No primeiro dia de aula, quero refletir com meus estudantes este texto de Martin Heidegger, filósofo Alemão, contemporâneo desde nosso tempo de transformações. É um texto profundo - que exige uma leitura apurada, ruminada, constante - a cerca do Conhecimento. Mais do que um ato de formalidades e trasmição de conteúdos, o Conhecimento deve ser uma experiência vivida...
Eis o texto!
Do
portão do jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do
Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do jardim acompanham-no com o
olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as
sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo
Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz
do campo, dobra em busca da floresta. Saúda, de passagem, à sua orla, o
alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
Nele
repousava, as vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que
um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se
acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia
boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda,
através da amplidão da terra agreste.
O
pensamento sempre de novo as voltas com os mesmos textos ou com seus
próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da
campina.
Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
Mais
freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a
lembrança aos jogos da infância e as primeiras escolhas. Quando, as
vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do
machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras
ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina.
Era lá que trabalhava solícito e concentrado, nos intervalos de sua
ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, um e outros,
mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os
meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados
de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou
no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam
facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu
sonho era protegida por um halo, apenas discernível, pairando sobre
todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas
mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse
sobre todos os seres.
Essas
travessias de brinquedos nada podiam saber das expedições em cujo curso
todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor
do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da
constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só
semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer
significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na
obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente
chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas:
disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra
que oculta e produz.
Isto o
carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro
de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele;
e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos 2
campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação,
próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes
acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o
caminho ondeia entre os outeiros, a cotovia de manhã se lance ao céu de
verão, quer o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia
natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de
gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção
ao celeiro, oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças
as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao
longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados
fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O
Simples guarda o enigma do que permanece e do que e grande. Visita os
homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e
amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é
sempre o Mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do
caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o
velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo
que sua linguagem não diz que Deus e verdadeiramente Deus.
Todavia,
o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar
que o cerca forem capazes de ouvi-lo. São servos de sua origem, não
escravos do artifício.
Em vão o
homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo
terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo
ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seus
ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de
Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o
Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem
monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa
esgotou-se.
O número dos que
ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há
dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que
permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão
sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o
cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua
própria obra.
O apelo do caminho
do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento
oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta
opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si o
trabalho promove aquilo que nadifica.
Do
caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma
serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica.
Esta
gaia ciência é uma sageza sutil. Ninguém a obtém sem que já a possua.
Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a
tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da
primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a
sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo, porém, se
insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em
seu silêncio leva de um para outro lado.
A
serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes
giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da
existência.
Das baixas planícies
do Ehnried, o caminho retorna ao jardim do Castelo. Galgando a última
colina sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega 3 ás muralhas
da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre
as coisas. Atrás do castelo alteia-se a torre da igreja de São Martinho.
Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas,
desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos
de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja
silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após
a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até
aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O
Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e
liberta. O apelo do caminho do campo é agora bem claro.
É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo
fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia
dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar
uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
FONTE: Philosopher's Desk.
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