode ser para o século XXI o que os Estados Unidos foram para o mundo no século XX. Mas são necessárias visão antecipatória e determinação de perseguir nosso destino de grande potência socioambiental. Não é fácil fazer a melhor escolha, porém é na pressão dos grandes dilemas que se forja a têmpera dos que estão afiados a talhar os avanços da história”.
      A proximidade da Rio+20 e o impacto da decisão da Câmara dos Deputados é também destacada pelo deputado Alfredo Sirkis (PV-RJ): “Vivemos aqui um momento importante, vai ser votado, com os olhos do mundo em nós, esse retrocesso espantoso na política ambiental. Estamos a dois meses da Rio+20, e esta casa se prepara para dar um espetáculo deprimente de farsa. Farsa quando se pretende defender aqui os pequenos proprietários. Aqui, o que está em questão é interesse de especuladores de terra que vão ganhar fortuna quando não houver necessidade de se recompor áreas de preservação permanente”.
      O deputado acrescentou que “diante desse desafio à sua autoridade, e do vexame que o Brasil irá sofrer perante o mundo com a aprovação da proposta, só restará à presidente Dilma vetar o relatório”.
      A decisão de Dilma não será fácil. “Se Dilma vetar a maior parte do texto, estará apoiando os que atuam na defesa de um desenvolvimento minimamente sustentável e na garantia da qualidade de vida das gerações futuras. Isso vai satisfazer ambientalistas, cientistas, parte dos formadores de opinião e da sociedade civil, alguns ministros” diz Sakamoto. Porém, acrescenta ele, “comprará uma boa briga com a Frente Parlamentar da Agricultura, vulgo Bancada Ruralista, federações de produtores rurais, outros ministros e grandes empresas do agronegócio – que veem no instrumento uma forma de facilitar seus processos produtivos e aumentar seu poder de concorrência e ou sua taxa de lucro”.
      Se sancionar o Código Florestal, entretanto, diz o jornalista “vai mandar um recado claro: as políticas sociais e ambientais, declaradas como prioritárias, serão aplicadas desde que dentro de limites impostos pela governabilidade. Ou seja, cada situação tem sua implicação. Agora é a hora de se confirmar para quem esse governo foi eleito”, conclui.
      Dilma não vem sendo poupada pelo retalhamento do Código Florestal. Para o ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente João Paulo Capobianco, o Código representa um retrocesso jamais visto, após muitas tentativas fracassadas. Ele afirma que, pela primeira vez, um governo cedeu, por omissão, e abriu a porteira para as demandas dos conservadores: “Eu diria que a presidente Dilma, entre o desenvolvimento acelerado e a conservação ambiental, ela não pensa na compatibilização. Suas ações recentes mostram claramente isso. Ela compartilha, inclusive, com o resultado da negociação do Código no Senado, que era um enorme retrocesso também”.
      Diante da forte repercussão negativa da aprovação do novo Código – basta dar uma olhada nas tuitadas -, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, disse que a presidente Dilma Rousseff vai analisar o novo Código Florestal com “sangue frio e tranquilidade”. “Como nos é dado pela Constituição o direito do veto, a presidente vai analisar com muita serenidade, sem animosidade, sem adiantar nenhuma solução”, afirmou.
      Há sinais, entretanto, dada a forte repercussão negativa e a proximidade com a Rio+20 que a presidente vai vetar os artigos mais polêmicos do Código Florestal. Entre eles, os que tratam da recomposição das matas ciliares e da “anistia” a desmatadores. “Ela vai meter a caneta e chegar à Rio+20 carregada”, diz um influente líder do PT, destaca a imprensa.
      Gilberto Carvalho disse que a Rio+20 deve pesar na decisão da presidente, mas nem tanto: “Menos, porque é um episódio. Mais importante é o nosso cuidado com a preservação e o modelo de desenvolvimento sustentável que nós pregamos”, disse. “Importante é o crescimento, a inclusão social e o cuidado com a natureza. É a preservação pensando no presente e nas gerações futuras. Isso sim e, evidentemente, os compromissos que ela assumiu durante a campanha serão os parâmetros que vão nos orientar”.
      Representantes da bancada ruralista, porém, tem desafiado a presidente e prometem resistir no caso de um veto. O deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), paradoxalmente um dos líderes do governo na Câmara dos Deputados e dos que mais se empenharam pelas alterações no Código Florestal, redigido por Piau, disse que “o governo é ambientalista, mas também é ruralista, é pecuarista”, numa indicação do forte corporativismo do agronegócio na Câmara do Deputados . O relator do retalhamento do Código Paulo Piau (PMDB-MG), disse por sua vez que espera “que a presidente não queira dar satisfação para o mundo e para a opinião pública nacional”.
      No caso de um eventual veto parcial Dilma, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas, que esteve reunido com a presidente pós-alteração no Código Florestal, não crê em derrubada de veto por parte do Congresso. Para derrubar um possível veto da presidente é preciso maioria absoluta tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, ou seja, o aval de 257 deputados e 41 senadores.

Código Florestal e suas implicações do local para o global
      Aprovação da flexibilização do Código Florestal é um enorme retrocesso quando se tem presente o debate sobre a crise climática e, ainda mais grave, quando se está às vésperas da maior Conferência mundial que debaterá como transitar para uma economia de baixo carbono. O fato do Brasil sediar a Conferência aumenta suas responsabilidades.
      Já está claro que muito se avançou na consciência planetária da gravidade sobre a crise climática. Contribuiu decisivamente para essa nova consciência o relatório do IPCC de 2007 ao afirmar que já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental é a ação antropogênica sobre a Terra. Os pesquisadores e cientistas à época foram categóricos e não deixaram espaço para dúvidas ao afirmar de forma contundente – o relatório utilizou a expressão “inequívoca” – que o aquecimento global se deve à intervenção humana sobre o planeta.
      De lá para cá, porém, aumentou ainda mais a percepção da gravidade da crise climática. O próprio IPCC num relatório de março de 2012 intitulado “Relatório Especial sobre Gerenciamento de Riscos de Eventos Extremos e Desastres para o Avanço da Adaptação Climática (SREX)” alerta que o momento é de se preparar para “os eventos extremos que já são inevitáveis”.
      O quadro hoje seria pior do que o alardeado pelos cientistas no relatório de 2007 e alguns limites planetários já foram ultrapassados: os do aquecimento global, a extinção de espécies e o ciclo do nitrogênio. Outros quatro estariam próximos: uso da água doce, conversão de florestas em plantações, acidificação dos oceanos e ciclo do fósforo. Os outros dois são a contaminação química e a carga de aerossóis na atmosfera.
      Dados sobre o ano de 2011, apresentados pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução de Riscos de Desastres (UNISDR), por exemplo, dão conta de que ocorreram “302 desastres naturais, que mataram 29.782 pessoas, principalmente na Ásia”. No caso do Brasil, registrou-se 900 mortes “causadas pelos impactos das inundações e dos deslizamentos de terras provocados pela chuva”. Todos esses desastres, além de ceifarem vidas, geraram prejuízos de US$ 366 bilhões.
      A responsabilidade do agravamento está diretamente vinculado ao tipo de desenvolvimento econômico implantado, especialmente, ao longo dos últimos dois séculos, baseado no paradigma do crescimento econômico ilimitado, na ideia de progresso infinito e na concepção de que os recursos naturais seriam inesgotáveis e de que a nossa intervenção sobre a natureza se daria de maneira neutra. Na origem da crise ecológica, portanto encontra-se o “modo de produção” e o “modo de consumo” que se tornaram insustentáveis e incompatíveis com os limites do nosso Planeta.
      É a partir desse contexto que deve ser interpretada a decisão sobre o Código Florestal e a importância da Rio+20.
      Nos últimos dias, um documento assinado por dezessete grandes cientistas ganhadores do prestigioso Prêmio Planeta Azul, reafirmam que “o sistema atual está falido” e sugerem que “o mundo reduza rapidamente suas emissões de gases do efeito estufa, troquem o PIB (produto interno bruto) por uma medida mais holística de bem-estar nacional, desassociem a destruição ambiental do consumo, reduzam os subsídios para combustíveis fósseis e práticas agrícolas ambientalmente destrutivas, coloquem um valor de mercado em serviços de biodiversidade e ecossistema, trabalhem com movimentos de base para criar uma ação de baixo para cima, e finalmente, combatam a superpopulação”. Os cientistas e ambientalistas dizem que é preciso combater o “mito de que economias podem crescer para sempre”.
      A tese de que o Planeta não é sustentável sem controle do consumo e da população vem ganhando força. Estudo recém publicado pela Royal Society (associação britânica de cientistas) afirma que o consumo excessivo em países ricos e o rápido crescimento populacional nos países mais pobres precisam ser controlados para que a humanidade possa viver de forma sustentável.
      A afirmação é polêmica, porém, outros estudos vão na mesma linha ao afirmarem que o crescente aumento da população e o seu poder de consumo levarão os recursos naturais do Planeta ao esgotamento. Philip Stephens, editor e comentarista político do Financial Times, destaca que o crescimento do poder de consumo de países com China, Índia e Brasil mudarão a geopolítica do consumo e “em 20 anos, o mundo que agora é pobre de forma predominante passará a ser em sua maioria de classe média”.
      Os números brutos estão delineados em um relatório intitulado Tendências Mundiais 2030 – recém -publicado pelo Instituto de Estudos de Segurança (ISS, na sigla em inglês), com sede em Paris. Sobre o relatório, diz o jornalista: “Pelas tendências atuais, destaca o informe, as fileiras da classe média mundial passarão das cerca de 2 bilhões de pessoas atuais para 3,2 bilhões em 2020 e para 4,9 bilhões em 2030, quando a população mundial total seria de pouco mais de 8 bilhões. Dito de outra forma, pela primeira vez na história humana, haveria mais pessoas na classe média do que na pobre”.
      Philip Stephens cita, entre outros, o caso brasileiro: “Quase 70% dos brasileiros deverão estar na classe média em 2030. No mesmo ano, a América Central e América Latina terão tantos consumidores da classe média quanto a América do Norte. A transição será mais lenta na África, mas mesmo lá os números deverão mais do que dobrar em relação a 2030”.
      Ora, as implicações dessa transformação serão profundas quando pensadas sob a perspectiva da crise climática. Destaque-se aqui novamente a intuição do documento dos cientistas ganhadores do prêmio Planeta Azul: “Há uma necessidade urgente de quebrar a ligação entre a produção e o consumo e a destruição ambiental (…) Um crescimento material indefinido em um planeta com recursos naturais finitos e frequentemente frágeis seria insustentável”, escrevem eles.
      O capital e o mercado já têm sua proposta para superar esse eventual impasse, a “economia verde”. O significado desse conceito que estará entre os principais temas da Rio+20 abordaremos proximamente em outra ‘Conjuntura da Semana’.

A carta na manga brasileira para a Rio+20 pode virar um mico
      Com a aprovação da flexibilização do Código Florestal, a estratégia do governo para a Rio+20 foi por água abaixo. O governo já vinha sendo acusado de pouca ousadia, mas tinha uma carta na manga.
      Aumentam agora as expectativas de como se comportará o Brasil como anfitrião do evento. Se carregará o fardo de conivente com uma legislação que vai na contramão de tudo o que se defende internacionalmente ou se terá coragem de enfrentar os setores conservadores. As expectativas são a de que o país tenha um papel protagonista e impulsione acordos ousados e não meramente protocolares.
      Ainda antes da bomba das mudanças no Código Florestal, o país já vinha sendo cobrado a adotar uma postura mais ousada nas negociações. Várias ONGs criticavam a falta de ousadia do país em assumir a liderança na defesa da sustentabilidade.
      O coro da cobrança vinha ainda de setores da imprensa para quem o “governo brasileiro precisa assumir papel de liderança se quiser evitar fiasco político da conferência sobre desenvolvimento sustentável” e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – Pnuma, através do seu diretor executivo Achim Steiner, para quem “o Brasil, como país anfitrião, não pode deixar que a cúpula apenas reafirme os compromissos de 1992. Isso será um fracasso. Já negociamos convenções demais. A Rio+20 é sobre implementação”, cobrou. “Este é um momento difícil no mundo para se fazer uma cúpula sobre desenvolvimento sustentável”, continuou, “mas não podemos trazer 190 países e esperar pelo melhor, não se trata de um desfile de chefes de Estado”, disse o relator do Pnuma.
      Ciente da necessidade de maior ousadia na Rio+20 e das críticas em relação ao pouco entusiasmo com a Conferência, o Brasil estaria guardando uma carta na manga para se sair bem. Trata-se da proposta de criação de um piso mundial de proteção socioambiental preparada pelo país.
      A proposta assemelha-se a uma espécie de Bolsa-Família em âmbito global já incorporado como experiência-modelo pela Organização das Nações Unidas (ONU). A ideia guarda elementos de outro programa, o Bolsa Verde, que remunera famílias que vivem em unidades de conservação na Amazônia e adotam práticas ambientais sustentáveis. Além de garantir uma renda mínima para combater a extrema pobreza, o piso socioambiental proporcionaria uma remuneração extra aos pobres pela proteção de florestas e a recuperação de áreas degradadas.
      Essa proposta é coerente com a postura do país em não separar a questão social da temática ambiental. É no casamento das agendas de combate à pobreza extrema e de proteção do meio ambiente que o governo Dilma Rousseff aposta ganhar uma certa liderança para o Brasil nos próximos debates do desenvolvimento sustentável.
      O problema agora, é que com a aprovação do retalhamento do Código Florestal falar em uma espécie de Bolsa Verde para proteger o meio ambiente manifesta profunda incoerência. Como o país se dispõe a pagar pela proteção do meio-ambiente se ele mesmo é leniente com uma legislação que destrói o que a “Bolsa Verde” se propõe a proteger.
      A única forma do país não sofrer um constrangimento maior é o veto ao menos parcial da presidente Dilma Rousseff as alterações do Código Florestal, principalmente aos artigos da anistia aos desmatadores, recomposição e preservação de matas ciliares nos rios e intocabilidade das APP’s – considerados áreas que protegem as margens dos rios, encostas, topos de morro, restingas, mangues e biomas específicos.
      Há, porém, outro problema para o Brasil como anfitrião do evento: o risco do seu esvaziamento. A chanceler alemã Angela Merkel já avisou ao governo brasileiro que não virá para a Rio+20; o primeiro-ministro britânico, David Cameron também não virá. Além do desfalque da maior economia europeia, é incerta também a presença do presidente dos Estados Unidos Barack Obama na conferência que marca os 20 anos da Eco-92. A ausência de Merkel pode representar um temor que começa a transparecer nas falas de negociadores europeus, de que a Rio+20 não terá resultados fortes o bastante.

#Veta Dilma. Onde está o movimento social?
      Cresce o movimento para que Dilma vete as alterações no Código Florestal. Quem puxa o movimento são as organizações ambientalistas que desde o começo têm tido uma postura mais determinada na luta contra os retrocessos no Código Florestal.
      Essas organizações apesar de sua crescente influência na sociedade têm ainda um poder de fogo limitado. Chegam sobretudo aos setores da classe média e têm dificuldade de um maior enraizamento popular. Usam a emergência da Internet com suas redes sociais e seus espaços para o compartilhamento de dados e informações como ferramenta de pressão e mobilização, mas ficam muitas vezes isoladas e não conseguem o apoio e articulação de outros movimentos.
      Cumprem mesmo assim um papel importantíssimo e estão puxando a resistência às alterações no Código Florestal. É dessas organizações que vem a chamada para que Dilma vete as mudanças e vete tudo!
Outras organizações sociais não demonstram a mesma energia nessa luta. O Movimento Sem Terra – MST desde o início se manifestou contra a flexibilização do Código Florestal. Nesses dias publicou nota em seu portal afirmando que Dilma “precisa vetar todas as mudanças no Código Florestal para proteger natureza”. Apesar dessa postura, o tema não entrou com força na agenda do “Abril vermelho”, quando muito, lateralmente.
      A Central Única dos Trabalhadores – CUT também não tem priorizado essa pauta. Nos últimos dias se manifestou pelo seu portal, mas a sensação é que se trata muito mais de uma postura protocolar, não há nenhum indício de mobilização sobre o tema. A Conlutas e a Intersindical, organizações que se denominam mais a esquerda no espectro sindical, tampouco tem se mobilizado com o tema. Aguardemos o 1º de maio para ver se o Código Florestal será abordado nas manifestações.
      Quem também tem decepcionado na luta contra o retalhamento do Código Florestal é a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros – CNBB. Apesar de ter abordado o tema numa Campanha da Fraternidade específica – a CF 2011 – “Fraternidade e a Vida no Planeta”, o que se vê é que a entidade tem dedicado muito das suas energias a temas como o aborto e a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) que se realizará em 2013 no Brasil. Reunidos nos últimos dias em sua 50ª Assembleia Geral em Aparecida (SP) não houve nenhuma manifestação institucional sobre o Código Florestal.
      Houve, porém, um comunicado oficial da criação de uma comissão para acompanhar o trabalho de reforma do Código penal Brasileiro. Segundo dom Dimas Lara Barbosa, presidente da Comissão Episcopal de Pastoral para a Comunicação da CNBB, como se trata de um tema abrangente e delicado, as questões levantadas por alguns setores preocupam a Igreja. “Aqueles que defendem a redução da maioridade penal, a pena de morte, a descriminalização do aborto e alguns outros temas que não levam em conta em primeiro lugar a pessoa humana”, disse o bispo.
      As pastorais sociais, por sua vez, encontram-se fragilizadas e até mesmo a Comissão Caridade, Justiça e Paz da CNBB não tem conseguido uma maior articulação das pastorais sociais no debate sobre o tema e influenciado os bispos para que se posicionem.
      Dessa forma, a campanha pelo # Veta Dilma deverá crescer nas redes sociais, mas nas ruas será frágil. A aposta para que Dilma vete ao menos parcialmente o retalhamento do Código é a promessa da presidente ainda na Campanha eleitoral. Na época Dilma se colocou contra os principais pontos do texto do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) e em especial o que anistia quem desmatou ilegalmente.
      Confira o que prometeu a então candidata à Presidência Dilma Roussef: “a eventual conversão de multas só deve ocorrer após ações efetivas de recuperação das áreas desmatadas ilegalmente”, e citou o Programa Mais Ambiente do governo federal como um caminho seguro para a regularização ambiental das propriedades agrícolas. Dilma diz não acreditar que a atual legislação ambiental seja um entrave à expansão agropecuária. “O Brasil pode expandir sua produção agrícola sem desmatar. Hoje existem 60 milhões de hectares de pasto mal utilizados ou subutilizados que precisam ser recuperados”.
      Agora é a hora de Dilma honrar sua promessa e vetar o estrago feito pela bancada ruralista.

Fonte: ECODEBATE.
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