terça-feira, 5 de março de 2013

AMOR - Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
Leia mais...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

MINHA VIDA, MEU AMOR...

Dizem que a Vida
só é possível de ser vivida compartilhada.
Não gosto de pensá-la – a Vida –
apenas como um instante de troca
ou doação, que seja...
Muito menos de vivê-la
como um hábito de encontros e desencontros,
de reencontros e despedias,
de desejos doados e vazios preenchidos...
Não! A Vida não é apenas isso,
a Vida é tudo isso,
e mais um pouco,
muito mais...

Desejava existirem palavras possíveis
de preencherem vazios imensos,
aqueles que nos alcançam
como um abraço apertado de dor,
onde o silêncio nos beija
como a única possibilidade
de uma Vida vivida com paixão...

Conheci vastos mares de silêncios e solidões.
Andei por caminhos que não se acabam,
e ainda ando, com os pés descalços,
mesmo que muitos digam que é em vão...

Sonhei com as flores do campo
repletas de belezas,
sem saber onde pisar ou como colher...
Chorei e sorri sozinho,
com Deus e sem Ele...

E antes de esta mesma Vida ter-me desfeito,
naquele silêncio que se dissolve nas palavras,
conheci a importância de falar para calar.

Foi então que entendi
que a saudade é apenas uma palavra...
Uma palavra carregada de sentido,
cheia de carne e sangue.
E que o Amor
é aquela força transformadora
que nos tira de dentro de nós mesmos
para nos jogar dentro de tudo,
e nos transformar em absolutamente tudo...

E foi assim,
que conheci uma vida cheia de sentido.
Conheci o Amor, meu Amor, Minha Vida...
Aprendi que na sua fragilidade
é preciso respeitar o que o silêncio grita,
e chorar junto quando for preciso...
E mesmo sem saber como,
ou onde, e a que distância,
cuidar para que o Amor e a Vida
não se percam no esquecimento de uma solidão morta,
mas que sejam cuidados a cada momento de encontro
simplesmente para que sejam eternos enquanto durarem...



José Wilson Correa Garcia
Canoa Quebrada, Ceará, Brasil - Num desses verões, sentado na varanda, em um fim de tarde, quando o vento sopra mais misterioso e o céu se converte num vermelhidão de sentimentos...
Leia mais...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

HOJE PENSEI MUITO NA MINHA INFÂNCIA

Hoje pensei muito na minha infância. E lembrar-se dela me fez recordar, isto é, fiz passar novamente pelo coração, a verdade de que a Vida é realmente um mistério! Sim, lembrei que não tinha preocupações, que tudo parecia ser tão fácil, exatamente porque quase tudo não dependia simplesmente de mim. Lembrei que não tinha cerimônias com muitas coisas, por exemplo, quando comia bolacha (ou biscoito) amassado na minha tigela de café com leite. Ou quando corríamos com os pés descalços enquanto mamãe gritava o nosso nome chamando pra tomar banho, porque o horário de ir à escola já se aproximava. Ou quando ainda brincávamos de pique esconde, como uma espécie de presságio sobre o futuro inevitável que se aproximava, quando deixaríamos de ser apenas crianças e sentiríamos necessidade, de vez em quando, de se esconder do mundo...


Não me sinto mais criança, reconheço que sou adulto, tenho outras demandas, outras responsabilidades, outros desejos, outros sonhos... Mas há algo dentro de mim que não permite que minha infância seja simplesmente apagada. E é por isso que hoje recordei que a Vida é realmente um mistério, porque ela sempre exige da gente uma liberdade que a gente só têm quando é criança. Não qualquer liberdade, mas aquela que nos faz reconhecer que a vida não depende só da gente e que, por isso mesmo, devemos sempre confiar... É exatamente por isso que a lembrança mais nítida e surpreendentemente distante que tenho da minha infância é de quando eu ainda estava de colo, talvez com pouco mais de um ano. Não lembro ao certo o que estava se passando a minha volta naquele dia – é que a gente quando é muito criancinha não se preocupa muito com aquilo que está para além daquilo que nossos sentidos e sentimentos podem absorver. O fato é que lembro de papai me carregando no colo. Estava descendo comigo a escadaria da Igreja e no meio do caminho para pra me mostrar uns miquinhos (sim, macaquinhos) que viviam por ali em uma casinha de madeira suspensa por um galho seco... e papai jogava alguma coisa pra eles pegarem, e eu ficava maravilhado com aquilo – é que quando a gente é criança a gente, também, tem uma sensibilidade mais aguçada, o que nos torna capaz de se maravilhar mais facilmente com aquilo que hoje consideramos simples e, por vezes, banal.


Enfim, acho que há algo de mágico na infância que nos ensina que a vida é, sobretudo, um ato de confiança – exatamente como confiava no colo de meu pai, ou na voz da minha mãe. E que o tempo, aquele mostro que parece engolir com sua boca enorme os anos de nossa liberdade, nada mais é do que o instante presente que temos para confiar, amando com intensidade e cuidado da criança que misteriosamente nos habita e, oxalá, sempre habitará...
Leia mais...

DESEJO DE UNIDADE


Não tenho inclinação para ser melodramático, nem tão pouco excessivamente otimista comigo mesmo, nem muito menos com os outros. Na verdade às vezes me sinto como uma barca a deriva, balançando entre pessimismos e realismos... E entendo que assim mesmo, de vez em quando, é necessário que seja, como se essa fosse a única forma de não esquecer que a Vida não é aquele punhado de sonhos que aprendi nos tempos de minha infante liberdade...

Sinto, na verdade, que ela, a Vida, é um emaranhado caótico de forças antagônicas que brincam com meu corpo. As vezes os pés caminham por caminhos que não são possíveis às mãos tocarem. A cabeça fala de coisas que o coração não sente, ou o coração sente coisas que não é possível à cabeça entender...

Me sinto assim, disperso de mim mesmo, partido em pedaços que não se encontram, como se o elemento ou o elo que liga as minhas partes estivesse, também, disperso...

...Falando em elo, tem tempo que não deito a cabeça no colo de Deus... lá onde sempre consegui ser eu mesmo, sem máscaras, humanamente eu, simplesmente Ele... Sinto saudades da Sua voz gritando do Mar, "não temas", enquanto sentia medo na barca. Ou quando sentava ao Seu lado, na mesa, pra comer do mesmo pão e beber da mesma água ou vinho, que seja... Sinto saudades de quando, sentados diante da arte ou daquelas coisas simples que esquecemos de contemplar, ríamos e chorávamos juntos, dos meus desmantelos e das minhas doidices... Sem julgamentos, sem o peso do bem ou do mau...

Sim, sinto necessidade dessa unidade que dá sentido àquilo que sou.

Desejo um abraço apertado, neste exato momento, daqueles e daquelas que são minha carne, meu sangue e minha alma, e o sabem...

Como sacramento dessa unidade necessariamente tardia, desejo tudo aquilo que está longe de mim, pois no fim das contas, sou solidão, mas também esperança e amor...


Para minha família, que está longe e nunca deixo de sentir saudades, e Gabriela, a mulher que amo, e de quem sinto falta todos os dias...

José Wilson Correa Garcia

Leia mais...

O MAR

Nunca consegui ficar muito tempo longe do Mar. Desde criança ele sempre habitou minha vida e ela sempre esteve mergulhada nele. Lembro que na casa de mamãe e papai, naquele tempo em que éramos ingenuamente livres, quando chovia muito forte, eu e meu irmão, sem medo de trovões e relâmpagos, pegávamos a bola e corríamos para a beira da praia, onde brincávamos e, as vezes, brigávamos... Depois, caíamos no Mar. Nunca nos contentávamos apenas com a água da chuva, sempre desejávamos o Mar mesmo, e fazíamos do nosso desejo - que não precisava ser dito - realidade. Ficávamos somente com a cabeça do lado de fora, buscando fôlego (a água do Mar com chuva, para quem conhece esse tempo, é morna e melancólica). A torrente d'água da chuva caindo sobre a superfície espelhada do Mar produzia um som contínuo e estridente. Não nos ouvíamos direito, mas nos entendíamos...
 
Depois de um tempo buscando fôlego eu abaixava a cabeça, ficava totalmente submerso. Lá não se ouvia mais barulho algum, somente o silêncio daqueles mistérios que só pertencem ao Mar, aqueles que vem e vão, incessantemente, como as ondas.... Lá embaixo, o mundo e a vida davam um suspiro silenciosamente desconcertante, e tudo parecia simplesmente aquietar-se... Era apenas eu e meu mistério.

Curiosamente, hoje, enquanto dormia, sonhei com o Mar! Foi um sonho de paz e misteriosa quietude. Eu e meu irmão já não corremos mais em direção à praia chuvosa de nossa infância... Cada um de nos dois teve que crescer e achar seus amores. Mas o Mar continua habitando minha vida como se dela nunca tivesse saído ou mudado, apesar de seu incessante e constante ir e vir. Mas foi exatamente naquela infância que aprendi que as conchas escondem dentro de si o barulho do Mar, aquele mesmo... E é verdade! Gostava de ficar deitado, antes de dormir, com uma delas perto do ouvido, simplesmente escutando... Hoje, no sonho, descobri que minhas duas mãos, em forma de concha, podem reproduzir exatamente o mesmo mistério, exatamente porque, apesar do tempo e da distância, elas continuam habitadas por aquilo que aprenderam, desde sempre, a amar: o Mar.

José Wilson Correa Garcia


Leia mais...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O FECHAMENTO DA CAJU, DA IGREJA E DOS JESUÍTAS

Tenho acompanhado de longe – mas nem por isso distante – e com perplexidade os acontecimentos que levaram o fechamento arbitrário da CAJU, em Goiânia.


Para quem não conhece, a Casa da Juventude (CAJU) se tornou, durante 30 anos, um Centro de Capacitação e Formação Juvenil de referência Local, Nacional e Internacional. Ali acontecia formação para Jovens, Pastorais e Movimentos de diversos segmentos da Igreja e da Sociedade, em praticamente todos os âmbitos do universo juvenil: litúrgico/religioso, político, artístico, tecnológico, científico, etc. Mais ainda:, apesar de estar localizada em Goiânia, GO a CAJU esteve presente em quase todos os espaços de assessoria e formação de forma itinerante, seja no Brasil ou fora dele. Mas não quero falar da CAJU como um espectador estatístico. Não! Quero falar da CAJU como homem, como pessoa que foi transformado por sua missão, quero recordar nomes que me marcaram profunda e positivamente. Mas também quero lembrar nomes que, agora, são motivo de vergonha e tristeza...


Fui Jesuíta durante mais de 10 anos. Por uma série de circunstâncias que não vale a pena me estender agora, me desliguei da Companhia de Jesus e hoje sou Professor, amo e sou amado pela Gabriela, com muito orgulho e sou muito feliz por isso tudo. Durante o tempo em que estive na Ordem dos Jesuítas, por opção pessoal e pastoral, estive próximo do serviço a juventude, primeiramente através do Instituto de Pastoral da Juventude do Regional Leste II da CNBB, em Belo Horizonte (IPJ Leste II). Evidentemente, os trabalhos que assumíamos, nos colocaram em contato direto com outras pessoas, centros e institutos espalhados pelo Brasil. Assim conheci as primeiras pessoas que atuavam na CAJU. Depois, também por iniciativa pessoal, tive a oportunidade de fazer um Curso de Pós-graduação em Adolescência e Juventude no Mundo Contemporâneo, que acontecia e era articulado pela própria CAJU. Ali pude experimentar, verdadeiramente, o que é a CAJU. Ali conheci a Carmem, a Edina, o Lourival, a Jaciara e tantas outras e outros que faziam da CAJU um sonho possível e necessário de ser realizado. Nunca, em anos como jesuíta, tinha encontrado uma obra com tanto protagonismo leigo e dedicação à sua missão...


Como Jesuíta, e pelo fato de a CAJU ser uma obra ligada à Companhia de Jesus, quis saber quem eram os Jesuítas que, naquele momento, estavam por trás de toda aquela obra. É que geralmente, nas obras dos Jesuítas, normalmente eles definem e determinam quase tudo dentro dela, pois como ouvi muito dizer, “quem tem poder tem controle”. Para meu espanto, encontrei, como diretor, Pe. Geraldo Labarrère Nascimento, uma figura incrivelmente próxima, jovial e espantosamente amiga, muito diferente dos outros jesuítas da Província Centro-leste, que assumem um estereótipo de “intocáveis”, muito diferente dos Jesuítas, por exemplo, do Nordeste. Na segunda etapa descobri que o Pe. Geraldo não era mais o diretor, e sim a Carmem Lúcia Teixeira. Sim, uma mulher (diga-se de passagem, capacitadíssima) como diretora de uma obra dos Jesuítas, algo que nunca tinha visto, principalmente ali, naquela região. Também, tinha o Pe. Hilário Dick, que apesar de ser da Província da Sul (outro que tinha tudo para ser um “intocável”), esteve muito ligado à CAJU e naqueles dias estava facilitando uma disciplina na pós-graduação. Para quem conhece o Pe. Hilário, ele dispensa apresentações. É uma figura psicodélica, que fala da juventude como uma poesia constante, diária e necessária, que é como um sino que alerta constantemente a Igreja no Brasil da necessidade de ter um olhar e uma ação diferenciada para a Juventude. Pe. Geraldo e Pe. Hilário foram os dois Jesuítas que me ensinaram o que os Jesuítas deveriam fazer com suas obras, mas não fazem...


Hoje, quando percebo todo o desfecho que levou o fechamento da CAJU, apesar de sentir e de compartilhar a dor e a indignação de muitos que tem aquela casa como referência, confesso que não fico tão admirado assim. Meu espanto por encontrar, na CAJU, uma autonomia e um protagonismo leigo era, na verdade, um presságio. Sim, para mim o desfecho da CAJU é a confirmação de uma postura que, desgraçadamente, se enraizou e se afirmou na Igreja: o autoritarismo nada evangélico.


São pouquíssimos os bispos e padres que, hoje, tem a intenção de formar gente que pense por si, que se sinta verdadeiramente Igreja de Jesus Cristo... Pe. Geraldo, por exemplo, é um desses pastores. Seu sucessor, Pe. Nilson Marostica, é radicalmente o inverso e quando fiquei sabendo que ele tinha sido destinado para substituir o Pe. Geraldo, pensei no meu coração, “Ai vem coisa...”, mas preferi guardar esses acontecimentos no coração, como Maria. Entendo perfeitamente que Pe. Nilson, junto com o Provincialato dos jesuítas da Província Centro-leste, Pe. Smida e Pe. Carlos Fritzen, tenham argumentos econômicos e administrativos/filantrópicos para justificar essa atitude arbitrária e autoritária de fechar a CAJU. Mas no coração de quem vivenciou e entendeu a missão da CAJU, não existe justificativa possível... No fim das contas, aí está, mais uma vez, a afirmação de um modelo de igreja e de trabalho com a juventude que tem o controle como centro.


A CAJU fechou? Os que compartilharam com essa arbitrariedade e irresponsabilidade (sim, irresponsabilidade, pois nenhuma obra que funcionou com mais de 30 anos de projeto, é simplesmente fechada tão rápido quando inconseqüentemente), dirão que não, a CAJU continuará, mas em outra linha, em outra perspectiva de trabalho... Os que entendem a CAJU profundamente, afirmam acertadamente que ela fechou, sim. E fechou porque a CAJU não era somente a obra física, mas era a missão, o protagonismo, a autonomia... coisas tão desejadas e queridas pelos últimos documentos das Congregações Gerais e Normas dos Jesuítas. Mas quem perde não é somente a juventude brasileira e latino-americana, que não terão mais um centro de referência e formação, com tanta experiência e material sistematizado e publicado. Quem perde também é a igreja...


Apesar de tudo, ainda me sinto Igreja de Jesus. E como tal sofro porque sinto que, institucionalmente, a Igreja e os jesuítas perdem, em muito, com atitudes como essa. Estão se afastando do mundo. Acham que o punhado de jovens que conseguem controlar dentro de suas obras é o suficiente para a missão que Deus os confia... Mas não é...


A CAJU fechou? Institucionalmente, sim. E, com ela, também fechou a Igreja, fechou também os Jesuítas... Sinto e sei, contudo, que a CAJU também continua, no coração daquelas e daqueles que entenderam e viveram sua missão de levar para o mundo a mensagem do jovem Jesus de Nazaré... Isso não se fecha!



José Wilson Correa Garcia.
Leia mais...

domingo, 19 de agosto de 2012

VERDADE


Porque a verdade é sempre dura?
Porque expressá-la
de forma pessoal, clara e sincera
incomoda tanto?

A Verdade!
Ela só pode ser o que diz,
aquilo que é pessoalmente óbvio.
Claro, de um pondo de vista realmente particular.

Nela não há fantasias,
não há projeções,
não há ilusões.
Há, talvez, um pouco de Paixão.
E talvez esta seja necessária.
Quem sabe a própria verdade
só seja possível com Paixão!?

Toda Verdade deve ser respeitada
seja lá qual for seu peso,
seja lá qual for sua força,
seja lá qual for sua verdade.
Ela pode parecer vergonhosa
talvez por revelar o óbvio
encarcerado em nossas consciências.

Consciência corrompida,
oprimida, limitada, convidada.

Sim, a Verdade é um convite.
Convite à liberdade.

Liberdade da Consciência.
Liberdade do Coração.
Liberdade da Alma.

Ela dói tanto para quem ouve,
quanto para quem fala.
Talvez por que nenhum dos dois
sejam donos dela.
A Verdade é uma realidade Revelada
que não nos pertence.
Talvez por isso doa tanto.

José Wilson
Belo Horizonte,
outono de 2006.
Leia mais...

domingo, 12 de agosto de 2012

Martin Heidegger: O Caminho do Campo

 No primeiro dia de aula, quero refletir com meus estudantes este texto de Martin Heidegger, filósofo Alemão, contemporâneo desde nosso tempo de transformações. É um texto profundo - que exige uma leitura apurada, ruminada, constante - a cerca do Conhecimento. Mais do que um ato de formalidades e trasmição de conteúdos, o Conhecimento deve ser uma experiência vivida...
Eis o texto!
      Do portão do jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Saúda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
      Nele repousava, as vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.
      O pensamento sempre de novo as voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina.
      Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
      Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infância e as primeiras escolhas. Quando, as vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, nos intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, um e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
      Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo, apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres.
      Essas travessias de brinquedos nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
      Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos 2 campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros, a cotovia de manhã se lance ao céu de verão, quer o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro, oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
      O Simples guarda o enigma do que permanece e do que e grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus e verdadeiramente Deus.
      Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que o cerca forem capazes de ouvi-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício.
      Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
      O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
      O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si o trabalho promove aquilo que nadifica.
      Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica.
      Esta gaia ciência é uma sageza sutil. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo, porém, se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
      A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
      Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao jardim do Castelo. Galgando a última colina sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega 3 ás muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do castelo alteia-se a torre da igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
      Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho do campo é agora bem claro.
      É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
      Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.

(Der Feldweg – 1949) In Gesamtausgabe Nº 013 – Aus der Erfahrung des Denken (Sobre a Experiência do Pensar) Tradução de Ermildo Stein

FONTE: Philosopher's Desk.

Leia mais...

segunda-feira, 30 de julho de 2012

DÁ-NOS TUA PAZ

Um poesia de Pedro Casaldáliga que sempre ajuda a alimentar a Vida em horas críticas onde a falta de esperança e sentido parecem nos engolir com sua boca enorme. Instantes em que desejamos aquela Paz misteriosa que brota do alto e se enraiza neste chão que a gente pisa com os pés descalsos...


Dá-nos, Senhor, aquela Paz estranha
que brota em plena luta
como uma flor de fogo;
que rompe em plena noite
como um canto escondido;
que chega em plena morte
como um beijo esperado.

Dá-nos a Paz dos que caminham sempre,
nus de toda vantagem,
vestidos pelo vento da Esperança.

Aquela Paz dos pobres,
vencedores do medo.
Aquela Paz dos livres,
amarrados à vida.

A Paz que se partilha na igualdade,
como a Água e a Hóstia.

A Paz do Reino, que vem vindo,
inviável e certo.

Dá-nos a Paz, a outra Paz, a tua,
Tu que és nossa Paz!
Leia mais...