segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A CULTURA DA COVID-19 E A NATUREZA HUMANA

 Por, Luís Michel Françoso.

 

Imagem de microscópio do novo coronavírus.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/sobe-n%C3%BAmero-de-casos-suspeitos-de-coronav%C3%ADrus-no-brasil/a-52221386

Em recente entrevista ao programa Roda Vida1, o presidente do STF (Superior Tribunal Federal), Dias Toffoli2, reivindicou a figura do antropólogo Lévi-Strauss3 para declarar que “a democracia não é um dado da natureza, a democracia é fruto da cultura humana...”. A fala tornou-se emblemática, pois tergiversa a pergunta do jornalista ao questionar o atual estado de solidez da democracia no Brasil.

Ao opor natureza e cultura, Toffoli procurou relativizar a deterioração da democracia com o subterfúgio de que as coisas da cultura estão sujeitas aos humores do destino, seriam indomáveis, diferente das coisas da natureza, que seriam imutáveis. E assim, nas entrelinhas, a selvageria dos animais políticos parece ser justificada e incorporada nas contingências da cultura, no caso, a democrática.

Oportuno resgate da distinção entre natureza e cultura, pois os coronavírus parecem desautorizar expectativas sobre limites entre estes pólos. Vindos do mundo selvagem, os coronavírus adentraram a vida humana tendo sido tomados como invasores do mundo biológico. Porém, foi nosso modo de vida que, em constante expansão, avançou sobre habitats naturais e impôs uma cultura de dominação.

Exemplo deste fenômeno são as intervenções coloniais europeias no continente africano no início do século XX. O surgimento do vírus HIV se iniciou na cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, por volta de 1920. Seu aparecimento ocorreu em meio ao contexto da construção de ferrovias e de cidades por colonos belgas, como desdobramento das imposições coloniais europeias4. Estas alterações criaram o contexto que proporcionou que um vírus presente em macacos se adaptasse para infectar humanos, o que deu início a uma primeira contaminação nas cidades conectadas por esta ferrovia.

Do mesmo modo, a atual biopandemia por Covid-19 é o resultado de um mecanismo em que um vírus presente em animais selvagens se adapta a ponto de poder infectar seres humanos. Desta interação forçada ocorre um fenômeno denominado de ultrapassar a barreira de espécie5.

Desde a invenção da agricultura e das técnicas de domesticação dos animais, a partir da revolução neolítica, o ser humano altera matas nativas e estabelece relações forçadas com outros animais, até então distantes do nosso convívio. Desta interação ocorre, por vezes, a transformação de microrganismos (a priori benignos em seu habitat natural) em agentes patogênicos6. Ao longo do tempo, por exemplo, das vacas herdamos o sarampo e a tuberculose, dos porcos a coqueluche e dos patos a gripe7.

Atualmente, a destruição destes habitats vem sendo favorecida pelo aumento da população humana e pela intensificação da produção animal, tal como aponta Janice Reis Ciacci Zanella, pesquisadora da Embrapa, em estudo8 sobre suínos e aves. Conforme afirma Zanella, em 2009, a USAID9 revelou que mais de 75% das doenças humanas que surgiram no século XX são de origem animal.

O excessivo consumo de carne, por sua vez, vem forçando o aumento de áreas para criação de gado (a área total já devastada para esta finalidade corresponde ao tamanho do continente africano)10. No interior destas populações de animais confinados para o abate, cria-se um cenário ideal para a geração de vírus, ao custo do contínuo abatimento de animais infectados e potenciais riscos a humanidade.

Outras causas ainda são o aquecimento climático, exploração de novas fronteiras agrícolas e a introdução de vetores em contexto urbano, como roedores e mosquitos. O crescimento das cidades atingiu níveis alarmantes desde 2007. Das 7,7 bilhões de pessoas existentes no mundo, 4 bilhões vivem em 1% da massa terrestre do planeta11. Há mais gente morando em núcleos urbanos do que fora deles.

Concomitante à atual biopandemia, ocorre o aumento no contágio de doenças infecciosas causadas por vírus, bactérias e parasitas através da interação entre seres humanos e outros animais.

Um olhar para a biopandemia enquanto fenômeno cultural pode permitir corrigir o ilusionismo de Toffoli em querer relativizar cenários de destruição. Ao invés de uma guerra contra a implacável natureza de um vírus, que só nos quer fazer morrer, estamos encarando os efeitos da reprodução de uma cultura destrutiva que impomos aos outros seres vivos da Terra.

Observar a biopandemia de Covid-19 enquanto um fenômeno cultural faz surgir questionamentos sobre a aceleração do desmatamento, da urbanização, do agronegócio, do modelo latifundiário e industrial12. Enfim, a reprodução do modelo de desenvolvimento predatório e o atual ataque à democracia apontam para o mesmo lugar: a degradação da vida.

Luís Michel Françoso é antropólogo, professor e mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp – Araraquara (SP).

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1 Programa de entrevistas da TV Cultura exibido em 11 de maio de 2020.

2 José Antonio Dias Toffoli é um jurista e magistrado brasileiro, atual ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal.

3 Claude Lévi-Strauss, antropólogo belga, referência no debate sobre as noções de natureza e cultura. Faleceu em 2009.

https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/02/ciencia/1412260639_097968.html

5 Viroses emergentes e reemergentes http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2001000700031

6 Organismo capaz de gerar doenças infecciosas.

https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/

8 Zoonoses emergentes e reemergentes e sua importância para saúde e produção animal, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pab/v51n5/1678-3921-pab-51-05-00510.pdf.

9 Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional

10 George Monbiot, “There’s a population crisis all right. But probably not the one you think” [Sim, há uma crise populacional. Mas, provavelmente, não aquela em que você está pensando], The Guardian, 19 nov. 2015.

11 Reportagem da BBC Internacional de 01 de fevereiro de 2020 aponta que Wuhan, na China, foco inicial do atual surto de coronavírus é um ponto de referência na circulação de pessoas: “Wuhan é a principal estação do serviço ferroviário de alta velocidade da China, e o vírus chegou no momento em que o país estava prestes a realizar a maior migração humana da história — mais de três bilhões de viagens são feitas pelo país na época do Ano Novo Chinês”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51296088

12 Para mais informações o interessante artigo do Le Monde Diplomatique. https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/

 

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