O desafio de não perdermos a humanidade que nos une pela polaridade que nos
divide na era da Internet.
José
Wilson Correa Garcia[1]
O ser humano é um ser cultural.
Comunicamos, a todo instante, quem somos, o que cremos, o que sentimos. Produzimos
informações a partir desse processo de comunicação culturalmente humano desde
que o ser humano existe na face da terra. Os primeiros hominídeos deixaram
marcas e informações sobre si mesmos em cavernas as quais viveram há milhões de
anos. Deixaram marcas e informações nas diversas expressões artísticas e
culturais ao longo da história. E, mais recentemente, a partir do século XX,
deixamos marcas e informações no universo virtual da Internet. Foi a partir deste século que aconteceu uma revolução sem
precedentes na forma como essa comunicação passou a ser transmitida entre as
pessoas. Suas marcas e informações deixaram de se perder no esquecimento
produzido pela história passada e através tempo. Elas se eternizaram em forma
de dados virtuais.
Na Internet, as informações comunicadas se transformam em dados: no
que fazemos em uma Rede Social; no que conversamos de forma privada entre duas
ou mais pessoas; no que reagimos “curtindo” ou “descurtindo”; nas respostas que
damos a uma postagem por termos gostado ou não; em um portal de pesquisa, o que
digitamos com a finalidade de saber ou procurar algo; em um portal de compras,
vendas ou trocas de produtos; no que procuramos de acordo com nossos próprios interesses;
nas palavras ou expressões que usamos com mais ou menos frequência nesse mundo
de interações. Tudo isso que fizemos está na memória virtual desse universo que
chamamos Internet. E essa memória é
conhecida tecnicamente como banco de dados que, na prática, são as informações
que cada pessoa deixou gravada e disponível através das interações sociais que
estabeleceu através Internet.
A
Internet existe, como mecanismo de
interação pessoal e doméstica, há pelo menos 40 anos. Imagine que uma pessoa
tenha uma conta de e-mail ou uma Rede
Social há pelo menos 10 anos, onde ela usa, quase que diariamente, para as mais
variadas coisas. Agora, imagine a quantidade de informações em forma de dados
que ela produziu nesses 10 anos. Hoje existem em média 4 bilhões de pessoas que
acessam a Internet diariamente, o que
corresponde mais da metade da população mundial. Multiplique esse número pela quantidade
de dados e informações que, diariamente, são produzidas por esse quantitativo
de usuários todos os dias. É um universo de dados que só pode ser pensado quase
que em escala infinita. Agora, como esses dados podem ser organizados de uma
forma que as pessoas não naveguem num ambiente caótico de informações? Porque –
já que a Internet é uma rede que
conecta as pessoas e aquilo que elas produzem em forma de dados – como fazer
para que uma simples pesquisa que o usuário individual faça, não se transforme em
um amontoado de dados aleatórios e caóticos? A resposta é: através de
algoritmos. São eles, os algoritmos, que liberam as pessoas de experiências
repetitivas, aleatórias e caóticas no ambiente da Internet. Mas o que é um Algoritmo?
Os algoritmos existem desde
os tempos mais remotos das primeiras civilizações. Os egípcios usavam
algoritmos para medir a cheia e a vazão do rio Nilo. Outras civilizações usavam
algoritmos para determinar as estações. Qualquer pessoa, a qualquer momento,
usa algoritmos para realizar as operações mais simples de sua vida, como ir a
algum lugar, realizar uma tarefa doméstica e diária. Muitas vezes essas
atividades são realizadas quase que automaticamente. Ninguém fica pensando de
forma sistemática, por exemplo, que ao acordar vai se levantar, ir ao banheiro,
escovar os dentes, tomar café, etc. As pessoas não pensam, elas simplesmente
fazem. E fazem porque, em sua consciência, existe uma estrutura de passos, que
são os algoritmos, que as fazem realizar essas atividades instantaneamente.
Em linguagem de programação
virtual, o algoritmo costuma ser definido como uma sequência de passos que
resolvem um determinado problema. No ambiente da computação, o algoritmo é o
elemento mais fundamental que existe, como o átomo na física ou o DNA na
biologia. No mundo virtual, o programador de computação tem que expressar esses
passos, para resolver os mais diversos problemas, através de uma linguagem que
o computador entenda. Essa é a linguagem de programação, que transfere para uma
máquina a resolução dos mesmos problemas, só que de forma mais rápida,
eficiente e precisa.
O
casamento dessa interação entre ser humano e máquina criou possibilidades
infinitas, no que diz respeito ao processamento de informações que passaram a ser
feitas em escala gigantesca, mas podem ser usadas para, por exemplo, influenciar,
de alguma forma, pessoas individualmente ou até sociedades inteiras. Mas essa é
uma possibilidade do algoritmo que será abordado mais à frente. Por enquanto,
pensemos no problema da quantidade quase que infinita de dados dos usuários em
toda Internet. Como transformar esse
ambiente caótico de dados em uma experiência agradável para o usuário? A
resposta é simples: organizando essa base de dados. E como se organiza uma base
de dados quase infinita? Criando algoritmos que façam essa organização em larga
escala.
Em
um primeiro momento, os programadores e empresas de programação criaram
algoritmos que começaram a fazer essa organização de dados dos usuários a
partir de uma lógica cronológica. Por exemplo, um usuário que observasse sua
área de informações na sua Rede Social pessoal, assim que acordasse de manhã
cedo, teria já organizadas as informações dos usuários e contatos que ele
interage, de forma cronológica. O usuário veria o resultado final de
informações e interações pela hora em que ela foi postada. A questão é que se
percebeu que, mesmo de forma cronológica, os usuários teriam acesso a
informações e interações que, de muitas formas, poderiam não ser tão agradável
a seus gostos. Por exemplo, o usuário poderia receber informações políticas
contrárias às suas próprias, dependendo da hora em que a postagem foi feita.
Essa
limitação cria um segundo momento na organização da base de dados produzidas
pelos usuários na Internet. Os programadores e empresas de programação criaram
algoritmos que passaram a organizar esses dados a partir do princípio dos
interesses do próprio usuário, ou seja, daquilo que ele gosta ou gostaria de
ver. Ora, como uma máquina é capaz de saber o que um ser humano gosta ou deixa
de gostar? Através do conjunto quantitativo de seus dados. E quem tem acesso a
eles? Entra em jogo as empresas de tecnologia.
Todos
os serviços que um usuário acessa através da Internet estão intermediados por uma empresa de tecnologia. A
simples ação de criar uma conta de e-mail
como o Gmail ou de uma Rede Social
como o Instagram ou o Facebook, cria um laço contratual entre
usuário e essas empresas. Mas como, se o usuário não assinou nenhum contrato
autorizando o uso de seus dados? A questão é que autorizou, sim. Quantas
pessoas leem, de verdade e com atenção, os “termos” que as empresas oferecem
para os usuários, antes de eles aceitarem a criação de seus perfis ou contas
naqueles determinados serviços? Nestes termos, não lidos ou ignorados, está a
autorização que o usuário dá, para determinada empresa, o livre uso de todos os
seus dados.
Resumindo,
tudo que o usuário faz ou deixa de fazer na Internet
está em um banco de dados, autorizado por ele, gerenciado por empresas de
tecnologia como a Google, Facebook, Instagram, Twitter, Amazon, etc. Ou seja, essas empresas tem
acesso a dados que dizem o que cada usuário gosta ou deixa de gostar. Basta
agora bombardear esses usuários com experiências e interações que lhes sejam
mais agradáveis, possibilitando, de acordo com os critérios da própria empresa,
aos usuários terem maior contato com pessoas que pensam ou sintam coisas
parecidas com o que eles sentem, bem como de acesso a informações que aparentem
ser mais agradáveis e úteis. Os algoritmos foram alterados para criar uma nova
experiência de interação do usuário com o que ele procura na Internet, intermediado pela lógica
quantitativa da identificação. A princípio isso soa como uma ideia genial, mas
não é. Existe uma contradição fundamental presente nessa forma de interação
virtual mediada pelos algoritmos: ela cria o que passou a ser chamado de “bolha
virtual”.
A
bolha virtual é exatamente a “organização” de interações entre pessoas a partir
de seus próprios gostos e coisas que as identificam a partir de suas bases de
dados. Cria-se, assim, uma interação onde a noção de que todo mundo pensa igual
a todo mundo, passa a dominar a experiência do usuário na Internet, porque os algoritmos aproximam pessoas que tem uma base
de dados parecida e distancia as que ele julga ser pessoas com uma base de
dados diferente. A questão é que essa intermediação de interações entre seres
humanos reais acontece a partir de uma lógica determinada por um sistema criado
de forma artificial. As relações humanas, até então marcadas pela
espontaneidade e pelo universo cultural que as caracteriza, são substituídas
por uma interação manipulada de acordo com interesses determinados, sejam eles
econômicos, políticos ou ideológicos. Os algoritmos passam a ser manipulados
para que informações sejam criadas para as pessoas, de acordo com interesses retirados
de sua própria base de dados. Uma base de dados que, apesar de serem produzidas
pelas próprias pessoas, não pertencem mais a elas, mas a um universo que tem
empresas de tecnologia como as responsáveis pelo gerenciamento de tais dados.
Essas empresas lucram – e muito – com esses dados e com a forma como eles passaram
a ser usados.
Cria-se,
assim, uma guerra de dados produzidos e manipulados de acordo com interesses de
quem paga a empresas ou pessoas para criarem informações e engatilharem essas
informações, como se fossem armas, para usuários em suas bolhas virtuais,
elegendo aqueles que tem uma força maior de alcance, comunicação e persuasão. Essas
informações determinam comportamentos, dos mais variados. Desde decisões econômicas
para comprar alguma coisa, até de decisões políticas para se votar, por
exemplo, em um determinado candidato. Não é de se admirar que, nos últimos
tempos, a expressão Fake News tem
sido tão difundida na Internet. Mais
do que difundida, tem sido usada como recurso para determinar e manipular informações
e comportamentos de pessoas, grupos de pessoas e até de nações inteiras.
São
informações que monopolizam a atenção das pessoas, fazendo com que elas
conheçam, pensem ou ajam de formas determinadas. Cada pessoa é alimentada com
verdades que desejam escutar. Em muitos casos, são verdades criadas não com a
intenção de dizerem a verdade, mas de dizerem falsas verdades. E é exatamente
isso que cria diversos níveis de polarização: um dos fenômenos mais dramáticos
do mundo na atualidade. Basta ver, direita e esquerda, cristãos e muçulmanos,
brancos e negros se alimentando, de forma descontrolada, com as próprias
verdades. Verdades manipuladas. E são essas verdades que crescem e são
alimentadas de uma tal forma dentro das pessoas, que elas passam a combater
quem pense ou aja diferente do que elas acreditam ser verdade.
Quem
ganha nesse mundo polarizado? Quem pagar mais para que os dados sejam
manipulados e produzir verdades tendenciosas. Ambos os lados pagam. Cria-se um
clima de divisão. A divisão, neste caso, tem a função de dominar. Divide-se
para dominar e conquistar. Essa foi a estratégia social e política usada pelo
imperador romano Cézar, por Felipe II da Macedônia. Maquiavel no Livro IV de
sua obra “A arte da guerra” disse que, para dominar uma nação, um comandante
precisa se esforçar ao máximo para dividir as forças do inimigo, seja fazendo-os
desconfiar dos homens que confiavam antes ou dando-lhe motivos para separar
suas forças, enfraquecendo-as. A estratégia de dividir para dominar tem sido,
ao longo da história, usada e atribuída a diversos soberanos e tiranos. E
parece que, na atualidade da era digital, tal estratégia não somente se repete,
como se intensifica e se amplia, através das informações que cada usuário da Internet produz em forma de dados. Tais
dados se tornam armas de conquista, na medida em que passam a ser usados,
estrategicamente, com a finalidade de neutralizar aquilo que o ser humano tem
de mais caro: seus direitos.
Nesse
ambiente manipulado, Direitos Humanos são violados, muitas vezes sem ser percebido:
o direito à informação; o direito de consumir com transparência e de ter
clareza em relação a como suas informações são usadas; o direito de liberdade;
o direito de propriedade, afinal de contas dados pessoais são propriedades. As
pessoas passaram a compartilhar seus dados na Internet sem ter direito sobre
eles. Perdem sua liberdade no momento da compra, do consumo, do voto. Sua
dignidade, não só como cidadãos, mas como Seres Humanos, está em risco.
Foi
isso que determinados setores de nações democraticamente avançadas, como os Estados
Unidos e Inglaterra, perceberam: que o universo de dados da Internet começou a ser usado para
manipular a opinião pública. E eles perceberam isso quando seu senso
democrático, através da política eleitoral, passou a correr riscos, como aconteceu
no caso de vazamento e uso indevido de informações de usuários da Rede Social Facebook pela empresa inglesa Cambridge Analytica, para orientar
campanhas políticas como a do atual presidente norte americano Donald Trump ou
da campanha Brexit, que pauta a saída
do Reino Unido da União Europeia. São dois exemplos claros sobre os problemas
que tais manipulações de dados, através da disseminação de algoritmos no
cotidiano das pessoas, podem colocar em risco até mesmo o processo democrático
de um país.
Em
outros casos, o uso indiscriminado e manipulado de algoritmos passaram a
reproduzir até preconceitos na Internet,
como foi o caso descoberto por uma pesquisa conduzida pela professora Latanya
Sweeney, da Universidade de Harvard, que
concluir que a empresa Google,
através de seus serviços de pesquisa, apresenta resultados com viés racista,
dependendo da pesquisa feita pelo usuário. Segundo o estudo feito, ao pesquisar
por nomes de origem afrodescendente, é frequente o usuário começar a ver
anúncios direcionados a pessoas que tenham sido presas recentemente ou cometido
algum tipo de crime. Estes resultados apareceram com uma frequência 25% maior
com nomes de famílias negras. Já com nomes 'brancos', estes anúncios
diminuíram. Segundo a professora responsável pelo estudo feito, existe 1% de
chance que os resultados tenham sido por um acaso. É obvio que, não
necessariamente, o programador do código seja racista. Mas o algoritmo usado,
que reflete e reproduz o que acontece em nosso mundo, através de nossas
interações e dados, também pode refletir e ampliar preconceitos existente em
nossa sociedade.
Como
todo avanço tecnológico, as sociedades precisam acompanhar esses fenômenos
produzidos pela manipulação de dados e tecnologias digitais, de modo que os
interesses sociais e os direitos humanos das pessoas e usuários sejam
protegidos e garantidos. Existe a necessidade de ações institucionais, que passem
pela criação de políticas públicas e leis que garantam os direitos do usuário.
Mas é necessário que cada usuário tenha uma postura diferente diante dessa
tendência manipuladora de seus próprios dados. E, talvez, a postura individual
mais importante seja a de não permitir que sua visão de mundo se restrinja e
seja monopolizada a somente aquilo que cada um, individual e isoladamente,
acredita como verdade, através das informações que recebe da Internet.
A
característica mais fundamental da existência humana é a diversidade. Aprender
olhar para as diferenças que, necessariamente, marcam as relações humanas,
buscando o respeito mútuo e a tolerância, é a única maneira eficaz de se lutar,
pessoalmente, contra essa tendência de polarização que, não só divide, mas
principalmente agride a dignidade humana de ambos os lados criados. O ser
humano, na era da Internet, através desse aparato de algoritmos e manipulações
de dados, aprendeu que possui lado. E quando se cria lados, se perde a unidade.
É preciso que a humanidade volte a se enxergar como uma unidade de pessoas e
seres humanos que estão nesse mundo com uma mesma finalidade: a de viver da
melhor forma possível e de ser feliz.
[1] Pós graduado em Adolescência e
Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
– FAJE; e em Gestão Pedagógica pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Graduado
em Filosofia pela FAJE; Graduando de Ciências Sociais pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Professor de Filosofia, Sociologia e Ensino Religioso na UNECIM. E-mail para contato: josewilsongp@gmail.com
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