terça-feira, 8 de julho de 2014

Quando Jerusalém em 2014 faz lembrar Berlim em 1933

Os velhos jornais no Ocidente não terão coragem de publicar essa matéria. Críticas muito duras ao governo israelense vêm da própria imprensa liberal do país. Precisam ser conhecidas, para que setores interessados em paz e justiça no Oriente Médio saibam que podem encontrar apoio em importantes setores da sociedade israelense. Talvez estejam ainda apáticos, por se sentirem isolados em meio à manada que segue a propaganda oficial e a mídia, hegemonizada pelos setores mais sectários (o diário Haaretz, onde foi publicado o texto a seguir tem 10% dos leitores; os demais jornais são controlados por magnatas estrangeiros da mídia conservadora).

Jornalista israelense escreve: cenários não são iguais, mas surto de ódio antipalestino estimulado por Telaviv envergonha história judaica.

O artigo faz analogias entre o ambiente de histeria em Israel, estimulado de forma oportunista por políticos da direita, e o que a Alemanha respirou, nos estágios iniciais do nazista. A publicação de artigos como esse em Israel, embora chocantes, pode ser vista com esperança de que setores existentes na própria sociedade israelense poderão, um dia, virar o jogo. Mas isso só ocorrerá se houver também forte pressão internacional.

Trata-se de salvar Israel do fascismo, do isolamento internacional, e de estabelecer entre este país e os palestinos bases para um futuro de paz e boa vizinhança, única forma de ambos escaparem da tragédia humanitária que avança no Oriente Médio. (Sérgio Storch)

Em 9 de março de 1933, os paramilitares camisas-marrons da SA nazista lançaram uma ofensiva. “Em diversas partes de Berlim, um grande número de pessoas, a maioria das quais aparentemente judias, foi atacado abertamente nas ruas e golpeado. Algumas foram feridas gravemente. A polícia pode apenas recolhê-las e levá-las ao hospital”, relatou o jornal londrino The Guardian. “Os judeus foram espancados pelos camisas-marrons até sangrar nas faces e cabeças”, prosseguiu o jornal. “Diante de meus olhos, paramilitares, babando como bestas histéricas, perseguiram um homem em plena luz do dia e o chicoteavam”, escreveu Walter Gyssling, no jornal.

Sei que você ultrajou-se antes mesmo de chegar ao final do parágrafo anterior. “Como ele ousa comparar incidentes isolados em Israel com a Alemanha nazista?”, você está pensando. “Isso é uma banalização ofensiva do Holocausto”.

É claro que você tem razão. Minha intenção não é traçar um paralelo. Meus pais perderam, ambos, suas famílias, durante a II Guerra Mundial. Não preciso ser convencido de que o Holocausto é um crime tão único que figura de modo destacado, mesmo nos anais de outros genocídios premeditados.

Mas sou um judeu e há cenas no Holocausto que estão gravadas indelevelmente em minha mente, ainda que não estivesse vivo à época. Quando assisti vídeos e vi imagens de gangues de judeus racistas de direita marchando pelas ruas de Jerusalém, cantando “Morte aos Árabes”, caçando árabes aleatoriamente, identificando-os por sua aparência ou sotaque, perseguindo-os em plena luz do dia, “babando como bestas histéricas” e golpeando-os antes que a polícia pudesse chegar, a associação histórica foi automática. Foi o que primeiro saltou à mente. Deveria ser, penso, a primeira coisa a saltar à mente de qualquer judeu.

Israelenses queimam a bandeira palestina e gritar slogans racistas durante um protesto anti-palestino em Gush Etzion.

Não é preciso dizer que Israel de 2014 não é “O Jardim das Bestas”, expressão que Erik Larson usou para descrever, em seu livro, a Alemanha de 1933. O governo de Telaviv não é tolerante com o vigilantismo ou os gângsters, como foram os nazistas por algum tempo, antes que os alemães começassem a se queixar de desordem nas ruas e dos danos à reputação internacional de Berlim. Não tenho duvidas de que a polícia fará todo o possível para prender os assassinos do garoto palestino cujo corpo calcinado foi encontrado numa floresta de Jerusalém. Até rezo para descobrirem que o assassinato não foi um crime de ódio [Em 6/7, a polícia israelense prendeu, de fato, pessoas – judeus ortodoxos de extrema-direita – que confessaram a autoria do crime, evidentemente motivado por ódio e racismo (Nota da Tradução)].

Mas não nos enganemos. As gangues de valentões judeus promovendo caçadas humanas não são uma aberração. Não foi um acesso incontrolável e único de raiva, que se seguiu à descoberta dos corpos de três estudantes sequestrados. Seu ódio inflamado não existe num vácuo. É uma presença marcante, que cresce a cada dia, engolfando setores cada vez mais amplos da sociedade israelense, alimentada num ambiente de ressentimento, isolamento e auto-vitimização, impulsionado por políticos e “especialistas” – alguns cínicos, outros sinceros – que se cansaram da democracia e suas brechas e que anseiam por ver a imagem de Israel associada a um único Estado, uma única nação e, em algum ponto desta espiral descendente, um único Líder.

Em apenas 24 horas, uma página do Facebook convocando “revanche” pelos assassinatos dos três garotos sequestrados recebeu dezenas de milhares de “curtidas”, e encheu-se de centenas de apelos explícitos para matar árabes, onde quer que estejam. Outra página, pedindo a execução de “extremistas de esquerda”, alcançou quase dez mil “likes”, em dois dias. Além disso, inúmeros textos na web e nas mídias sociais estão inundados de comentários dos leitores vomitando o pior tipo de bile racista e pedindo morte, destruição e genocídio.

Estes sentimentos foram ecoados nos últimos dias, ainda que em termos um pouco mais velados, por membros do Knesset [o Parlamento israelense], que citam versos da Torah sobre o Deus da Vingança e seu ordem de extermínio dos amalequitas. David Rubin, que descreve a si mesmo como ex-prefeito de Shiloh, foi mais explícito: em um artigo publicado no Israel Ntional News, ele escreveu: “Um inimigo é um inimigo e a única maneira de vencer esta guerra é destruir o inimigo, sem levar excessivamente em conta quem é soldado e quem é civil. Nós, judeus, atiraremos primeiro nossas bombas sobre alvos militares, mas não há, em absoluto, necessidade de nos sentirmos culpados por arruinarmos as vidas, matarmos ou ferirmos civis inimigos que são, quase sempre, apoiadores do Fatah ou do Hamas”.

Pairando sobre tudo isso estão o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo, que insistem em descrever o conflito com os palestinos em tons rudes de “preto e branco”, “bem contra o mal”; que descrevem os adversários de Israel como incorrigíveis e irredimíveis; que nunca demonstraram o mínimo sinal de empatia ou compreensão, diante das reivindicações de um povo que vive sob ocupação israelense por meio século; que fazem pronunciamentos voltados para desumanizar os palestinos aos olhos do público israelense; que perpetuam o sentimento público de isolamento e injustiça; e que, portanto, estão abrindo caminho para ondas de ódio homicida que começaram a emergir.

Algumas pessoas ensaiarão um paralelo entre a terrível violência de direita que varreu Israel depois dos Acordos de Oslo e a maré crescente de racismo. Em ambas, está implicado o premiê Netanyahu. De seus discursos virulentos na Praça Sion contra o governo da época ao assassinato de Yitzhak Rabin, à época; e de sua retórica antipalestina áspera à explosão horrível de racismo hoje.

Mas é uma resposta fácil demais. Não basta culpar Netanyahu, sem questionar o resto de nós, Judeus em Israel ou na Diáspora, os que fecham os olhos e os que desviam o olhar, os que retrata os palestinos como monstros desumanos e os que veem qualquer autocrítica como um ato de traição judaica.

A comparação certamente é válida: a máxima de Edmund Burke – “Para o triunfo [do mal], basta que os homens bons nada façam” – era correta em Berlim no início dos anos 1930 e permanece verdadeira em Israel. Se nada for feito para reverter a maré, o mal certamente triunfará – e não será preciso esperar muito.

CHEMI SHALEV
ON 07/07/2014CATEGORIAS: CAPA, GEOPOLÍTICA, MUNDO

In.: OUTRAS PALAVRAS.

Chemi Shalev

Jornalista israelense, nascido em 1953. Atua como correspondente e editor, nos Estados Unidos, do jornal Haaretz -- tanto em hebreu quanto em inglês. Publica um blog em inglês intitulado West of Eden, que trata das relações entre EUA e Israel.

 

 

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domingo, 6 de julho de 2014

A memória sexual: base biológica da sexualidade humana.

Para compreendermos em profundidade a sexualidade humana, precisamos entender que ela não existe isolada, mas representa um momento de um processo maior: o biogênico.

A nova cosmologia nos habituou a considerar cada realidade singular dentro do todo que vem sendo urdido já há 13,7 bilhões de anos e a vida há 3,8 bilhões de anos. As realidades singulares (elementos físico-químicos, microorganismos, rochas, plantas, animais e seres humanos) não se juxtapõem mas se entrelaçam em redes interconectadas constituindo uma totalidade sistêmica, complexa e diversa.

Assim, a sexualidade emergiu há um bilhão de anos como um momento avançado da vida. Depois da decifração do código genético por Crick e Dawson nos anos 50 do século passado. sabemos hoje comprovadamente que vigora a unidade da cadeia da vida: bactérias, fungos, plantas, animais e humanos somos todos irmãos e irmãs porque descendemos de uma única forma originária de vida. Temos, por exemplo, 2.758 genes iguais aos da mosca e 2.031 idênticos aos do verme.

Esse dado se explica pelo fato de que todos, sem exceção, somos construídos a partir de 20 proteinas básicas combinadas com quatro ácidos nucleicos (adenina, timina, citosina e guanina). Todos descendemos de um antepassado ancestral comum, originando a ramificação progressiva da árvore da vida. Cada célula de nosso corpo, mesmo a mais epidérmica, contém a informação básica de toda vida que conhecemos. Há, pois, uma memória biológica inscrita no código genético de todo organismo vivo.

Assim como existe a memória genética, existe também a memória sexual que se faz presente na nossa sexualidade humana. Consideremos alguns passos desse complexo processo. O antepassado comum de todos os seres vivos foi, muito provavelmente, uma bactéria, tecnicamente chamada de procarionte que significa um organismo unicelular, sem núcleo e com uma organização interna rudimentar. Ao se multiplicar rapidamente por divisão celular (denominada mitose: uma célula-mãe se divide em duas células-filhas idênticas) surgiram colônias de bactérias. Reinaram, sozinhas, durante quase dois bilhões de anos. Teoricamente a reprodução por mitose confere imortalidade às células, pois seus descendentes são idênticos, sem mutações genéticas.

Por volta de dois bilhões de anos atrás, ocorreu um importante fenômeno para a posterior evolução, somente suplantado pelo surgimento da própria vida: a irrupção de uma célula com membrana e dois núcleos. Dentro deles se encontram os cromossomos (material genético) nos quais o DNA se combina com proteinas especiais. Tecnicamente é chamada de eucarionte ou também célula diplóide, isto é, célula com núcleo duplo.

A importância desta célula binucleada reside no fato de nela se encontrar a origem do sexo. Em sua forma mais primitiva, o sexo significava a troca de núcleos inteiros entre células binucleadas, chegando a fusão em um único núcleo diplóide, contendo todos os cromossomos em pares. Até aqui as células se multiplicavam sozinhas por mitose (divisão) perpetuando o mesmo genoma. A forma eucariota de sexo, que se dá pelo encontro de duas células diferentes, permite uma troca fantástica de informações contidas nos respectivos núcleos. Isso origina uma enorme biodiversidade.

Surge, pois, um novo ser vivo, a célula que se reproduz sexualmente a partir do encontro com outra célula. Tal fato já aponta para o sentido profundo de toda sexualidade: a troca que enriquece e a fusão que cria pradoxalmente a diversidade. Esse proceso envolve imperfeições, inexistente na mitose. Mas favorece mutações, adaptações e novas formas de vida.

A sexualidade revela a presença da simbiose (composição de diferentes elementos) que, junto com a seleção natural, representa a força mais importante da evolução.

Tal fato vem carregado de consequências filosóficas. A vida é tecida de cooperação, de trocas, de simbioses, muito mais do que de luta competitiva pela sobrevivência. A evolução chegou até o estágio atual graças à essa lógica cooperativa entre todos.

Deixando de lado muitos outros dados fundamentais e indo diretamente à sexualidade humana devemos reconhecer que ela está embasada num bilhão de anos de sexogênese. Mas possui algo singular: o instinto se transforma em liberdade, a sexualidade desabrocha no amor. A sexualidade humana não está sujeita ao ritmo biológico da reprodução. O ser humano se encontra sempre disponível para a relação sexual, porque esta não se ordena apenas à reprodução da espécie mas também e principalmente à manifestação do afeto entre os parceiros. O amor reorienta a lógica natural da sexualidade como instinto de reprodução; o amor faz com que a sexualidade se descentre de si para se concentrar no outro. O amor torna os parceiros preciosos uns para os outros, únicos no universo, fonte de admiração, de enamoramento e de paixão. É por causa dessa aura que o amor se revela como o âmbito da suprema realização e felicidade humana ou, no seu fracasso, da infelicidade e da guerra dos sexos.

O ser humano precisa aprender a combinr instinto e amor. Sente em si, necessidade de amar e de ser amado. Não por imposição, mas por liberdade e espontaneidade. Sem essa liberdade de quem dá e de quem recebe, não existe amor. É a liberdade e a capacidade de amorização que constroem as formas de amor que humanizam o ser humano e lhe abrem perspectivas espirituais ultrapassando em muito as demandas do instinto.

Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro, recém falecida, Feminino-masculino: um novo paradigma para uma nova relação, Record 2010. Esse artigo é pensandoem sua homenagem pois com ela trabalhei mais de vinte anos.

In.: Leonardo Boff

 

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segunda-feira, 30 de junho de 2014

A quem seu candidato trairá, na próxima eleição?

Reflexões sobre o sistema eleitoral brasileiro. Ao permitir que empresas financiem partidos e políticos, ele institucionaliza a corrupção e tende a descartar quem não aceita se vender.
Por Dão Real Pereira dos Santos*, do IJF

(Apesar de o texto parecer - só aparentemente - pessimista, diria que é, antes de tudo, realista e politicamente pedagógico. Qualquer semelhança, apesar de ser uma ficção, não é mera coincidência.) - GRIFO MEU.
 
Quando votei em 2010, eu não sabia tudo o que deveria saber sobre o meu candidato. Conhecia sua história e acreditei em suas promessas. Acho que até ele mesmo acreditava. Assim como muitos eleitores, eu não me considerava um simples eleitor. Ajudei na campanha, no convencimento de outros eleitores de que ele era um bom candidato. Afinal, ele vinha do nosso meio, era uma pessoa que conhecia a realidade das pessoas e o sofrimento daqueles que mais precisavam de um Estado justo e solidário, tinha sido um ativista dos movimentos sociais no passado. Era de um partido histórico que sempre representou as bandeiras históricas de construção por uma sociedade mais justa.

O que eu realmente não sabia – e ele também nunca disse – era que, antes mesmo de ser eleito, já estava comprometido com os seus financiadores. Ele certamente nunca teve dúvidas de que não se tratava de uma simples doação, mas de um negócio. Aliás, uma coisa não dá para negar: o meu candidato é um cara muito inteligente e esperto. Portanto, não há dúvida de que ele sempre soube que os empresários que pagaram os custos da sua campanha só o fizeram com o intuito de obter ganhos com ele caso fosse eleito.
Estou certo de que isso deve ter sido dito de forma muito clara desde o início, quando da captação dos recursos. E se não foi, não tinha como não saber que se tratava de um contrato. Enfim, não é razoável imaginar que um empresário vá investir seu capital em negócios que não deem retorno. Mesmo sabendo disso, ele aceitou o dinheiro, portanto, aceitou o preço e, se tem outra coisa que não dá para negar, é que meu candidato não daria o calote em um credor. Dívida é dívida, e ele sempre foi muito bom pagador.
Mas eu não sabia que o meu voto era só uma forma de ele poder pagar a sua dívida eleitoral. A bem da verdade, não posso dizer que ele não tenha sinalizado algum esforço para implementar os grandes projetos sociais prometidos e que foram determinantes em sua expressiva votação. Mas como ele já estava vendido, e os tais grandes projetos sociais acabariam certamente contrariando os interesses dos seus credores, este esforço não passava de mera tentativa de manutenção de um minguado vínculo comigo e com os milhares de eleitores que se imaginavam representados.
O dilema do candidato se resume a decidir se vai enganar o eleitor ou o credor. Abstraindo as considerações de ordem moral, a escolha acaba ficando muito fácil. Se não aceitar o investimento dos empresários, estará concorrendo de forma absolutamente desigual e quase que certamente não se elegerá; logo, por mais bem intencionado que seja, não conseguirá implementar suas ideias.
Se aceita o investimento, poderia escolher não enganar o eleitor dizendo claramente quais são os seus compromissos com os seus credores e, muito provavelmente, não se elegeria. Enganando o eleitor, há grande chance de se eleger e então, diante da cobrança das dívidas de campanha, se verá obrigado a não implementar as suas/nossas ideias. Ainda restaria a opção de enganar o credor e não pagar as dívidas, mas alguém votaria em um caloteiro? E quem o financiaria novamente?
Parece uma armadilha, e é realmente uma armadilha. O papel do candidato se reduz a capturar a simpatia dos eleitores, ainda que seja vendendo a ilusão de que vai representá-los e lutar pelas suas expectativas de construção de uma sociedade mais justa para, depois de eleito, passar a representar as forças econômicas que lhe garantiram os recursos financeiros e que foram determinantes para que chegasse até ali.
Enfim, neste jogo, meu candidato é um vencedor. Fez o papel que lhe cabia fazer e acha que mereceu o prêmio. Mas eu perdi sem saber que estava jogando. Fui enganado, pois não sabia que meu candidato já estava vendido.
*Sócio fundador do Instituto Justiça Fiscal

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

KAIRÓS: O TEMPO NOSSO DE CADA DIA

Diário remanso: encontros, acontecimentos, leituras... Intuições.
O clarão de uma anedota. Uma angústia, uma esperança.
Não à crônica; sua decantação. Vinho descansado.
Ou o instante de uma borboleta. Ou um latido.
Ou Deus passando como uma ventania, como uma brisa.
Nossa história em suas horas: o Kairós que alguém detecta.
O círculo concêntrico do remanso.
E o borbulhar do manancial.
(Pedro Casaldáliga)

Um dia desses, quando o coração parece estar mais propenso a entender algumas verdades que passam despercebidas aos sentidos, ouvi um comentário que ficou ressoando no coração como uma dúvida que não pode ser respondida imediatamente e como poesia que precisa ser apenas ruminada, decantada. Ouvia que, ultimamente, o tempo tem passado mais rápido que o normal, que os anos e meses parecem estar mais curtos... E, de fato, depois de abrir um bate papo sobre o assunto na sala de aula, comentávamos e compartilhava-mos essa mesma impressão. O tempo está mais rápido, se tornou relativo, parece ter perdido seu caráter absoluto.


Porém, no silêncio daqueles mistérios que só são possíveis na solidão, fiquei me perguntando: será mesmo que é o tempo que está diminuindo ou somos nós que estamos ficando maiores, com o coração maior, com a mente maior? Aliás, mais cheios de tudo. Antes, quando era mais criança e, por isso mesmo, dava mais atenção ao essencial, lembro que conseguia parar mais tempo para fazer certas coisas simples... coisas que parecem ter deixado de ser simples. Hoje, não consigo mais sentar, uma hora se quer do nosso dia, para uma boa conversa, ou para simplesmente contemplar aquelas coisas simples e lindas – e por isso mesmo essenciais – que passam despercebidas como um suspiro de saudade... Hoje não consigo mais escutar Deus como quando era criança, ou deitar em seu colo materno-paterno para simplesmente lembrar quem sou, de onde vim e para onde vou...


Há pouco tempo atrás nosso coração e nossa mente não precisava de assimilar tantas coisas e tanta informação ao mesmo tempo. Fazíamos poucas coisas, mas sentíamos que o pouco que fazíamos deveria ser bem feito. Hoje, tudo é colocado diante da gente ao mesmo tempo, tudo precisa ser feito no mínimo de tempo possível e o máximo possível. Será que ao aprender a quantificar as coisas não esquecemos também de qualificá-las? Ou mais sério ainda: será que, nessa mesma sociedade, não aprendemos a agir com as pessoas da mesma forma que agimos com as coisas? Estamos coisificando as pessoas? Estamos nos tornando mais cegos, surdos e mudos, pois perdemos a capacidade de enxergar o essencial, de ouvir o essencial, de falar o essencial... Perdemos a noção do tempo.


Sim, o tempo diminuiu. Aquele tempo que aprendemos na escola, o linear, o histórico, aquele sucessivo punhados de fatos que acumulamos na memória. Esqueceram de nos ensinar que o tempo é, sobretudo, cíclico, Kairós, tempo favorável, tempo de graça... Instante presente, aquele onde o essencial da vida se escancara diante de nós, ora como mistério, ora como graça. Mais cegos, mais surdos e mais mudos, as coisas passam mais rápido, assim como os anos, os meses, os dias e, talvez, assim como as pessoas... Porém, quando assumimos a grandiosidade do mistério que nos rodeia como tempo favorável e tempo de graça, onde o presente infinito e eterno é o único tempo que vale a pena de se viver, os anos, meses, dias e as pessoas não passam, simplesmente ficam... São eternizadas, na memória e no coração.

José Wilson Correa Garcia, em algum tempo desses...
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domingo, 27 de abril de 2014

NÓS...

Como seria tão fácil não ser humano, meu Deus!
Não ter que sentir a dor da distância e da saudade.
Como seria fácil amar sem limites,
pensar que poderíamos fazer do tempo e do espaço
a possibilidade de ser mais intensos e imortais.
Não ter que buscar palavras
impossíveis de expressar o essencial
sem ao menos, submeter-se ao medo,
à vergonha...
Como seria fácil ser fraco
para sentir-se dentro de tudo.
Não ter que se esconder – do confronto –
para não dizer que se é vulnerável...

Devo estar – há muito tempo – longe do Mar.
Sinto falta do seu cheiro,
de pisar suas ondas que,
eternamente, vão e vem...
Saudades do desenho – imagem – da lua
que, na noite, dança extasiada por suas águas...
Ali, onde a liberdade parece consumir o mundo,
sem que ninguém nada perceba...
Ali onde a verdade de cada coisa
parece se escancarar...

Pensar em ti, ó Mar,
é reconhecer que tú precisas de mim...
é reconhecer que eu preciso de ti...
E nessa humana dependência
dou razão de ser à tuas ondas.
E elas, a meus pés que caminham descalços
entre tantas verdades sentidas...

Não posso renunciar a essa dependência
que me faz assemelhar-me a ti.
Não posso desejar o que não é parte de mim,
sob o perigo de perder-me
no esquecimento da tua solidão...

Preciso voltar a ser criança
para desejar sempre pisar
o infinito desconhecido desta vida...
Sem medos,
Sem vergonhas,
Sem facilidades...
Preciso renunciar ao que me tornei
para ser apenas o que sou...



José Wilson Correa Garcia
Belo horizonte. Primeira noite de Outubro, 2006.
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segunda-feira, 21 de abril de 2014

"LIBERDADE"

O feriado de Tira Dentes, comemorado no dia 21 de Abril, ainda está longe de ser uma celebração da liberdade sobre o processo histórico colonizador que, ainda hoje, estende suas raízes sobre o Brasil... De qualquer forma, compartilho essa beleza de Cecília Meireles. Trata-se de seu poema “Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência”, retirado de sua obra O Romanceiro da Inconfidência.


Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Vergílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
"Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio..."
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
"Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam..."
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
 "Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?"
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade - essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.
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O SILÊNCIO DO AMOR

"Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." Wittgenstein.

Ultimamente tenho pensado muito no silêncio, talvez por tê-lo experimentado como algo constitutivo da minha personalidade ao longo da vida. Hoje, quando mais uma vez pensava nele, percebi que há silêncios que alimentam uma solidão sem sentido, vazia, opressora... e há silêncios que possibilitam uma solidão necessária e construtiva, exatamente porque nos abre um horizonte de sentido e amor... um silêncio libertador. A raiz desse último, na minha história, encontrei em minha família...

Em casa nunca fomos de falar de nossas intimidadas pessoais. O que parecia ser normal entre amigos, dentro da família era sempre tabu. Isso, porém, nos ensinou a amar de outras formas, através de nossos silêncios, daquilo que não era falado, mas era vivido e sentido...

Lembro da primeira grande decepção que tive na minha vida de jovem/adolescente (que agora não convém detalhar) e da dor que ela me causou. Estava recente e ainda não tinha aprendido a curar minhas dores com o choro (o choro também era um tabu em casa). Numa noite, quando não conseguia dormir porque o choro sufocado também sufocava a necessidade de falar, levantei da cama e fui ao quarto de minhas irmãs. Virgínia, a mais velha, estava dormindo. Quis acordá-la, dizer o que estava sentindo e como estava doendo e me fazendo sofrer aquela situação, mas não o fiz. Ao contrário, sentei ao lado da sua cama e ali simplesmente chorei. Foi o diálogo mais profundo que tive com ela (e tenho certeza que até hoje ela sequer sabe disso) porque no seu silêncio de sono me senti acolhido, entendido e amado. Ali ela me dizia tudo o que precisava ouvir, mesmo sem dizer uma só palavra, mas sendo o que simplesmente era: minha irmã, minha família.

Sábado de manhã era especialmente um terror. Lembro que sempre desejava ficar na cama até mais tarde, eu e meu irmão, mas mamãe e minhas irmãs sempre inventavam de arrumar a casa justamente o mais cedo possível naquele dia, início do final de semana. O piso de casa ainda era de madeira e as batidas da vassoura no rodapé eram terrivelmente perturbadoras, e acho que elas sabiam disso e usavam como método para nos acordar. Porém, aquela infernal seção de tortura do meu sono era amenizada pelo silêncio de mamãe, que nos seus afazeres ficava assoviando canções religiosas. Depois de algum tempo eu entendi que era uma das formas dela de nos educar na fé...

Os domingos em casa (não sei porque, mas especialmente os domingos) eram repletos de silêncios de simplicidade e felicidade. No almoço o cheiro do alho refogado na panela, sacralmente preparada por mamãe, falava de amor e cuidado. À noite, todos sentados ao redor da televisão e aquela vinheta terrível do programa anunciando a segunda feira, sentíamo-nos de muitas formas silenciosas mais próximos, mais unidos, mais família. Cada um de nós filhos, ao seu tempo, ia dormir dando boa noite a papai e mamãe como num ritual sagrado. E a última lembrança que tinha do domingo, já deitado na cama sonolento, era do beijo silencioso de meus pais...

José Wilson Correa Garcia
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quinta-feira, 3 de abril de 2014

TOLERÂNCIA: sustentando as diferenças


"Na minha escola tem uma menina que eu não tolero ela de jeito nenhum. Ela é chata, feia, pobre... Quero é distância dela!"

Eu ouvi isso de "Diferença", uma aluna. Ela estava falando de "Tolerância", uma colega sua de escola, também minha aluna. Falar algo desse tipo já é muito sério. Mais sério ainda é falar algo desse tipo com as próprias ações. Sim, "Diferença" não estava falando literalmente, mas estava falando com suas práticas e ações dentro da escola.


"Tolerância" é uma jovem linda, inteligente, faladeira. Acolhedora com os colegas e professores, sempre está disponível a tudo e a todos. Na sala de aula ela sempre está perguntando, questionando, inquieta... E suas posições são coerentes com sua simplicidade de vida e a simplicidade de vida da sua família. Ela me ajuda muito com isso, é lindo de se ver! Lembro que no dia da Consciência Negra pedimos a "Tolerância" para fazer uma dança. Ela, com sua negritude e seus cabelos crespos lindos, dançou que era uma beleza. Enfim, "Tolerância" tem tudo o que a maioria de seus colegas não tem na escola e isso se torna um estigma sem sentido para ela.


Uma vez no recreio, eu estava em uma roda conversando e brincando com um grupinho de alunos. "Tolerância" chegou, me deu um abraço apertado, ficou do meu lado, participando da conversa, brincando, sorrindo. Aos poucos, os outros foram silenciando, fechando a cara, e simplesmente saindo de mansinho, num silêncio desconcertante e opressor. Não sei se "Tolerância" percebeu, mas eu percebi... Fiquei me perguntando: como uma pessoa com tantas qualidades e belezas pode ser rejeitada dessa forma? Quem não daria tudo pela presença agradabilíssima da "Tolerância"? Ela me ajudou a perceber que "Diferença" estava influenciando negativamente os outros colegas e que casos como aquele se repetiam dia a dia na escola, como se fosse absurdamente anormal ser diferente.




"Tolerância" também era inteligente. Lembro que um dia ela me disse que a origem do seu nome vinha da palavra latina tolerare e significava duas coisas: suportar e sustentar. O primeiro significado ela não gostava muito e eu concordava com ela. Suportar alguma coisa ou alguém parece soar estranhamente opressor. Se alguém suporta algo ou alguém é porque o faz como peso, mas "Tolerância" não conseguia olhar para as pessoas como se fossem um peso ou fardo. Diferentemente ela entendia que o significado "sustentar" parecia mais apropriado para sua vida, pois sustentar não significa o mesmo que suportar. Sustentar quer dizer ser base, ser alicerce, ser o fundamento de algo ou de alguém. Uma construção sem fundamento desmorona no primeiro vendaval, dizia-me "Tolerância". E isso tudo me pareceu muito verdadeiro e cheio de sentido...


No dia seguinte, na sala de aula, discutíamos sobre a importância da bíblia como Palavra de Deus na vida de um cristão. Sim, pois a bíblia pode ser outras coisas não muito legais, além de Palavra de Deus... As opiniões eram diversas e "Diferença", tomando a palavra, quis afirmar e impor sua opinião como única e exclusivamente verdadeira. A maior parte da turma silenciou, talvez com medo ou vergonha, mas "Tolerância", tomando a palavra, leu um trecho do Evangelho de Mateus (Mt 7, 24-25) que diz assim: "Portanto, quem ouve essas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem prudente que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, os ventos sopraram com força contra a casa, mas a casa não caiu, porque fora construída sobre a rocha". E conclui dizendo que a "Diferença", mesmo sendo motivo de dor e sofrimento para ela, ensinou que para ser "Tolerância" é preciso ser e ter fundamento para sustentar que a "Diferença" não deve ser motivo de divisões e pré-conceitos entre a gente. A turma silenciou e desde aquele dia "Diferença" mudou, assim como eu...


Se eu tenho fundamento e sustento no que sou e creio, então eu consigo olhar para as nossas diferenças como algo que me enriquece e me faz crescer, me faz ser melhor do que sou, ou seja, sou tolerante. Caso contrário, a intolerância revela minha falta de fundamento e, por isso mesmo, minha falta de conteúdo, pois não consigo olhar para as pessoas para além de suas diferenças em relação a mim... É nesse sentido que a tolerância deve sustentar as diferenças, não suportá-las... É quando a Tolerância se torna um valor...



José Wilson Correa Garcia
Professor de Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia.
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