domingo, 6 de julho de 2014

A memória sexual: base biológica da sexualidade humana.

Para compreendermos em profundidade a sexualidade humana, precisamos entender que ela não existe isolada, mas representa um momento de um processo maior: o biogênico.

A nova cosmologia nos habituou a considerar cada realidade singular dentro do todo que vem sendo urdido já há 13,7 bilhões de anos e a vida há 3,8 bilhões de anos. As realidades singulares (elementos físico-químicos, microorganismos, rochas, plantas, animais e seres humanos) não se juxtapõem mas se entrelaçam em redes interconectadas constituindo uma totalidade sistêmica, complexa e diversa.

Assim, a sexualidade emergiu há um bilhão de anos como um momento avançado da vida. Depois da decifração do código genético por Crick e Dawson nos anos 50 do século passado. sabemos hoje comprovadamente que vigora a unidade da cadeia da vida: bactérias, fungos, plantas, animais e humanos somos todos irmãos e irmãs porque descendemos de uma única forma originária de vida. Temos, por exemplo, 2.758 genes iguais aos da mosca e 2.031 idênticos aos do verme.

Esse dado se explica pelo fato de que todos, sem exceção, somos construídos a partir de 20 proteinas básicas combinadas com quatro ácidos nucleicos (adenina, timina, citosina e guanina). Todos descendemos de um antepassado ancestral comum, originando a ramificação progressiva da árvore da vida. Cada célula de nosso corpo, mesmo a mais epidérmica, contém a informação básica de toda vida que conhecemos. Há, pois, uma memória biológica inscrita no código genético de todo organismo vivo.

Assim como existe a memória genética, existe também a memória sexual que se faz presente na nossa sexualidade humana. Consideremos alguns passos desse complexo processo. O antepassado comum de todos os seres vivos foi, muito provavelmente, uma bactéria, tecnicamente chamada de procarionte que significa um organismo unicelular, sem núcleo e com uma organização interna rudimentar. Ao se multiplicar rapidamente por divisão celular (denominada mitose: uma célula-mãe se divide em duas células-filhas idênticas) surgiram colônias de bactérias. Reinaram, sozinhas, durante quase dois bilhões de anos. Teoricamente a reprodução por mitose confere imortalidade às células, pois seus descendentes são idênticos, sem mutações genéticas.

Por volta de dois bilhões de anos atrás, ocorreu um importante fenômeno para a posterior evolução, somente suplantado pelo surgimento da própria vida: a irrupção de uma célula com membrana e dois núcleos. Dentro deles se encontram os cromossomos (material genético) nos quais o DNA se combina com proteinas especiais. Tecnicamente é chamada de eucarionte ou também célula diplóide, isto é, célula com núcleo duplo.

A importância desta célula binucleada reside no fato de nela se encontrar a origem do sexo. Em sua forma mais primitiva, o sexo significava a troca de núcleos inteiros entre células binucleadas, chegando a fusão em um único núcleo diplóide, contendo todos os cromossomos em pares. Até aqui as células se multiplicavam sozinhas por mitose (divisão) perpetuando o mesmo genoma. A forma eucariota de sexo, que se dá pelo encontro de duas células diferentes, permite uma troca fantástica de informações contidas nos respectivos núcleos. Isso origina uma enorme biodiversidade.

Surge, pois, um novo ser vivo, a célula que se reproduz sexualmente a partir do encontro com outra célula. Tal fato já aponta para o sentido profundo de toda sexualidade: a troca que enriquece e a fusão que cria pradoxalmente a diversidade. Esse proceso envolve imperfeições, inexistente na mitose. Mas favorece mutações, adaptações e novas formas de vida.

A sexualidade revela a presença da simbiose (composição de diferentes elementos) que, junto com a seleção natural, representa a força mais importante da evolução.

Tal fato vem carregado de consequências filosóficas. A vida é tecida de cooperação, de trocas, de simbioses, muito mais do que de luta competitiva pela sobrevivência. A evolução chegou até o estágio atual graças à essa lógica cooperativa entre todos.

Deixando de lado muitos outros dados fundamentais e indo diretamente à sexualidade humana devemos reconhecer que ela está embasada num bilhão de anos de sexogênese. Mas possui algo singular: o instinto se transforma em liberdade, a sexualidade desabrocha no amor. A sexualidade humana não está sujeita ao ritmo biológico da reprodução. O ser humano se encontra sempre disponível para a relação sexual, porque esta não se ordena apenas à reprodução da espécie mas também e principalmente à manifestação do afeto entre os parceiros. O amor reorienta a lógica natural da sexualidade como instinto de reprodução; o amor faz com que a sexualidade se descentre de si para se concentrar no outro. O amor torna os parceiros preciosos uns para os outros, únicos no universo, fonte de admiração, de enamoramento e de paixão. É por causa dessa aura que o amor se revela como o âmbito da suprema realização e felicidade humana ou, no seu fracasso, da infelicidade e da guerra dos sexos.

O ser humano precisa aprender a combinr instinto e amor. Sente em si, necessidade de amar e de ser amado. Não por imposição, mas por liberdade e espontaneidade. Sem essa liberdade de quem dá e de quem recebe, não existe amor. É a liberdade e a capacidade de amorização que constroem as formas de amor que humanizam o ser humano e lhe abrem perspectivas espirituais ultrapassando em muito as demandas do instinto.

Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro, recém falecida, Feminino-masculino: um novo paradigma para uma nova relação, Record 2010. Esse artigo é pensandoem sua homenagem pois com ela trabalhei mais de vinte anos.

In.: Leonardo Boff

 

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