Mostrando postagens com marcador Calar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Calar. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

QUAL A VANTAGEM DE SER JOVEM E CONSERVADOR?

Há uma tendência, mais ou menos generalizada, de uma parcela da juventude hoje se apegar a conjuntos de ideologias, crenças e visões de mundo marcadas por legalismos extremados e conservadores. Aqueles mesmos que oferecem sempre respostas prontas, à custa da supressão de uma liberdade conquista de forma tão cara... quando não se precisa pensar, desde que você pense de acordo com o que se diz para pensar ou  que aja da forma como se diz para agir. A ideia é suprimir toda incoerência que nasce da liberdade da pessoa para se estabelecer uma ordem social, moral, religiosamente pura, sem manchas, sem pecado. Em um mundo assim, não há lugar para o “pecado”, não há lugar para a humanidade, não há lugar para o erro... Suprime-se tudo que é humano, tudo que leva a pecar, o corpo, a carne, o coração, o erro... exalta-se tudo que é “divino”...

Nietzsche, que é um desses filósofos que viveram há alguns séculos atrás, porém, nunca morreu, pois seu pensamento continua soando aos ouvidos como um címbalo desconfortável, foi um dos primeiros a perceber e alertar para esse perigo: de que quando se tem muita necessidade de afirmar perfeições aparentes, é porque o que realmente importa já foi abandonado, esquecido, morto... Dizendo de outra forma, o homem moderno aprendeu a esquecer de Deus. Quis ser tão perfeito que sua perfeição não foi suportada nem pelo próprio Deus. Era o que Nietzsche chamava de Niilismo, isto é, o esvaziamento dos valores.

Esse é o perigo que vejo no coração e na mente de muitos jovens apegados, desordenadamente, a conservadorismos exacerbados, jogando fora aquilo que de mais sagrado tem, sua paixão, sua força vital de transformar, sua liberdade... Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que perde sua liberdade, afirma-se o individualismo, o egocentrismo... Ser você, e só você, mas desde que dentro de uma fôrma. Essa é a proposta...

Por outro lado, eu até entendo o que se passa no coração de muitos desses jovens. Hoje, a falta de referências que testemunhem uma vida de sentido é um tapa na cara. Parece não haver mais referências sociais, políticas, religiosas... Nossos heróis já não existem mais ou, se existem, se tornaram humanos demais... Eu entendo isso.

Porém, a falta de referenciais não é necessariamente falta, é distanciamento, esquecimento, como já alertava Nietzsche... Nesse mundo louco de informações contraditórias e híbridas, esquecemos e nos distanciamos do essencial. Nesse cenário é fácil ser pescado por qualquer proposta aparentemente mais fácil, rápida ou prazerosa. Ainda mais se acompanhada de alguém que saiba convencer pelo discurso... Para um jovem crítico, indignado, sedento por novidade, gente como Olavo de Carvalho, Silas Malafaia, Jair Bolsonoro, cai como uma luva. Eles, esses patifes da pós-modernidade, têm tudo o que esse jovem, aparentemente e por um tempo bem determinado, precisa: respostas prontas, cheias de ódio, preconceitos e falácias... Mas não as suportam por muito tempo... Ou seja, eles matam os deuses que criaram, pois não se sustentam mesmo, e logo em seguida se sentem perdidos... Há vazios que se preenchem, outros que permanecem vazios infinitamente...

Há, porém, aqueles que continuam afirmando sua vida, sem moralismos, sem subterfúgios conservadores, sem niilismos... Esses não buscam referenciais, pois suas referências nunca saíram de dentro deles... Esses, quando falam são ouvidos, quando apontam são seguidos, quando gritam são respeitados...

Leia mais...

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O SILÊNCIO DA BORBOLETA...

Há dias em que tento silenciar e há silêncios que são mais incômodos que qualquer barulho. Quando o interior não quer fazer silencio não há nada que faça aquietar a alma... Ela sempre deseja ir além do corpo, que parece limitá-la como se estivesse presa a ele, como se quisesse libertar-se dele. Tem gente que diz que o corpo é a prisão da alma, como se fossem duas coisas que pudessem se separar. Eu, particularmente, não acredito que Deus seria tão imperfeito ao ponto de me dar uma individualidade tão volátil ao ponto de separá-la. Não! Creio que o ser humano é uma unidade e uma individualidade perfeitamente harmônica e indivisível, mesmo que às vezes essa harmonia não seja perfeitamente vivida por causa dos barulhos e ruídos, sejam os de fora ou os de dentro.
Em certos instantes a vida me presenteia com a possibilidade de transformá-la a partir do silêncio. São momentos raros, às vezes é uma brisa suave que sopra, outras um pousar de uma borboleta, outras vezes um beijo e um abraço sincero de quem se ama. O fato é que o silencio que transforma sempre me joga pra dentro de mim mesmo e depois me lança pra fora ao encontro também de mim mesmo. Encontro-me aqui dentro, mas também ali onde minha vida se converge a todos e a tudo.
Lembro que em 2002 fiz um retiro espiritual com os jesuítas, em uma ilha na cidade de Itaparica – Salvador, na Bahia. É a experiência chamada Exercícios Espirituais Inacianos, que podem ser vividos em 30 dias corridos. E foi assim, trinta dias inteiro rodeado por um silêncio absurdamente transformador. Recordo que nos primeiros dias era quase doloroso silenciar, deixar o meu tempo se transformar no tempo de Deus. Eu queria tudo muito rápido, logo... Esquecia que tinha 30 dias pela frente pra aprender a calar. E foi com muito custo e, evidentemente, muita paciência que fui aprendendo aos poucos a falar para calar...
Hoje é difícil eu cavar tempo para fazer novamente aquela experiência transformadora de silêncio durante 30 dias. Mas ela deixou marcas tão profundas em mim que o silêncio se tornou uma necessidade cotidiana. Descobri que as transformações que dão verdadeiramente sentido acontecem no silêncio, exatamente como a metamorfose do casulo que carrega a larva precisa de silêncio para transformar-se em borboleta... Depois de transformada, a borboleta entra em um ritmo frenético. Porém, ela não esquece que necessita do silêncio... é o que vemos sempre que uma borboleta está pousada, ela apenas – e por necessidade vital – silencia, fica imóvel, as vezes movimentando bem lentamente suas asas acostumadas ao ritmo louco de sua curta vida... Assim também acontece comigo. Adélia Prado expressa tudo isso do seu jeito simples e profundo quando afirma: “Uma borboleta pousada ou é Deus ou é nada”.

José Wilson Correa Garcia - em um desses silêncios qualquer...
Leia mais...

terça-feira, 5 de março de 2013

AMOR - Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
Leia mais...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O FECHAMENTO DA CAJU, DA IGREJA E DOS JESUÍTAS

Tenho acompanhado de longe – mas nem por isso distante – e com perplexidade os acontecimentos que levaram o fechamento arbitrário da CAJU, em Goiânia.


Para quem não conhece, a Casa da Juventude (CAJU) se tornou, durante 30 anos, um Centro de Capacitação e Formação Juvenil de referência Local, Nacional e Internacional. Ali acontecia formação para Jovens, Pastorais e Movimentos de diversos segmentos da Igreja e da Sociedade, em praticamente todos os âmbitos do universo juvenil: litúrgico/religioso, político, artístico, tecnológico, científico, etc. Mais ainda:, apesar de estar localizada em Goiânia, GO a CAJU esteve presente em quase todos os espaços de assessoria e formação de forma itinerante, seja no Brasil ou fora dele. Mas não quero falar da CAJU como um espectador estatístico. Não! Quero falar da CAJU como homem, como pessoa que foi transformado por sua missão, quero recordar nomes que me marcaram profunda e positivamente. Mas também quero lembrar nomes que, agora, são motivo de vergonha e tristeza...


Fui Jesuíta durante mais de 10 anos. Por uma série de circunstâncias que não vale a pena me estender agora, me desliguei da Companhia de Jesus e hoje sou Professor, amo e sou amado pela Gabriela, com muito orgulho e sou muito feliz por isso tudo. Durante o tempo em que estive na Ordem dos Jesuítas, por opção pessoal e pastoral, estive próximo do serviço a juventude, primeiramente através do Instituto de Pastoral da Juventude do Regional Leste II da CNBB, em Belo Horizonte (IPJ Leste II). Evidentemente, os trabalhos que assumíamos, nos colocaram em contato direto com outras pessoas, centros e institutos espalhados pelo Brasil. Assim conheci as primeiras pessoas que atuavam na CAJU. Depois, também por iniciativa pessoal, tive a oportunidade de fazer um Curso de Pós-graduação em Adolescência e Juventude no Mundo Contemporâneo, que acontecia e era articulado pela própria CAJU. Ali pude experimentar, verdadeiramente, o que é a CAJU. Ali conheci a Carmem, a Edina, o Lourival, a Jaciara e tantas outras e outros que faziam da CAJU um sonho possível e necessário de ser realizado. Nunca, em anos como jesuíta, tinha encontrado uma obra com tanto protagonismo leigo e dedicação à sua missão...


Como Jesuíta, e pelo fato de a CAJU ser uma obra ligada à Companhia de Jesus, quis saber quem eram os Jesuítas que, naquele momento, estavam por trás de toda aquela obra. É que geralmente, nas obras dos Jesuítas, normalmente eles definem e determinam quase tudo dentro dela, pois como ouvi muito dizer, “quem tem poder tem controle”. Para meu espanto, encontrei, como diretor, Pe. Geraldo Labarrère Nascimento, uma figura incrivelmente próxima, jovial e espantosamente amiga, muito diferente dos outros jesuítas da Província Centro-leste, que assumem um estereótipo de “intocáveis”, muito diferente dos Jesuítas, por exemplo, do Nordeste. Na segunda etapa descobri que o Pe. Geraldo não era mais o diretor, e sim a Carmem Lúcia Teixeira. Sim, uma mulher (diga-se de passagem, capacitadíssima) como diretora de uma obra dos Jesuítas, algo que nunca tinha visto, principalmente ali, naquela região. Também, tinha o Pe. Hilário Dick, que apesar de ser da Província da Sul (outro que tinha tudo para ser um “intocável”), esteve muito ligado à CAJU e naqueles dias estava facilitando uma disciplina na pós-graduação. Para quem conhece o Pe. Hilário, ele dispensa apresentações. É uma figura psicodélica, que fala da juventude como uma poesia constante, diária e necessária, que é como um sino que alerta constantemente a Igreja no Brasil da necessidade de ter um olhar e uma ação diferenciada para a Juventude. Pe. Geraldo e Pe. Hilário foram os dois Jesuítas que me ensinaram o que os Jesuítas deveriam fazer com suas obras, mas não fazem...


Hoje, quando percebo todo o desfecho que levou o fechamento da CAJU, apesar de sentir e de compartilhar a dor e a indignação de muitos que tem aquela casa como referência, confesso que não fico tão admirado assim. Meu espanto por encontrar, na CAJU, uma autonomia e um protagonismo leigo era, na verdade, um presságio. Sim, para mim o desfecho da CAJU é a confirmação de uma postura que, desgraçadamente, se enraizou e se afirmou na Igreja: o autoritarismo nada evangélico.


São pouquíssimos os bispos e padres que, hoje, tem a intenção de formar gente que pense por si, que se sinta verdadeiramente Igreja de Jesus Cristo... Pe. Geraldo, por exemplo, é um desses pastores. Seu sucessor, Pe. Nilson Marostica, é radicalmente o inverso e quando fiquei sabendo que ele tinha sido destinado para substituir o Pe. Geraldo, pensei no meu coração, “Ai vem coisa...”, mas preferi guardar esses acontecimentos no coração, como Maria. Entendo perfeitamente que Pe. Nilson, junto com o Provincialato dos jesuítas da Província Centro-leste, Pe. Smida e Pe. Carlos Fritzen, tenham argumentos econômicos e administrativos/filantrópicos para justificar essa atitude arbitrária e autoritária de fechar a CAJU. Mas no coração de quem vivenciou e entendeu a missão da CAJU, não existe justificativa possível... No fim das contas, aí está, mais uma vez, a afirmação de um modelo de igreja e de trabalho com a juventude que tem o controle como centro.


A CAJU fechou? Os que compartilharam com essa arbitrariedade e irresponsabilidade (sim, irresponsabilidade, pois nenhuma obra que funcionou com mais de 30 anos de projeto, é simplesmente fechada tão rápido quando inconseqüentemente), dirão que não, a CAJU continuará, mas em outra linha, em outra perspectiva de trabalho... Os que entendem a CAJU profundamente, afirmam acertadamente que ela fechou, sim. E fechou porque a CAJU não era somente a obra física, mas era a missão, o protagonismo, a autonomia... coisas tão desejadas e queridas pelos últimos documentos das Congregações Gerais e Normas dos Jesuítas. Mas quem perde não é somente a juventude brasileira e latino-americana, que não terão mais um centro de referência e formação, com tanta experiência e material sistematizado e publicado. Quem perde também é a igreja...


Apesar de tudo, ainda me sinto Igreja de Jesus. E como tal sofro porque sinto que, institucionalmente, a Igreja e os jesuítas perdem, em muito, com atitudes como essa. Estão se afastando do mundo. Acham que o punhado de jovens que conseguem controlar dentro de suas obras é o suficiente para a missão que Deus os confia... Mas não é...


A CAJU fechou? Institucionalmente, sim. E, com ela, também fechou a Igreja, fechou também os Jesuítas... Sinto e sei, contudo, que a CAJU também continua, no coração daquelas e daqueles que entenderam e viveram sua missão de levar para o mundo a mensagem do jovem Jesus de Nazaré... Isso não se fecha!



José Wilson Correa Garcia.
Leia mais...

segunda-feira, 30 de julho de 2012

DÁ-NOS TUA PAZ

Um poesia de Pedro Casaldáliga que sempre ajuda a alimentar a Vida em horas críticas onde a falta de esperança e sentido parecem nos engolir com sua boca enorme. Instantes em que desejamos aquela Paz misteriosa que brota do alto e se enraiza neste chão que a gente pisa com os pés descalsos...


Dá-nos, Senhor, aquela Paz estranha
que brota em plena luta
como uma flor de fogo;
que rompe em plena noite
como um canto escondido;
que chega em plena morte
como um beijo esperado.

Dá-nos a Paz dos que caminham sempre,
nus de toda vantagem,
vestidos pelo vento da Esperança.

Aquela Paz dos pobres,
vencedores do medo.
Aquela Paz dos livres,
amarrados à vida.

A Paz que se partilha na igualdade,
como a Água e a Hóstia.

A Paz do Reino, que vem vindo,
inviável e certo.

Dá-nos a Paz, a outra Paz, a tua,
Tu que és nossa Paz!
Leia mais...

domingo, 29 de abril de 2012

O QUE SE CALA E O QUE SE FALA



Uma Eterna vez
uma amiga minha
mandou um sopro
que falava de silêncio
e seus antagonismos,
como aquela tensão necessária
entre o que se cala – e sabe-se calar –
e o que se fala – e sabe-se falar –.
Duas forças naturais,
ao mesmo tempo em que
contraditórias e necessárias...
Contraditórias por que
em circunstâncias mal entendidas
uma pode matar a outra.
Necessárias por que
o que se cala e o que se fala podem,
e oxalá precisem,
comunicar da sua forma,
o essencial e eterno da Vida...

Tanto uma como a outra
podem tornar-se fuga
desse eterno escondido em cada coisa.

Para fugir,
basta apenas falar quando deve-se calar,
basta apenas calar quando deve-se falar.
A nós - aos intensos -
basta saber do antagonismo do silêncio
no momento que calamos,
basta conhecer o paradoxo do dito
no momento que falamos.
Talvez o mais importante seja isso:
Saber por que se fala...
Saber por que se cala...

Na noite, em que os anjos
parecem calar e falar,
calo-me diante das verdades eternas
de um coração amigo...
Calo,
por que por que aprendi que preciso falar...
Falo,
por que aprendi que preciso calar...
E assim, descobrimo-nos capazes de criar, como Deus...
Simplesmente por que:
“Somos fecundos apenas ao preço
de sermos ricos em antagonismos”

José Wilson Correa Garcia
Leia mais...