quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Crônica da “visita” de bolsonaro à Russas-Ceará: estruturas físicas e ideológicas de controle, manipulação e intimidação.

Russas, pela segunda vez, recebeu a visita de um chefe de estado em exercício. A primeira foi em 1998, quando a cidade recebeu Fernando Henrique Cardoso, para um evento de destinação de recursos para o “desenvolvimento” do agro/hidro negócio. No dia 20 de Outubro de 2021, foi a vez de jair messias bolsonaro, que veio para um evento com o mesmo caráter, mas com uma estrutura física e ideológica bem diferentes.

No Brasil os protocolos de segurança para eventos que envolvem o chefe do estado sempre foram megalomaníacos. A ideia é sempre parece tudo maior, mais forte, mais poderoso do que se é. Porém, neste atual governo, somada a essa estratégia megalomaníaca histórica, há um acréscimo ideológico claramente usado. Tudo parece ser pensado com uma finalidade clara de controle, manipulação e intimidação. É isso que tentarei mostrar.

Dias antes do evento forças de segurança já eram vistas na cidade se movimentando para reconhecimento de área. A estrutura física do palanque começou a ser montada três dias antes, na principal praça central da cidade. Na véspera, chegou carros das diversas forças de inteligência, saúde e segurança: exército, batalhões táticos e especiais, polícia federal, polícia civil,  polícia militar, UTI’s móveis e ambulâncias dos serviços de saúde federal, estadual e municipal.

No dia do evento o centro da cidade e o campo onde chegaria o helicóptero com o presidente, pelo menos num perímetro de 1 quilômetro de distância do palanque, estavam todos interditados com barreiras de segurança e guardados por forças da guarda municipal, agentes militares do batalhão local e muitos jovens vestidos de preto fazendo a segurança nas barreiras. Este último grupo me chamou atenção e perguntei a um dos rapazes que estava me olhando com desconfiança do que se tratavam ser esses jovens. Ele me disse que foi um “batalhão” de “voluntários” escolhidos para compor o aparato de segurança do evento.

Na praça central, onde estava o palanque, as barreiras foram colocadas a uns 50 metros de distância do entorno. Pouco antes do evento, quando me aproximava, um segurança solicitou que eu fosse para a outra rua, onde as pessoas estavam sendo revistadas para me aproximar. Fui para o local e não vi nenhuma revista. O palanque na praça tinha uma estrutura coberta com capacidade para comportar, possivelmente, uma média de mil pessoas embaixo do toldo. Esta estrutura pareceu fisicamente pensada e montada para ter uma função de aglomerar uma quantidade pequena de pessoas, embaixo do toldo e nas barreiras em forma de cercado em volta, ao mesmo tempo possibilitando uma impressão de multidão.


Uma hora antes da chegada do presidente, tinha mais segurança e espaço vazio do que gente. Uma fila de uns 200 metros, onde as pessoas, empilhadas e fantasiadas de verde e amarelo, esperavam debaixo do sol quente para serem revistadas e entrarem na estrutura coberta em frente ao palanque. Na revista deste local, escutei algumas reclamações de pessoas que não puderam entrar com bolsas, bandeiras ou nada que pudesse esconder algum objeto que pudesse ser supostamente usado ou arremessado contra o palanque. A estrutura, somente do palanque, estava rodeada nas laterais e por trás, de placas pretas que impossibilitava qualquer aproximação ou campo de visão onde estaria o presidente e sua comitiva. Até a escola estadual, onde o palanque estava montando quase encostado, foi obrigada por forças “ocultas”, a cancelar as atividades educativas no dia. No palanque mesmo só um púlpito no centro com o microfone.

No local da chegada e no entorno da praça, ambulantes vendiam camisas temáticas de super-heróis montados com o presidente. Tinha “homem de ferro”, “capitão américa”, “deadpool”, “robocop” e outras bizarrices mais feitas com a cabeça de bolsonaro. Como de costume, em eventos bolsobaristas, camisas da seleção brasileira de futebol e outras verde amarelas, bandeiras do Brasil amarradas nas costas e um grupo relativamente tímido perambulava pelo entorno. Com a proximidade da chegada do presidente algumas pessoas pareciam ficar mais eufóricas e agitadas, gritando as palavras de ordem já bem conhecidas.

Tudo em volta sugeria um ambiente de veneração à figura de bolsonaro. Não se viam manifestações em favor de um projeto de Brasil ou o desejo de ver os preços dos alimentos, do gás ou do combustível diminuírem. Perguntei, aleatoriamente, a um jovem, um homem e uma mulher devidamente trajados de verde e amarelo o que ia acontecer no palanque. Os três, sem pestanejar e sem conhecimento de mais nada, responderam que era a visita de bolsonaro. Ouvi outros se apegarem a ideia de que os minutos de presença do presidente em russas iriam mudar a história da cidade. Fiquei me perguntando se estes conheciam a história de projetos governamentais, do tipo que estava sendo assinado, na região do Tabuleiro de Russas. Das consequências de tais iniciativas para a vida do pequeno agricultor de comunidades tradicionais situadas naquela região.

O momento da chegada dele foi marcada pelo frenesi de costume que só comprovou o que observava anteriormente. A comitiva, que passou por algumas ruas desde o local de chegada até a praça, foi recebida com gritos de histeria que parecia mais um espetáculo musical. Em nenhum momento bolsonaro e sua comitiva foi vista usando máscaras. Sua fala foi feita a partir do púlpito, sem máscara, ao lado de uma criança vestida com a farda do exército. Usando um discurso populista superficial de costume, bolsonaro também tocou em promessas sobre aumento de auxílios e auto-promoção, terminando com o bordão pseudo-religioso e pseudo-nacionalista que todos conhecemos. Como se não bastasse, tentou imitar, de uma forma constrangedoramente ridícula, um grito típico cearence.

A “cerimônia” acontecida no palanque transcorreu como de costume em todo espetáculo. Os únicos gritos que mais se escutavam era de “mito” e as gritarias sempre aconteciam depois de uma frase ou palavra de impacto de quem quer que fosse. De conteúdo mesmo as únicas explicações dadas sobre as ordens de serviço que ali estava sendo assinadas foram os 3 vídeos institucionais passados que, diga-se de passagem, também foram produzidos com finalidades propagandistas do governo e de encher o tempo com alguma coisa a mais pra entreter os presentes. As falas, sem nenhuma exceção, foram vazias e aleatórias. O prefeito da cidade, filiado ao partido que se opõe radicalmente a bolsonaro, era o único no palanque que estava de máscara. Diferentemente do governador do estado, que nunca fez questão de estar em eventos com o presidente, o prefeito de Russas, talvez, tenha aceitado o fato de não ter capital político e ideológico suficientes para confrontar a estrutura de poder que ali se impunha. Aliás, para municípios pequenos e interioranos como Russas, é difícil encontrar uma ação de confronto eficientemente organizada para se impor diante de um chefe de estado. Tudo no palanque terminou em 15 minutos. Toda aquela estrutura a serviço de 15 minutos.


A única manifestação confrontando o governo bolsonaro e defendendo um projeto para o Brasil aconteceu a quase 1 quilômetro de distância do palco. Era um grupo de dezenas de pessoas de diversas procedências, principalmente jovens. No dia anterior, três destes participantes estiveram se manifestando onde o palanque estava sendo montado. Alguém, que assumiu para si o papel intimidador do evento, ligou para a polícia militar que, prontamente, foi abordar os jovens em busca de sabe-se lá do que. De fato, toda aquela estrutura também foi estrategicamente pensada para intimidar. A manifestação contrária não poderia, nem seria prudente se aproximar de um curral cercado por histéricos e fanáticos.

Infelizmente as forças progressistas de Russas, reflexo do que acontece nacionalmente, ainda permanecem dispersas em bandeiras também dispersas. Estamos engatinhando para um processo de mobilização coletiva. O ensaio de uma unificação em torno da queda do governo bolsonaro, apesar de legítima e importante, pode, mais uma vez, se transformar em apenas gritos dispersos e tentativas monopolizadas de imposições de poder pelo poder.

A imprensa local, no dia anterior, também foi informada de que não poderia transmitir o evento, uma vez que a transmissão oficial ficaria a cargo do maior grupo de comunicado do Estado. De qualquer forma, a tentativa de proibir veículos de comunicação locais não se concretizou e nem poderia. Por isso, alguns dos veículos de comunicação e jornalistas locais, através de uma pequena e limitadora estrutura reservada à imprensa, fizeram suas transmissões, mesmo que de forma limitada a um espaço tão pequeno. A mensagem foi clara: mostrar o que era permitido pelo governo através da tentativa de um controle ideológico da imprensa.

Todos, absolutamente todos os governos brasileiros usaram de estratégicas de aparelhamento do Estado com finalidades das mais diversas, isso é um fato. Porém, em determinados momentos de nossa história esse aparelhamento foi estrategicamente usado com finalidades claramente antidemocráticas, que conjugavam métodos de controle, manipulação e intimidação. Os regimes ditatoriais de nossa história usaram dessas mesmas estratégicas e, depois de décadas de experiência democrática, vemos um governo repetir os mesmos equívocos, assustadoramente sendo aceitos de forma tão “normal”. Toda uma estrutura, que custou no mínimo uns 2 milhões de reais somente aqui em Russas, sendo usada para dar ao presidente seus minutos de “fama” e populismo, poucos meses antes de sua possível candidatura à reeleição.

Apesar de tudo, fiquei feliz em perceber que, no fim das contas, a esmagadora parcela da população russana não se deu ao trabalho de sair de suas casas e atividades para fazer coro ao evento. Na verdade, os poucos que estavam ali, na sua maioria pessoas de outras cidades e outras “envolvidas” no evento, apenas ajudaram a compor o ambiente estrategicamente pensado para parecer maior do que é. Russas, assim como outras cidades de um Nordeste cansado de políticos como bolsonaro, deu seu recado: o nordeste não é curral e cercadinho de bolsonaro. Que este recado chegue até às urnas em 2022.


Por, José Wilson Correa Garcia.
Filósofo e Cientista Social.
Leia mais...

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A SAUDADE DO SOFRIMENTO

Já repararam que quando a gente sente saudades, de vez em quando, sentimos de algo que nos fez sofrer? Vou tentar explicar...

Eu, quando criança, sofria quando ia pra escola. Queria permanecer brincando e feliz. Sentia que a escola não era lugar de felicidade. Depois de adolescente e jovem o sofrimento continuou. E nas constantes reclamações escolares sempre escutava meus professores dizerem que sentiria saudades da escola. Mas nunca acreditei neles. Até que cheguei na faculdade e a saudades da escola apareceu.

Depois de adulto, quando me tornei professor, passei a falar exatamente as mesmas coisas pros meus alunos. E eles nunca acreditam. Isso porque a saudade só existe na distância. É preciso sair da escola para sentir. Não seria assim com tudo?

Lembro que na família, quando éramos crianças, os domingos à noite eram momentos de sofrimento. A vinheta do programa Fantástico anunciava a segunda feira que chegava com uma nova semana de estudo... e sofrimento. Hoje eu daria tudo pra voltar em uma noite daquelas de domingo, quando estávamos juntos em casa assistindo televisão. Hoje sinto saudades destas pequenas felicidades que não posso ter mais, porque passaram.

Recentemente, conversando com duas amigas, perguntava a elas porque a gente às vezes sente saudades de algo que nos fez sofrer no passado. E elas diziam uma coisa que me fez pensar. Talvez sintamos saudades porque no passado aquilo que a gente acreditava que era sofrimento, talvez não fosse. E nossa compreensão do presente nos fez entender que o sofrimento do passado, na verdade, eram instantes de felicidade, que hoje sentimos saudades.

E fiquei pensando nessas peças que o tempo nos prega. Gastamos boa parte do tempo de nossas vidas reclamando dos sofrimentos que vivenciamos no presente, grandes ou pequenos. É óbvio que algumas coisas que nos fazem sofrer machucam de verdade: o corpo, a mente, o espírito. E reconhecemos a felicidade quando nos distanciamos deles. Mas será que, em muitos casos, não reclamamos desnecessariamente? É como se fôssemos sempre um pouco ingratos com a vida que temos, incapazes de olhar as coisas como graça ao invés de olhar sempre como maldição.

A saudade é a prova e o reconhecimento da felicidade que tivemos. No passado, não soubemos valorizar aqueles instantes de felicidade que pensávamos ser sofrimento, porque não éramos quem somos hoje. E isso pode nos ajudar a mudar completamente a forma como lidamos com os instantes presentes de nossas vidas.


Leia mais...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A CULTURA DA COVID-19 E A NATUREZA HUMANA

 Por, Luís Michel Françoso.

 

Imagem de microscópio do novo coronavírus.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/sobe-n%C3%BAmero-de-casos-suspeitos-de-coronav%C3%ADrus-no-brasil/a-52221386

Em recente entrevista ao programa Roda Vida1, o presidente do STF (Superior Tribunal Federal), Dias Toffoli2, reivindicou a figura do antropólogo Lévi-Strauss3 para declarar que “a democracia não é um dado da natureza, a democracia é fruto da cultura humana...”. A fala tornou-se emblemática, pois tergiversa a pergunta do jornalista ao questionar o atual estado de solidez da democracia no Brasil.

Ao opor natureza e cultura, Toffoli procurou relativizar a deterioração da democracia com o subterfúgio de que as coisas da cultura estão sujeitas aos humores do destino, seriam indomáveis, diferente das coisas da natureza, que seriam imutáveis. E assim, nas entrelinhas, a selvageria dos animais políticos parece ser justificada e incorporada nas contingências da cultura, no caso, a democrática.

Oportuno resgate da distinção entre natureza e cultura, pois os coronavírus parecem desautorizar expectativas sobre limites entre estes pólos. Vindos do mundo selvagem, os coronavírus adentraram a vida humana tendo sido tomados como invasores do mundo biológico. Porém, foi nosso modo de vida que, em constante expansão, avançou sobre habitats naturais e impôs uma cultura de dominação.

Exemplo deste fenômeno são as intervenções coloniais europeias no continente africano no início do século XX. O surgimento do vírus HIV se iniciou na cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, por volta de 1920. Seu aparecimento ocorreu em meio ao contexto da construção de ferrovias e de cidades por colonos belgas, como desdobramento das imposições coloniais europeias4. Estas alterações criaram o contexto que proporcionou que um vírus presente em macacos se adaptasse para infectar humanos, o que deu início a uma primeira contaminação nas cidades conectadas por esta ferrovia.

Do mesmo modo, a atual biopandemia por Covid-19 é o resultado de um mecanismo em que um vírus presente em animais selvagens se adapta a ponto de poder infectar seres humanos. Desta interação forçada ocorre um fenômeno denominado de ultrapassar a barreira de espécie5.

Desde a invenção da agricultura e das técnicas de domesticação dos animais, a partir da revolução neolítica, o ser humano altera matas nativas e estabelece relações forçadas com outros animais, até então distantes do nosso convívio. Desta interação ocorre, por vezes, a transformação de microrganismos (a priori benignos em seu habitat natural) em agentes patogênicos6. Ao longo do tempo, por exemplo, das vacas herdamos o sarampo e a tuberculose, dos porcos a coqueluche e dos patos a gripe7.

Atualmente, a destruição destes habitats vem sendo favorecida pelo aumento da população humana e pela intensificação da produção animal, tal como aponta Janice Reis Ciacci Zanella, pesquisadora da Embrapa, em estudo8 sobre suínos e aves. Conforme afirma Zanella, em 2009, a USAID9 revelou que mais de 75% das doenças humanas que surgiram no século XX são de origem animal.

O excessivo consumo de carne, por sua vez, vem forçando o aumento de áreas para criação de gado (a área total já devastada para esta finalidade corresponde ao tamanho do continente africano)10. No interior destas populações de animais confinados para o abate, cria-se um cenário ideal para a geração de vírus, ao custo do contínuo abatimento de animais infectados e potenciais riscos a humanidade.

Outras causas ainda são o aquecimento climático, exploração de novas fronteiras agrícolas e a introdução de vetores em contexto urbano, como roedores e mosquitos. O crescimento das cidades atingiu níveis alarmantes desde 2007. Das 7,7 bilhões de pessoas existentes no mundo, 4 bilhões vivem em 1% da massa terrestre do planeta11. Há mais gente morando em núcleos urbanos do que fora deles.

Concomitante à atual biopandemia, ocorre o aumento no contágio de doenças infecciosas causadas por vírus, bactérias e parasitas através da interação entre seres humanos e outros animais.

Um olhar para a biopandemia enquanto fenômeno cultural pode permitir corrigir o ilusionismo de Toffoli em querer relativizar cenários de destruição. Ao invés de uma guerra contra a implacável natureza de um vírus, que só nos quer fazer morrer, estamos encarando os efeitos da reprodução de uma cultura destrutiva que impomos aos outros seres vivos da Terra.

Observar a biopandemia de Covid-19 enquanto um fenômeno cultural faz surgir questionamentos sobre a aceleração do desmatamento, da urbanização, do agronegócio, do modelo latifundiário e industrial12. Enfim, a reprodução do modelo de desenvolvimento predatório e o atual ataque à democracia apontam para o mesmo lugar: a degradação da vida.

Luís Michel Françoso é antropólogo, professor e mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp – Araraquara (SP).

_____________________________________

1 Programa de entrevistas da TV Cultura exibido em 11 de maio de 2020.

2 José Antonio Dias Toffoli é um jurista e magistrado brasileiro, atual ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal.

3 Claude Lévi-Strauss, antropólogo belga, referência no debate sobre as noções de natureza e cultura. Faleceu em 2009.

https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/02/ciencia/1412260639_097968.html

5 Viroses emergentes e reemergentes http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2001000700031

6 Organismo capaz de gerar doenças infecciosas.

https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/

8 Zoonoses emergentes e reemergentes e sua importância para saúde e produção animal, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pab/v51n5/1678-3921-pab-51-05-00510.pdf.

9 Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional

10 George Monbiot, “There’s a population crisis all right. But probably not the one you think” [Sim, há uma crise populacional. Mas, provavelmente, não aquela em que você está pensando], The Guardian, 19 nov. 2015.

11 Reportagem da BBC Internacional de 01 de fevereiro de 2020 aponta que Wuhan, na China, foco inicial do atual surto de coronavírus é um ponto de referência na circulação de pessoas: “Wuhan é a principal estação do serviço ferroviário de alta velocidade da China, e o vírus chegou no momento em que o país estava prestes a realizar a maior migração humana da história — mais de três bilhões de viagens são feitas pelo país na época do Ano Novo Chinês”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51296088

12 Para mais informações o interessante artigo do Le Monde Diplomatique. https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/

 

Leia mais...

domingo, 16 de agosto de 2020

Socialização, Saúde Mental e inércia no contexto de pandemia.

Chegamos em um estágio desta pandemia em que é inevitável não reconhecer as diversas experiências de socialização presencial como fator fundamental para a realização humana. É no contato com o outro que nos realizamos, crescemos, nos desenvolvemos. A família é um lugar de socialização, mas ela está limitada a um universo que não supre outras dimensões da vida, como amizade, companheirismo, paixão, etc.

A ausência desse contato, para além da socialização familiar, aleija a vida. E as pessoas, depois de mais de quatro meses tentando, aos trancos e barrancos, se manter distantes das outras formas de socialização, começam a sentir as consequências: estresse, irritabilidade, solidão, tristeza e depressão. Sei disso porque sou professor e observo, mesmo a distância, os sinais que meus alunos dão.

Hoje, vemos shoppings centers, praças e praias lotadas de gente. A primeira tendência daqueles mais conscientes, diante deste atual cenário, é julgar e condenar os outros que querem sair de alguma forma. É até compreensível, tendo em vista que, culturalmente, não somos reconhecidos como um povo consciente.

Hoje, me despindo de qualquer carga de moralismo, como professor, eu diria para os pais de meus alunos: levem seus filhos para espaços de socialização. Mas levem em segurança, com distanciamento e com os cuidados que vocês já sabem bem quais são. Se o ambiente tem outras pessoas que não são conscientes e responsáveis, se afastem. Mas não deixem mais seus filhos dentro de casa por muito tempo.

O que vale para a família, em relação a este conselho, também vale para a Escola. É possível, sim, voltarmos aos poucos de forma segura e controlada.

O problema é que, em se tratando (principalmente) de educação pública, nosso sistema educativo não está preparado para esse retorno, assim como não está preparado para outras mudanças necessárias que o contexto de pandemia está exigindo das instituições de ensino. Digo isso porque sou estudante de uma instituição pública e conheço a ineficiência ou má vontade, mesmo depois de quatro meses, em estabelecer um plano de ação de retomada de atividades de forma segura e responsável.

O sistema público brasileiro se acostumou com a lógica de oferecer serviços e realizá-los da forma mais fácil e simples possível. Por isso, permanecemos ainda inertes. É mais fácil simplesmente parar as atividades. E permanecer parados até sabe-se lá quando. Difícil é não se resignar.

A mesma lógica acontece com o problema da seca no nordeste. Entra governo, sai governo e a lógica da relação com a seca permanece: é preciso combater a seca e não conviver com ela. O mesmo vale para a pandemia do coronavírus, que é uma realidade que chegou para ficar, não tenho dúvidas.

Até quando permaneceremos inertes e irresponsáveis diante das consequências sociais, culturais e psíquicas de tantas crianças, adolescentes e jovens brasileiros?
Leia mais...

sábado, 8 de agosto de 2020

MEMÓRIA DE UMA MISSÃO: SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA E DOM PEDRO CASALDÁLIGA

 

“VIDAS PELA VIDA. VIDAS PELO REINO!”

dom Pedro Casaldáliga

Bispo da prelazia de são Félix do Araguaia

Mato Grosso – BRASIL

  

Desde o primeiro momento que pisei nestas plagas mato-grossenses o espírito profético desse grande homem – Pedro Casaldáliga – se fez presença atuante e viva.

            Realmente as distâncias são imensas. A prelazia de São Félix do Araguaia é uma região localizada ao norte do Estado do Mato Grosso com 150.000 Km2. Só se tem noção destas distancias quando se percorre, mesmo que uma pequena parcela, deste imenso território de missão.

            Para chegar até o lugar onde passei as duas semanas de missão tive que sair de Goiânia, de onde me dirigi para Canarana, já no Mato Grosso. Desta cidade dirigi-me para Querência, uma cidadezinha ainda menor, formada por retirantes do Sul do País, que acolhia a 100 Km de sua sede os quatro assentamentos que se tornaram referência para mim.

            O sistema de transporte rodoviário, desde Canarana, se mostrou totalmente precário. Era difícil de acreditar que o ônibus naquele estado pudesse agüentar os 200 Km que ligavam Canarana a Querência. As estradas nem se falam. O que sobrava do asfalto se juntava aos buracos e à terra vermelha da região.

            No Caminho a realidade da região se descortinava. Eram camponeses que iam e vinham das diversas cidadelas. Famílias indígenas com suas mulheres carregando no colo sempre suas crianças que calavam o choro com a ordem do pai, sempre melhor vestido.

            Uma região exclusivamente agrária, onde a presença das grandes fazendas latifundiárias é tão marcante que chegam a configurar e interferir visivelmente na geografia.

            Me escandalizei ao percorrer duas horas de ônibus dentro de uma mesma fazenda. E, por incrível que pareça, um camponês falou que aquela fazenda não era tão grande em comparação a outras que existem na região. Milhares e milhares de hectares desmatados por causa das lavouras, geralmente de soja.

            Grande parte da fonte de renda se concentra em trabalhos nestas grandes fazendas latifundiárias, onde já foi detectada a presença da exploração de mão de obra escrava. Esses grandes latifúndios, na maioria das vezes, se revelam de forma oculta e silenciosa, como verdadeiros instrumentos de opressão e morte de tantos camponeses pela falta de opção, e de tantas nações indígenas que são cada vez mais espremidas e esmagadas pelo latifúndio.

            Graças ao trabalho da prelazia e a algumas instituições que ajudam a pensar soluções para esses problemas, muitas coisas já foram feitas, mesmo que a custa do sangue derramado de tantas e tantas vidas. Por causa de trabalhos como esses, nações indígenas hoje são olhadas com mais seriedade e responsabilidade; fazendas latifundiárias foram desapropriadas e distribuído terra a quem não tinha.

            Mas tudo o que já foi feito parece ser pouco diante da imensidão de problemas e desafios que esta região comporta.

             A distancia da sede de Querência até os quatro assentamentos que tive contato é de 100 Km. Esses assentamentos – Coutinho União, Brasil Novo, São Miguel e T65 – são desapropriações de terra do que já foi uma grande fazenda latifundiária. Cada família assentada recebe uma parcela de terra, estabelecida pelo INCRA, com média de 100 hectares.

            A aquisição dessas terras por parte das famílias e a forma de lidar com ela é um pouco complicada. Geralmente são terras nativas, cheias de árvores e animais silvestres. É comum encontrar nos assentamentos bichos como onça, sucuri, jacaré, capivara, veado, tatu, etc...

            Para o plantio é necessário que esta terra nativa seja tratada e preparada, por ser de uma qualidade “não muito boa”. E, para isso, são necessários recursos financeiros, de que nem sempre as famílias dispõem.

            Este é um grande desafio, pois já está mais que comprovado que não basta só distribuir terra se não se oferece o mínimo necessário para que o lavrador possa fazer esse pedaço de terra, que é seu, produzir.

            Aí entra um outro grande problema. O INCRA que é o órgão federal que deveria organizar a distribuição das terras de forma igualitária, bem como os recursos federais para o pequeno lavrador, age de forma descarada e corrupta, junto com as prefeituras, desviando grande parte dos recursos, que deveriam beneficiar os assentamentos, sabe-se lá para onde.

            Chego às vezes a pensar que esses recursos financeiros quando chegam nas mãos do lavrador não bastam, independentemente da quantia, por incrível que pareça.

            Muitos usam o dinheiro, que era para ser usado no trato da terra, de forma desordenada e irregular. Isso sem falar na necessidade cega de se plantar para se produzir cada vez mais, com mais concorrência, com mais ganância, mais e mais... com isso, cada vez mais, milhares e milhares de hectares de matas são queimadas e desmatadas, dando assim, continuidade ao sistema de fazendas, só que agora em parcelas menores.

            Não! Acho que a reforma agrária não é isso. A reforma agrária é muito mais do que distribuição de terra e dinheiro. A reforma agrária é consciência comunitária, é consciência humana, ecológica e fraterna. Penso que é exatamente neste ponto que as vidas são doadas pela Vida, pelo Reino. É neste momento que posso falar e citar tantos homens e mulheres que doam suas vidas junto a essa realidade por uma causa que é maior que qualquer ideologia.

             O grupo de agentes de pastoral da prelazia de São Félix do Araguaia formados por religiosos, religiosas, ministros ordenados, leigos e leigas estão inseridos em todo território da prelazia e articulados por regionais e comunidades eclesiais de base (CEB’s). A articulação pastoral se dá por conselhos, que vão desde o conselho comunitário de base, passa pelo conselho regional, até o conselho geral da prelazia. Numa divisão dinâmica e discernida, todas as propostas de atividades e decisões passam respectivamente por esses conselhos; de baixo para cima, é claro.

            Mas a base de toda atividade pastoral da prelazia está no silêncio e no anonimato dos agentes inseridos nas realidades de cada comunidade, vila ou assentamento.

            Eu, nestas semanas de missão, tentei me inserir junto à realidade de três irmãs Capuchinhas Missionárias: Maria José, Núbia e Elismar; que vivem na fraternidade Margarida Alves no assentamento Coutinho União. Elas, juntas com alguns moradores dos assentamentos, prestam assistência no que for necessário a cada realidade particular.

            Junto ao trabalho e estilo de vida destas irmãs experimentei o que chamarei de “utopia da vida religiosa”. Nada mais próximo ou mais distante dos assentamentos. Assim vivem essas religiosas, e creio que a maioria dos agentes de pastoral da prelazia. Com um estilo de vida dinâmico e criativo, de acordo com cada necessidade, elas  vivem sua consagração e vida respeitando os limites de cada pessoa dos assentamentos, assumindo os desafios, dificuldades e alegrias como se fossem seus – o que na verdade são. Mas nem por isso deixam de ser uma presença que questiona, anima, trabalha e celebra.

 Em realidades como essas dos assentamentos é difícil de se encontrar uma estrutura já definida e formada de comunidade: com pastorais e grupos. Por isso, a necessidade de uma presença que saiba escutar, dialogar e respeitar o ritmo e a caminhada deste povo, sem esperar resultados imediatos e sem interferir, de forma brusca, no ritmo de vida já tão martirizado pelo trabalho duro ou mesmo pela falta dele.

Penso que nenhuma ação pastoral é mais eficaz que aquela capaz de se inserir concretamente na realidade local, dinamizando com maturidade e responsabilidade o testemunho, que se dá a partir da opção de vida própria do religioso e religiosa e seu carisma.

De forma lenta, anônima, mas sólida o agente de pastoral vai incutindo no meio da comunidade, vila ou assentamento o espírito evangélico dos libertados, marcado radicalmente pela acolhida e pelo Amor fraterno a todos e a todas, sem distinção de raça, cor ou credo.

As “casas das equipes”, como são chamadas as casas pertencentes à prelazia onde residem os agentes de pastoral, estão sempre abertas, prontas para acolher a qualquer hora, qualquer pessoa que chegue e peça ajuda, ou mesmo para uma visita ou conversa de fim de tarde.

Elas se refletem, de forma muito parecida, com a residência do bispo, na simplicidade na acolhida e na humildade, muito diferente do que estamos acostumados a ver pelo Brasil e pelo mundo afora.

Dom Pedro – faço questão de chamá-lo assim, apesar dele preferir somente Pedro – conserva uma serenidade impressionante. A lucidez de suas colocações e posições em relação à igreja e à sociedade são muito mais atuais que muitas posições caducas de hoje em dia. Me marcou profundamente sua acolhida e sua disponibilidade em servir a todos, de todas as formas possíveis. Um místico com um olhar penetrante e profundo, que me parece ir além das coisas visíveis.

Em sua casa, em sua presença tudo respira um ar de paz e profecia. Alias, esse foi o ar que respirei ao longo dessas semanas. Um ar que penetrou como testemunho, fé e serviço o seio de toda nossa igreja, particularmente da igreja latino-americana e brasileira. Um ar que ainda hoje, apesar das intenções contrarias pessoais e institucionais, continua e penetrar e a inundar os corações de tantos irmãos e irmãs fieis ao espírito de Jesus Cristo que se manifesta na presença questionadora dos pobres.

 

No coração permanece a lembrança e as cicatrizes dos corações de tantas pessoas, pelo peso da opressão e do descaso nesta bendita terra de missão, mas, sobretudo a certeza de que levo um pouco do fogo que ainda queima com força esses mesmos corações sedentos de Justiça, Dignidade e Paz.

Com o braço e coração erguidos, não em sinal de despedida, mas de bênção ou talvez de até logo, está aquele grande homem na porta de sua simples casa. Ele que soube como ninguém doar sua vida pela Vida, sua vida pelo reino. É inevitável a lembrança do abraço apertado e fraterno de Dom Pedro, carregado de Paz e acolhida exclamando para mim: “Zé Wilson, seja fiel, aos pobres”.

  

José Wilson Correa Garcia

São Félix do Araguaia, 25 de Dezembro de 2004.


Leia mais...

segunda-feira, 20 de abril de 2020

NÃO BASTA SABER O QUE FOI O AI-5: É PRECISO CONHECER SEU CONTEXTO.


É inegável que o projeto político alimentado por jair bolsonaro, e seu respectivo governo, tenha trazido à tona, no cenário social brasileiro, sombras de um passado que achávamos que estava apagado, mas não esquecido.

Tornou-se comum o flerte com posturas autoritárias e antidemocráticas, sob a justificativa de instauração da ordem e do progresso da nação. Mais do que isso, a tendência a buscar justificativas que minimizam tais posturas ganhou espaço, não só nos discursos comuns, mas também na consciência de acadêmicos, professores e historiadores.

Atualmente, a sombra ressuscitada nesses discursos e consciências é o AI-5 (Ato Institucional nº 5), como justificativa autoritária para a resolução dos sérios problemas institucionais e políticos pelos quais passam o Brasil. De acordo com as intepretações que minimizam o debate, o AI-5 teria sido decretado dentro de uma constitucionalidade e legalidade, que colocou nas mãos do presidente da república, um poder acima de todos os outros poderes, inclusive da própria constituição. E, em certo sentido, isso não está absolutamente errado. O que está errado é não considerar o significado da constitucionalidade e legalidade na época em que o AI-5 foi decretado e seu respectivo contexto. O que está errado é não considerar que, para o AI-5 ser colocado em prática, foi preciso a preparação de um terreno, igualmente sombrio, que manchou (e quer voltar a manchar) a história democrática brasileira. Vamos ao contexto.

Tudo começou, no início da década de 60, com os antecedentes do golpe, que implantaria o governo militar ditatorial no Brasil. O pais estava polarizado, de um lado, por setores mais progressistas, representado pelos últimos dois presidentes anteriores ao regime (Jânio Quadros e João Goulart) e, do outro lado, por setores conservadores reacionários, representados pela elite econômica e política, com força significativa no legislativo. Tal polarização terminou com a vitória da ala conservadora e reacionária, que encontrou nas forças armadas o apoio necessário para a realização do golpe que destituiu o presidente do poder. Assim, em 1964, foi implantado através de um golpe, o primeiro governo ditatorial regido por militares, que duraria 21 anos.

Tal modelo de governo, obviamente, não surgiu do nada. Primeiramente, foi preciso uma base de apoio político e ideológico, fartamente disponível nos setores econômicos e políticos da elite brasileira. Segundo, foi preciso construir uma base jurídica e legal para a execução do golpe em termos práticos, o que levou o governo golpista a promulgação de Atos Institucionais, que foram decretos validados pelo poder executivo, sem a aprovação de nenhuma instituição legislativa ou judiciária. Foi a primeira mostra das feições ditatoriais do recente governo militar brasileiro. Ao todo, foram decretados 17 Atos Institucionais. E, apesar de o 5º ser o mais famoso, pelo fato de ter fechado o congresso nacional, bem como de ter dado ao presidente poderes quase que absolutos, é importante saber que os Atos Institucionais anteriores prepararam o terreno para a promulgação do AI-5, como a promulgação do período mais sombrio e autoritário da ditadura militar brasileira. Vamos conhecê-los.

Ao AI-1 coube modificar a Constituição no que diz respeito à eleição, ao mandato e aos poderes do Presidente da República. Também conferiu aos Comandantes-em-chefe das Forças Armadas o poder de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos, sem nenhum tipo de apreciação judicial desses atos.

Ao AI-2 coube a continuação da manipulação da Constituição do Brasil, mas no que diz respeito ao processo legislativo, às eleições, aos poderes do Presidente da República, à organização dos três Poderes; Ele também suspendeu garantias de estabilidade de cidadãos que tinham cargos e funções públicas, bem como reafirmou a exclusão de qualquer tipo de apreciação judicial aos atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes.

Ao AI-3 coube dispor sobre eleições indiretas nacionais, estaduais e municipais; permitiu que Senadores e Deputados Federais ou Estaduais, com prévia licença, exercessem cargos de prefeitos de capitais de Estado. Também, mais uma vez, exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes.

Ao AI-4 coube convocar o Congresso Nacional para discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República.

Enfim, ao AI-5, como anteriormente citado, coube suspender a garantia de habeas corpus para determinados crimes; dispor sobre os poderes do Presidente da República de decretar: estado de sítio; intervenção federal, sem os limites constitucionais; suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado, como a demissão de pessoas do serviço público; cassação de mandatos eletivos; fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores e, como de costume, exclui toda possibilidade de apreciação judicial dos atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes.

Os Atos Institucionais do 6º ao 17º, menos conhecidos e explorados, couberam continuar manipulando mudanças na Constituição a respeito de matéria administrativa e eleitoral. Porém, também foram usados com o intuito de ampliar progressivamente os poderes do Executivo para praticar desapropriações, confiscos, banimento do território nacional e envio para a reserva de militares acusados de atentar contra às Forças Armadas.

É dessa forma que os Atos Institucionais se tornaram instrumentos de legitimação de quaisquer atos do poder Executivo, até mesmo aqueles que contrariavam a Constituição Federal e atentavam contra os direitos humanos, muitas vezes com requintes de crueldade, através de prisões ilegais e de práticas da torturas.
São estes símbolos, disfarçados de legalidade, que testificam a forma autoritária como o país foi comandado durante este período da ditadura militar. Quando se vê alguém minimiza-lo, é preciso considerar se a pessoa faz isso por ignorância, por má fé ou por pertencer aos mesmos setores que buscaram saciar seus privilégios e prazeres criminosos através de um regime autoritário. Para estes, falas como “Eu sou a constituição”, ditas pelo atual presidente jair bolsonaro, bem como de suas constantes participações e omissões em manifestações que pedem a volta do AI-5 e da ditadura, pode ser tudo, menos patriotismo, menos zelo pela democracia e, sobretudo, menos caráter.


Escutar Podcast deste texto:


Leia mais...

domingo, 19 de abril de 2020

EMAÚS EM TEMPOS DE PANDEMIA


O caminho de Emaús é o caminho de cada um de nós. Particularmente neste tempo de isolamento, não só das pessoas, mas também de ideais e das pequenas e mais importantes coisas da vida.

Eu sempre gostei desta narrativa do Evangelho de Lucas que a Igreja propõe na Liturgia de hoje. Está em Lc 24,13-35. A Palavra é surpreendentemente simples. É porque Deus sabe que o mais importante está nas coisas mais simples. Por isso, é assim que Ele fala...

E fala de dois corações no caminho, mas um só sentimento: a falta de esperança. Gosto sempre de pensar que eram dois amigos, ou duas amigas, ou um casal. No caminho carregam ideais perdidos, sonhos destruídos, incertezas por situações que não dependem deles. O caminho é pesado, as lembranças dolorosas, as histórias angustiam. Alguém entra na conversa e faz o caminho junto com eles. É Jesus, claro! Mas eles não o reconhecem. Óbvio! A gente nunca sabe que Deus pode estar do nosso lado em momentos de desesperança e de sofrimento. E o que Jesus faz? Apenas escuta. Escuta a história, escuta a vida. Quantos de nós não quer apenas falar e ser escutado? Quantos de nós não quer apenas alguém pra nos dizer e mostrar que, apesar de tudo, a vida continua a nos ensinar e nos fazer crescer. É isso que Jesus faz. Por isso o coração da dupla arde no caminho. No fim dele, na mesa da partilha, o reconhecimento definitivo de que Deus nunca os abandonou.

O caminho da quarentena é igualmente pesado ao coração. É possível que Deus esteja caminhando ao nosso lado. Talvez não percebamos porque insistimos em dar atenção àquilo que pesa ao coração. Quantos de nós não aguenta mais tanta informação e notícia ruim? Mas quantos procurou informações e notícias boas? Quando aprendemos a dedicar nossa atenção àquilo que realmente importa, o coração queima. E queima porque sente que, no fim das contas, apesar das distâncias e pesos, não estamos sozinhos. Mas os olhos ainda não conseguem enxergar. Mas enxergará, no momento em que, tendo passado tudo isso, voltarmos a nos reencontrar na simplicidade daquelas coisas que, hoje, distantes e isolados, aprendemos a dar valor: o abraço, a presença, o cuidado.



Leia mais...

domingo, 12 de abril de 2020

CARREGADORES DE CAIXÃO DE GANA: UM OLHAR ANTROPOLÓGICO POR TRÁS DO MEME.

A morte, assim como qualquer outra experiência humana, é vivida de formas diferentes, de acordo com cada expressão cultural. Para nós brasileiros, marcados pela cultura judaico-cristã, a morte é cercada pelo sofrimento, pois é como se a vida terminasse com ela. Mas não ficamos no vazio do sofrimento. Esperamos e cremos em uma vida para além da morte. Por isso que, para nós, os serviços funerários existem com a finalidade de oferecer conforto para a dor da perda de um ente querido.

Em outras culturas, porém, a morte é uma experiência completamente diferente. Em alguns povos orientais, o defunto continua fazendo parte da família. Depois de morrer a pessoa é mumificada e continua sendo cuidada pela família.

Em outras culturas, por exemplo, como acontece em muitos povos africanos, a morte é um momento de júbilo, de alegria, de festa. Como se, na verdade, a vida começasse com ela.

É em uma dessas culturas africanas que um grupo funerário surgiu para inovar criativamente o momento da morte. Eles são de Gana, nação da África Ocidental, e oferecem serviços funerários de acordo com o pacote solicitado pela família. As performances dependem do pacote solicitado e pago, obviamente, porque independente da cultura, a necessidade de lucrar com a morte (seja ela alegre ou triste) perpassa as particularidades culturais. Mas foi por causa desse grupo de Gana que o meme viralizou na Internet. E é bem provável que tenha viralizado particularmente naquelas culturas que acharam a situação engraçada ou estranha, simplesmente porque é apenas diferente.

Talvez, para muitas culturas diferentes da nossa, um vídeo de um grupo de pessoas chorando em torno de um defunto num caixão seja igualmente engraçado ou estranho. O importante é não acharmos que somente a nossa expressão cultural é a correta.

Leia mais...