domingo, 22 de dezembro de 2019

SOCIABILIDADE ALGORITMICA


O desafio de não perdermos a humanidade que nos une pela polaridade que nos divide na era da Internet.

José Wilson Correa Garcia[1]

O ser humano é um ser cultural. Comunicamos, a todo instante, quem somos, o que cremos, o que sentimos. Produzimos informações a partir desse processo de comunicação culturalmente humano desde que o ser humano existe na face da terra. Os primeiros hominídeos deixaram marcas e informações sobre si mesmos em cavernas as quais viveram há milhões de anos. Deixaram marcas e informações nas diversas expressões artísticas e culturais ao longo da história. E, mais recentemente, a partir do século XX, deixamos marcas e informações no universo virtual da Internet. Foi a partir deste século que aconteceu uma revolução sem precedentes na forma como essa comunicação passou a ser transmitida entre as pessoas. Suas marcas e informações deixaram de se perder no esquecimento produzido pela história passada e através tempo. Elas se eternizaram em forma de dados virtuais.

Na Internet, as informações comunicadas se transformam em dados: no que fazemos em uma Rede Social; no que conversamos de forma privada entre duas ou mais pessoas; no que reagimos “curtindo” ou “descurtindo”; nas respostas que damos a uma postagem por termos gostado ou não; em um portal de pesquisa, o que digitamos com a finalidade de saber ou procurar algo; em um portal de compras, vendas ou trocas de produtos; no que procuramos de acordo com nossos próprios interesses; nas palavras ou expressões que usamos com mais ou menos frequência nesse mundo de interações. Tudo isso que fizemos está na memória virtual desse universo que chamamos Internet. E essa memória é conhecida tecnicamente como banco de dados que, na prática, são as informações que cada pessoa deixou gravada e disponível através das interações sociais que estabeleceu através Internet.

            A Internet existe, como mecanismo de interação pessoal e doméstica, há pelo menos 40 anos. Imagine que uma pessoa tenha uma conta de e-mail ou uma Rede Social há pelo menos 10 anos, onde ela usa, quase que diariamente, para as mais variadas coisas. Agora, imagine a quantidade de informações em forma de dados que ela produziu nesses 10 anos. Hoje existem em média 4 bilhões de pessoas que acessam a Internet diariamente, o que corresponde mais da metade da população mundial. Multiplique esse número pela quantidade de dados e informações que, diariamente, são produzidas por esse quantitativo de usuários todos os dias. É um universo de dados que só pode ser pensado quase que em escala infinita. Agora, como esses dados podem ser organizados de uma forma que as pessoas não naveguem num ambiente caótico de informações? Porque – já que a Internet é uma rede que conecta as pessoas e aquilo que elas produzem em forma de dados – como fazer para que uma simples pesquisa que o usuário individual faça, não se transforme em um amontoado de dados aleatórios e caóticos? A resposta é: através de algoritmos. São eles, os algoritmos, que liberam as pessoas de experiências repetitivas, aleatórias e caóticas no ambiente da Internet. Mas o que é um Algoritmo?

Os algoritmos existem desde os tempos mais remotos das primeiras civilizações. Os egípcios usavam algoritmos para medir a cheia e a vazão do rio Nilo. Outras civilizações usavam algoritmos para determinar as estações. Qualquer pessoa, a qualquer momento, usa algoritmos para realizar as operações mais simples de sua vida, como ir a algum lugar, realizar uma tarefa doméstica e diária. Muitas vezes essas atividades são realizadas quase que automaticamente. Ninguém fica pensando de forma sistemática, por exemplo, que ao acordar vai se levantar, ir ao banheiro, escovar os dentes, tomar café, etc. As pessoas não pensam, elas simplesmente fazem. E fazem porque, em sua consciência, existe uma estrutura de passos, que são os algoritmos, que as fazem realizar essas atividades instantaneamente.

Em linguagem de programação virtual, o algoritmo costuma ser definido como uma sequência de passos que resolvem um determinado problema. No ambiente da computação, o algoritmo é o elemento mais fundamental que existe, como o átomo na física ou o DNA na biologia. No mundo virtual, o programador de computação tem que expressar esses passos, para resolver os mais diversos problemas, através de uma linguagem que o computador entenda. Essa é a linguagem de programação, que transfere para uma máquina a resolução dos mesmos problemas, só que de forma mais rápida, eficiente e precisa.

            O casamento dessa interação entre ser humano e máquina criou possibilidades infinitas, no que diz respeito ao processamento de informações que passaram a ser feitas em escala gigantesca, mas podem ser usadas para, por exemplo, influenciar, de alguma forma, pessoas individualmente ou até sociedades inteiras. Mas essa é uma possibilidade do algoritmo que será abordado mais à frente. Por enquanto, pensemos no problema da quantidade quase que infinita de dados dos usuários em toda Internet. Como transformar esse ambiente caótico de dados em uma experiência agradável para o usuário? A resposta é simples: organizando essa base de dados. E como se organiza uma base de dados quase infinita? Criando algoritmos que façam essa organização em larga escala.

            Em um primeiro momento, os programadores e empresas de programação criaram algoritmos que começaram a fazer essa organização de dados dos usuários a partir de uma lógica cronológica. Por exemplo, um usuário que observasse sua área de informações na sua Rede Social pessoal, assim que acordasse de manhã cedo, teria já organizadas as informações dos usuários e contatos que ele interage, de forma cronológica. O usuário veria o resultado final de informações e interações pela hora em que ela foi postada. A questão é que se percebeu que, mesmo de forma cronológica, os usuários teriam acesso a informações e interações que, de muitas formas, poderiam não ser tão agradável a seus gostos. Por exemplo, o usuário poderia receber informações políticas contrárias às suas próprias, dependendo da hora em que a postagem foi feita.

            Essa limitação cria um segundo momento na organização da base de dados produzidas pelos usuários na Internet. Os programadores e empresas de programação criaram algoritmos que passaram a organizar esses dados a partir do princípio dos interesses do próprio usuário, ou seja, daquilo que ele gosta ou gostaria de ver. Ora, como uma máquina é capaz de saber o que um ser humano gosta ou deixa de gostar? Através do conjunto quantitativo de seus dados. E quem tem acesso a eles? Entra em jogo as empresas de tecnologia.

            Todos os serviços que um usuário acessa através da Internet estão intermediados por uma empresa de tecnologia. A simples ação de criar uma conta de e-mail como o Gmail ou de uma Rede Social como o Instagram ou o Facebook, cria um laço contratual entre usuário e essas empresas. Mas como, se o usuário não assinou nenhum contrato autorizando o uso de seus dados? A questão é que autorizou, sim. Quantas pessoas leem, de verdade e com atenção, os “termos” que as empresas oferecem para os usuários, antes de eles aceitarem a criação de seus perfis ou contas naqueles determinados serviços? Nestes termos, não lidos ou ignorados, está a autorização que o usuário dá, para determinada empresa, o livre uso de todos os seus dados.

            Resumindo, tudo que o usuário faz ou deixa de fazer na Internet está em um banco de dados, autorizado por ele, gerenciado por empresas de tecnologia como a Google, Facebook, Instagram, Twitter, Amazon, etc. Ou seja, essas empresas tem acesso a dados que dizem o que cada usuário gosta ou deixa de gostar. Basta agora bombardear esses usuários com experiências e interações que lhes sejam mais agradáveis, possibilitando, de acordo com os critérios da própria empresa, aos usuários terem maior contato com pessoas que pensam ou sintam coisas parecidas com o que eles sentem, bem como de acesso a informações que aparentem ser mais agradáveis e úteis. Os algoritmos foram alterados para criar uma nova experiência de interação do usuário com o que ele procura na Internet, intermediado pela lógica quantitativa da identificação. A princípio isso soa como uma ideia genial, mas não é. Existe uma contradição fundamental presente nessa forma de interação virtual mediada pelos algoritmos: ela cria o que passou a ser chamado de “bolha virtual”.

            A bolha virtual é exatamente a “organização” de interações entre pessoas a partir de seus próprios gostos e coisas que as identificam a partir de suas bases de dados. Cria-se, assim, uma interação onde a noção de que todo mundo pensa igual a todo mundo, passa a dominar a experiência do usuário na Internet, porque os algoritmos aproximam pessoas que tem uma base de dados parecida e distancia as que ele julga ser pessoas com uma base de dados diferente. A questão é que essa intermediação de interações entre seres humanos reais acontece a partir de uma lógica determinada por um sistema criado de forma artificial. As relações humanas, até então marcadas pela espontaneidade e pelo universo cultural que as caracteriza, são substituídas por uma interação manipulada de acordo com interesses determinados, sejam eles econômicos, políticos ou ideológicos. Os algoritmos passam a ser manipulados para que informações sejam criadas para as pessoas, de acordo com interesses retirados de sua própria base de dados. Uma base de dados que, apesar de serem produzidas pelas próprias pessoas, não pertencem mais a elas, mas a um universo que tem empresas de tecnologia como as responsáveis pelo gerenciamento de tais dados. Essas empresas lucram – e muito – com esses dados e com a forma como eles passaram a ser usados.

            Cria-se, assim, uma guerra de dados produzidos e manipulados de acordo com interesses de quem paga a empresas ou pessoas para criarem informações e engatilharem essas informações, como se fossem armas, para usuários em suas bolhas virtuais, elegendo aqueles que tem uma força maior de alcance, comunicação e persuasão. Essas informações determinam comportamentos, dos mais variados. Desde decisões econômicas para comprar alguma coisa, até de decisões políticas para se votar, por exemplo, em um determinado candidato. Não é de se admirar que, nos últimos tempos, a expressão Fake News tem sido tão difundida na Internet. Mais do que difundida, tem sido usada como recurso para determinar e manipular informações e comportamentos de pessoas, grupos de pessoas e até de nações inteiras.

            São informações que monopolizam a atenção das pessoas, fazendo com que elas conheçam, pensem ou ajam de formas determinadas. Cada pessoa é alimentada com verdades que desejam escutar. Em muitos casos, são verdades criadas não com a intenção de dizerem a verdade, mas de dizerem falsas verdades. E é exatamente isso que cria diversos níveis de polarização: um dos fenômenos mais dramáticos do mundo na atualidade. Basta ver, direita e esquerda, cristãos e muçulmanos, brancos e negros se alimentando, de forma descontrolada, com as próprias verdades. Verdades manipuladas. E são essas verdades que crescem e são alimentadas de uma tal forma dentro das pessoas, que elas passam a combater quem pense ou aja diferente do que elas acreditam ser verdade.

            Quem ganha nesse mundo polarizado? Quem pagar mais para que os dados sejam manipulados e produzir verdades tendenciosas. Ambos os lados pagam. Cria-se um clima de divisão. A divisão, neste caso, tem a função de dominar. Divide-se para dominar e conquistar. Essa foi a estratégia social e política usada pelo imperador romano Cézar, por Felipe II da Macedônia. Maquiavel no Livro IV de sua obra “A arte da guerra” disse que, para dominar uma nação, um comandante precisa se esforçar ao máximo para dividir as forças do inimigo, seja fazendo-os desconfiar dos homens que confiavam antes ou dando-lhe motivos para separar suas forças, enfraquecendo-as. A estratégia de dividir para dominar tem sido, ao longo da história, usada e atribuída a diversos soberanos e tiranos. E parece que, na atualidade da era digital, tal estratégia não somente se repete, como se intensifica e se amplia, através das informações que cada usuário da Internet produz em forma de dados. Tais dados se tornam armas de conquista, na medida em que passam a ser usados, estrategicamente, com a finalidade de neutralizar aquilo que o ser humano tem de mais caro: seus direitos.

            Nesse ambiente manipulado, Direitos Humanos são violados, muitas vezes sem ser percebido: o direito à informação; o direito de consumir com transparência e de ter clareza em relação a como suas informações são usadas; o direito de liberdade; o direito de propriedade, afinal de contas dados pessoais são propriedades. As pessoas passaram a compartilhar seus dados na Internet sem ter direito sobre eles. Perdem sua liberdade no momento da compra, do consumo, do voto. Sua dignidade, não só como cidadãos, mas como Seres Humanos, está em risco.

            Foi isso que determinados setores de nações democraticamente avançadas, como os Estados Unidos e Inglaterra, perceberam: que o universo de dados da Internet começou a ser usado para manipular a opinião pública. E eles perceberam isso quando seu senso democrático, através da política eleitoral, passou a correr riscos, como aconteceu no caso de vazamento e uso indevido de informações de usuários da Rede Social Facebook pela empresa inglesa Cambridge Analytica, para orientar campanhas políticas como a do atual presidente norte americano Donald Trump ou da campanha Brexit, que pauta a saída do Reino Unido da União Europeia. São dois exemplos claros sobre os problemas que tais manipulações de dados, através da disseminação de algoritmos no cotidiano das pessoas, podem colocar em risco até mesmo o processo democrático de um país.

            Em outros casos, o uso indiscriminado e manipulado de algoritmos passaram a reproduzir até preconceitos na Internet, como foi o caso descoberto por uma pesquisa conduzida pela professora Latanya Sweeney, da Universidade de Harvard, que concluir que a empresa Google, através de seus serviços de pesquisa, apresenta resultados com viés racista, dependendo da pesquisa feita pelo usuário. Segundo o estudo feito, ao pesquisar por nomes de origem afrodescendente, é frequente o usuário começar a ver anúncios direcionados a pessoas que tenham sido presas recentemente ou cometido algum tipo de crime. Estes resultados apareceram com uma frequência 25% maior com nomes de famílias negras. Já com nomes 'brancos', estes anúncios diminuíram. Segundo a professora responsável pelo estudo feito, existe 1% de chance que os resultados tenham sido por um acaso. É obvio que, não necessariamente, o programador do código seja racista. Mas o algoritmo usado, que reflete e reproduz o que acontece em nosso mundo, através de nossas interações e dados, também pode refletir e ampliar preconceitos existente em nossa sociedade.

            Como todo avanço tecnológico, as sociedades precisam acompanhar esses fenômenos produzidos pela manipulação de dados e tecnologias digitais, de modo que os interesses sociais e os direitos humanos das pessoas e usuários sejam protegidos e garantidos. Existe a necessidade de ações institucionais, que passem pela criação de políticas públicas e leis que garantam os direitos do usuário. Mas é necessário que cada usuário tenha uma postura diferente diante dessa tendência manipuladora de seus próprios dados. E, talvez, a postura individual mais importante seja a de não permitir que sua visão de mundo se restrinja e seja monopolizada a somente aquilo que cada um, individual e isoladamente, acredita como verdade, através das informações que recebe da Internet.

            A característica mais fundamental da existência humana é a diversidade. Aprender olhar para as diferenças que, necessariamente, marcam as relações humanas, buscando o respeito mútuo e a tolerância, é a única maneira eficaz de se lutar, pessoalmente, contra essa tendência de polarização que, não só divide, mas principalmente agride a dignidade humana de ambos os lados criados. O ser humano, na era da Internet, através desse aparato de algoritmos e manipulações de dados, aprendeu que possui lado. E quando se cria lados, se perde a unidade. É preciso que a humanidade volte a se enxergar como uma unidade de pessoas e seres humanos que estão nesse mundo com uma mesma finalidade: a de viver da melhor forma possível e de ser feliz.




[1] Pós graduado em Adolescência e Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE; e em Gestão Pedagógica pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Graduado em Filosofia pela FAJE; Graduando de Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Professor de Filosofia, Sociologia e Ensino Religioso na UNECIM. E-mail para contato: josewilsongp@gmail.com


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sábado, 21 de setembro de 2019

A BANALIDADE DO MAL E O CASO USTRA: UMA LEITURA DO BOLSONARISMO A PARTIR DE HANNAH ARENDT.


RESUMO
O presente texto tem por objetivo apresentar uma visão sucinta do conceito de Banalidade do Mal da pensadora Hannah Arendt, aplicado ao caso investigatório da Comissão Nacional da Verdade que entrevistou, em depoimento, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de chefiar torturas e assassinatos cometidos contra civis brasileiros durante o período ditatorial do governo militar brasileiro, entre as décadas de 60 e 80. Além de propor uma leitura comparativa entre o contexto em que Hannah Arendt criou o termo Banalidade do Mal e o caso Ustra, o texto ampliará tal reflexão para o fenômeno denominado como “bolsonarismo”, para designar posturas individuais e coletivas que, através de um projeto político e ideológico, tem se afirmado no Brasil como expressão de um mal banalizado em discursos e práticas que relativizam crimes e legitimam ataques sistemáticos a direitos constitucionalmente garantidos, bem como de desrespeito à questões humanitárias fundamentais. Mais do que isso, mostrará que a perpetuação de tais práticas e discursos decorrem de um processo de negação da própria racionalidade, enquanto condição humana, e ignorância coletiva, o que dificulta o discernimento e julgamento na compreensão do que é, de fato, bom e mal.

Palavras-chave: Banalidade do Mal; Hannah Arendt; Caso Ustra; bolsonarismo, Redes sociais.



José Wilson Correa Garcia[1]
Letícia Santiago Farias[2]
1. INTRODUÇÃO
A vitória de Jair Messias Bolsonaro ao mais alto cargo público brasileiro não deve ser lida somente como ascensão de um projeto político. Por trás de sua vitória está, na verdade, a ascensão de pressupostos ideológicos que se inter-relacionam à interesses econômicos, políticos, bem como a interpretações jurídicas e morais que parecem inverter o sentido de progresso civilizatório de uma sociedade constituída com base na garantia de direitos fundamentais, individuais ou coletivos.
            O Brasil, atualmente, parece viver uma crise de significado e sentido de valores humanos e democráticos. Grupos minoritários são marginalizados e criminalizados. O direito fundado na garantia da liberdade é reinterpretado como se sua única função passasse a ser punitiva e vingativa. Discursos de ódio racial, de gênero, de nacionalidade, de classe, etc. passaram a se apresentar como alternativa normal e questionadora à lutas que, historicamente, buscaram garantir visibilidade e direitos humanos a grupos historicamente minoritários. Uma “nova” consciência moral mostra a inversão do que até então se conhecia como “bom” e “mal”. Parece comum a defesa do mal e a condenação do bem. O caso Ustra é um bom exemplo disso.
            O Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ao ser interrogado em uma audiência da Comissão da Verdade, chega ao ponto de sugerir que o processo de repressões, torturas e assassinatos cometidos durante a ditadura militar foi um mal necessário para conter a onda de insurreição de grupos que resistiam às arbitrariedades do regime militar brasileiro. Mais do que isso, ele aparenta demostrar uma postura que ignora o sentido daquilo que se compreende como “bom” e “mal”. Curiosamente, foi a mesma postura identificada pela pensadora judia Hannah Arendt, ao acompanhar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, condenado por crimes contra judeus durante a segunda guerra mundial. Caso que fez a filósofa cunhar o conceito “Banalidade do Mal”.
            Para Arendt, no contexto social e político em que Eichmann estava inserido, sua postura de burocrata e simples cumpridor de ordens, parecia que o tornava incapaz de usar a própria consciência para compreender a extensão da maldade de seus atos. O mal, perpetuado por suas ações, se banalizou. É possível aplicar a reflexão filosófica feita por Arendt ao contexto brasileiro? Em que medida, a mesma postura de banalização do mal pode ser identificada nas ações de figuras como Carlos Alberto Brilhante Ustra? Mais do que isso, qual a extensão da “banalidade do mal” presente no fenômeno do “bolsonarismo” e suas expressões totalitárias?
            São essas questões que orientarão as reflexões aqui feitas, na tentativa de esclarecer e contribuir para um debate que atente aos apelos que a democracia brasileira parece fazer ao ambiente acadêmico, também tão marcado por tentativas de intimidação, repressão e criminalização.

2. A BANALIDADE DO MAL EM HANNA ARENDT E SEU CONTEXTO
            O conceito “Banalidade do Mal” foi cunhado por Hannah Arendt em sua obra de 1963 “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. A publicação, em forma de livro, é uma versão estendida da matéria jornalística feita por ocasião da sua cobertura no julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, responsável pela logística de extermínio de milhões de pessoas durante a ascensão do 3º Reich alemão na Segunda Guerra Mundial.
            Na obra, Arendt começa apresentando um perfil do acusado, sugerindo um comportamento estranhamente normal (ARENDT, 1999), contradizendo a versão informal, comum e defendida pela corte de Jerusalém de que, tais crimes contra a humanidade, só poderiam ser cometidos e consentidos por um monstro psicopata, demoníaco e antissemita que personificasse o mal em si próprio. Arendt, curiosamente, o identifica como uma pessoa assustadoramente comum, um burocrata, um “cidadão de bem”, mas também uma pessoa medíocre que tinha a função de apenas cumprir as ordens recebidas, renunciado a pensar nas consequências que seus atos poderiam ter. A ausência de juízo crítico e reflexivo na figura de Eichmann foi a chave de leitura utilizada por Arendt para cunhar o conceito de “Banalidade do Mal”, uma vez que, perguntando-se sobre a natureza da relação entre a atividade reflexiva e ações malignas “podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?” (ARENDT, 2008.) A resposta positiva da pensadora, a partir do caso de Eichmann, sugere uma característica comum nas sociedades massificadas sobre princípios ideológicos totalitários. Essas sociedades tendem a alimentar nas multidões o cumprimento de ordens e ações sem qualquer tipo de questionamento, o que as tornam incapazes de fazer julgamentos morais. Pessoas normais, “cidadãos de bem” que, ao não pensarem, perpetuam uma rede de maldade que se espalha, camuflada por uma impressão de normalidade na sociedade.
            Eichmann, encarna a condição de sujeito que, ao abrir mão de sua condição reflexiva, abre mão daquilo que o caracteriza, fundamentalmente, como ser humano. Ele representa a condição de toda pessoa que, inserida em um sistema de relações ideológicas e sociais totalitárias, se desumaniza. Nesse sentido, é interessante salientar que o sistema perpetuado pelo nazi-fascismo não desumanizou somente as vítimas, mas também os algozes que contribuíram com tal sistema, direta ou indiretamente, para a legitimação da desumanização através da perpetuação de um mal banal.

3. A BANALIDADE DO MAL NO CASO USTRA E NO BOLSONARISMO
            No Brasil, pode-se atualizar a questão do mal banalizado por um sistema que o legitime, tomando como exemplo o depoimento realizado em audiência na Comissão Nacional da Verdade do coronel do exército brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão subordinado à presidência da república no regime militar de 64, responsável pela repressão política e ideológica, usando para tal fim estratégias que violaram os direitos humanos: torturas e assassinatos de cidadãos e civis brasileiros considerados “subversivos” por questionarem o sistema político vigente.

            O relato do depoimento de Ustra à Comissão Nacional da Verdade, diante dos casos e evidências de violação de direitos humanos cometidos pelo órgão que chefiava, revela três características que vale a pena considerar para o objetivo deste artigo. Primeiro, Ustra a todo instante nega a sua responsabilidade por aquilo que o acusam. Segundo, ele sempre estereotipa de “terroristas”, “comunistas”, etc. cidadãos e movimentos que lutavam por direitos civis e sociais, muitas vezes através do também direito à insurreição. Terceiro, ele usa como estratégia, transferir a responsabilidade, uma vez que sua função era apenas cumprir ordens de seus superiores. “Portanto, quem deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem deve estar é o Exército Brasileiro. [...] que assumiu por ordem do presidente da República a ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens”. (VERDADE, 2013)
            As narrativas presentes no discurso do depoimento em questão sustentam a tese de “normalidade” que esconde um mal banalizado, porque parece relativizado nas obrigações legais e burocráticas de quem o comete por ignorância. Como Eichmann, Ustra revela uma atitude de assustadora normalidade diante das consequências de atos malignos perpetuados por um sistema através do qual ele mesmo era parte significativa. Tais discursos e narrativas não são, necessariamente, monopólio de uma só pessoa. A tendência a igualar o exercício da violência ao mero cumprimento de atividades burocráticas, revela que a banalização do mal, seja no caso da Alemanha nazista ou do Brasil ditatorial, parece separar os valores éticos individuais do comportamento duvidoso assumido por um grupo ou sistema que perpetua esse mal. Por isso, segundo Hannah Arendt, o maior mal do mundo é aquele cometido por ninguém, ou seja, quando ninguém acredita estar fazendo o mal é, talvez de fato, quando o maior mal aconteça. É o que parece revelar exatamente o fenômeno do bolsonarismo no Brasil.
            O fenômeno do bolsonarismo, na verdade, se situa na própria fragilidade histórica da democracia brasileira. Diferentemente da Alemanha, que faz uma memória constante dos males advindos do nazismo, o Brasil parece esquecer da opressão sofrida durante a ditadura de 64, chegando ao ponto de pequenos grupos se organizarem em passeatas pedindo o retorno do regime. De uma forma geral, os brasileiros sempre se acostumaram a conviver com influências conservadoras e autoritárias. Depois da redemocratização, sucedeu-se um curto período de aparente autonomia democrática. Porém, com a fragilidade institucional e política desta autonomia, somada ao clima de desesperança generalizada, em meados de 2013, o conservadorismo e autoritarismo se reorganizou, principalmente, em torno de figuras como o então deputado Jair Bolsonaro. Porém, “o bolsonarismo é um fenômeno muito maior do que ele, no sentido de que a figura dele entrou em vários vácuos da sociedade brasileira e, como todo autoritarismo, conseguiu preencher vários buracos e frustrações”. (MENDES, 2018) O discurso autoritário e fascista é alimentado e assimilado através de narrativas ideologicamente construídas, principalmente, no ambiente relativamente livre das redes sociais.
Evidentemente, assim como todo movimento precisa de uma base social para se afirmar e se fortalecer, no caso do bolsonarismo, essa base social se revelou “imensa, cujos preconceitos já existiam, decantados, como a lama do fundo do poço da cultura patriarcal, mas que nunca tiveram – pelo menos na escala atual – expressão política”. (FRANCO, 2018) Somada a tais bases e manifestações, acrescentou-se narrativas preconceituosas avessas aos Direitos Humanos, às minorias, à diversidade de costumes e modos de vida. O caráter (pseudo)intelectual do bolsonarismo foi acrescentado pelo discurso neo-macarthista, que encontrou na força de teorias conspiratórias a base de criminalização intelectual a qualquer tendência progressista.
Nesse conjunto ideológico, social, político e pseudo-intelectual, forma-se o bolsonarismo, através da comunicação maciça de respostas prontas, memes, falsas alegações, chavões, piadas, xingamentos e expressões que objetivam desqualificar quem pensa diferente. No terreno da ignorância do bolsonarismo é plantado o mal banalizado.
           
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As redes sociais se tornaram a grande sombra que parece esconder o mal presente em discursos e práticas do bolsonarismo. A criminalização de seres humanos, os discursos que tendem a esconder posturas xenofóbicas, machistas, sexistas, homofóbicas, racistas, etc. são cometidos por pessoas assustadoramente normais, que se recusaram a serem humanas, pois se recusam a pensar por si próprias ao seguir, cegamente, as regras e os discursos de outros. Não é de se admirar o crescimento do bolsonarismo exatamente nos lugares em que a sombra que esconde o mal parece ser afirmada, ou seja, nas redes sociais.
            As notícias, informações e perfis falsos são um sintoma real do mal banalizado nesse ambiente virtual de sombras. Hoje, é fácil disseminar o mal apenas com uma atividade de apertar um botão, assumindo determinados comportamentos sem ao menos adotar uma postura de questionamento moral sobre as consequências de tais ações. É exatamente isso que o bolsonarismo faz. Quando se observa a quantidade de absurdos afirmados todas as vezes que o atual presidente Jair Bolsonaro fala, e a quantidade de pessoas que consideram tais narrativas como se fossem aparentemente normais, se chega à conclusão de que o mal está escondido na ignorância, na incapacidade de pensar por si, na supressão da própria racionalidade como condição para se afirmar como verdadeiramente humanos.
Até que ponto o bolsonarismo sustenta padrões éticos e morais deploráveis, simplesmente por não induzir as pessoas a analisar as consequências de seus próprios atos? Não é estranho perceber como o bolsonarismo vê a educação crítica como inimiga de seus preconceitos. Em uma sociedade onde o mal é banalizado pelas sombras da ignorância, pensar criticamente se torna uma exceção.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999;

________, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Belo Horizonte (BH): Companhia das Letras/Editora UFMG; 2008;

FRANCO, Augusto de. Há um fenômeno social, ainda inexplicado, na ascensão do bolsonarismo. Disponível em: http://dagobah.com.br/ha-um-fenomeno-social-ainda-inexplicado-na-ascensao-do-bolsonarismo/ Acesso em 06 de Setembro de 2019.

MENDES, Vinícius. O “bolsonarismo” é maior do que Bolsonaro, diz antropóloga. Entrevista. Disponível em: https://calle2.com/o-bolsonarismo-e-maior-do-que-bolsonaro-diz-especialista/ Acesso em 06 de Setembro de 2019.

VERDADE, Comissão Nacional da verdade. Depoimento do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, 2013. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo15/Nota%2039%20-%2000092.000666_2013-17.pdf Acesso em: 05 de Setembro de 2019.



[1] Graduado em Filosofia, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); Graduando em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – email: josewilsongp@gmail.com
[2] Graduanda em Direito, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) – email: le-santiago@outlook.com



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domingo, 11 de agosto de 2019

DIA DO ESTUDANTE (E DO PROFESSOR ESTUDANTE)

Todo professor, de tempos em tempos, deveria voltar a ser estudante. E não falo em sentido pedagógico figurado. Falo de voltar a ser estudante real. Sentar junto com outros colegas de sala; ouvir o professor por horas; sentir sono quando a aula tá cansativa e se admirar quando tá interessante; sentir vontade de esgoelar o professor quando ele não entende o que você sente ou quer dizer; se preocupar com a nota, mesmo sabendo que o conhecimento é mais importante (mas do que adianta conhecer, se você será tatuado pela nota que tira?); saber que o colega de sala, mesmo errado, é seu colega e merece seu apoio e respeito; sentir vontade de sumir da escola, porque se sente cansado e de saco cheio; ficar com medo de perguntar pra não parecer mais estranho e ridículo do que já sente que é; sentir aquela sensação de poder quando tira um notão depois de ter estudando igual um condenado, mesmo sabendo que não vai aprender com o próprio exemplo e vai se desmantelar mais pra frente. E tantas outras coisas que somente quem é estudante sabe...
 
Para meus alunos, no seu dia, ofereço meu espírito de professor, para lembrá-los de que podem ser sempre maiores do que são, e meu coração de estudante, pra que nunca se esqueçam de que também sou igual a vocês. Feliz dia do Estudante!
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quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O AMOR FAZ DO OUTRO SAGRADO


Antes que digam, sei que a história que vou contar a seguir não é verdadeira. Mas nunca uma história falsa foi tão verdadeira.

Disseram que esta criança da foto tinha perdido a mãe na guerra e, no pátio do orfanato, rabisca seu desenho e se deita na memória do aconchego do seu ventre, deixando de lado as sandálias em sinal de respeito, como é costume nas tradições orientais ao se entrar em um lugar sagrado.

Dizem que saudade só existe na língua portuguesa. Acho que depois dessa foto, a saudades pode ser compreendida em qualquer língua.

E isso me fez pensar que esta imagem representa bem o significado da espiritualidade. Espiritualidade é Saudade. Quando o coração deseja o aconchego da fonte de sua criação, faz porque tem sede de Deus. É o que deveria acontecer todas as vezes que vamos à Igreja. É o que deveria acontecer todas as vezes que encontramos aqueles a quem Jesus chama de próximo: as crianças, os leprosos, as prostitutas, os pecadores, os miseráveis, os pobres e excluídos... também os amigos. Entrar na sacralidade da vida dessas pessoas, como ventre, e de pés descalços.
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terça-feira, 2 de julho de 2019

O ULTIMO ABRAÇO DE VALÉRIA EM SEU PAI

A família salvadorenha, como milhares de outras imigrantes, tentavam a travessia bloqueada pelo muro ideológico construído pelos EUA. O pai leva primeiro a filha, deixando-a na outra margem do rio, enquanto volta pra buscar a mãe. A filhinha, com menos de dois anos, ao ver o pai se afastar, se joga na água. O pai volta para socorrê-la. A mãe, desesperada, observa o marido e a filha sumirem nas águas do rio que separa o México dos EUA.
 
Depois de 12 horas, os corpos de Óscar Alberto e sua filhinha Valéria são encontrados. A foto, que deixa a alma vazia e o coração mudos, mostra o bracinho da criança sobre o pescoço do pai, como que abraçada gritando por socorro.
 
Enquanto isso, o governo trump continua sua política xenofóbica de endurecimento contra imigrantes de países subdesenvolvidos. O mesmo governo adorado pelo atual presidente do Brasil, que aparentemente compartilha das mesmas posturas ideológicas criminosas.
 
Tania Vanessa, mãe e esposa, continua viva sem o direito de entrar nos EUA para tentar uma vida melhor... mas agora sem marido e sem filha.
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