sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A ATUALIDADE DO CONSERVADORISMO NO BRASIL

Está em curso no Brasil a ascensão de uma ordem conservadora em praticamente todos os âmbitos da sociedade. Vemos se repetir diante de nossos olhos a tentativa de afirmação liberal que legitimou as maiores injustiças e desigualdades da história das sociedades ocidentais.

Intelectualmente, tenta-se suprimir qualquer interpretação crítica que mostre a luta classista que divide a humanidade em ricos cada vez mais ricos, vivendo à custa da exploração de pobres cada vez mais pobres. Figuras como olavo de carvalho estão aí pra convencer os mais ingênuos (muitos deles legitimamente indignados e desesperançados) sobre o suposto "perigo" de uma suposta ordem comunista ou socialista, querendo se afirmar no mundo de forma diabólica e nefasta. Um discurso tão descontextualizado quanto ultrapassado, que convence quando não se tem coragem e disposição para buscar novas alternativas intelectuais.

Politicamente, o crescimento de discursos e posturas fundamentalistas criam um cenário sem representatividade. Figuras como bolsonaro, marco feliciano revelam o que de mais podre existe na política brasileira: a inversão de um discurso moral que aparenta ser bom por, supostamente, defender o cidadão de bem, porém, na prática, atende aos interesses de uma elite que usa o mesmo cidadão de bem fazendo-o acreditar e apoiar o que é pior para si mesmo.

Economicamente, tenta-se tirar do Estado a responsabilidade que tem sobre o cidadão: oferecer políticas públicas para saúde, educação, segurança, lazer, etc. que tenham qualidade e ofereçam dignidade. Como não se tem coragem para fazer a reforma política que o país necessita, busca-se a alternativa mais fácil: legitimar a autonomia e liberdade econômica privada. Repete-se o mesmo erro liberal que fez nascer os sistemas mais desiguais e injustos do mundo, com a falsa justificativa de que, assim, a crise econômica se resolverá. Mentira!

Aprendi com a vida que a melhor forma de convencer com uma mentira é repetí-la quantas vezes for necessário, até ser acreditada como verdade. Hoje existe sistemas de comunicação e de-formação que fazem isso muito bem. A rede globo é um deles. Não é a toa que os conservadores descobriram a força comunicadora das redes sociais. Olavo de carvalho, MBL, jair bolsonaro sequer existiriam ou seriam conhecidos se não fossem as redes sociais.

Sou de um tempo que as melhores ideias, os melhores mitos, as melhores pessoas, os melhores movimentos eram conhecidos nos livros, nas ruas e na luta.

O conservadorismo intelectual, político e econômico está longe de ser uma alternativa viável para o outro Brasil que necessitamos. Ou acordamos para o seu perigo ou continuaremos afundando na lama que tenta nos sufocar até a morte.
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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

ALEXANDRE E O TEMPO DAS ROSAS

O tempo da vida, passa. Mas o tempo do amor não é o mesmo. Quando você partiu, a memória de um passado guardado no coração era como um presente que nunca terminava. E assim continua sendo. Eu sei que você não gosta que soframos, mas é inevitável, pois o tempo da saudade também é diferente. Ele não passa, assim como a dor da sua partida que para nós é perda, aí no céu é conquista. Você sabe que a gente é meio paranoico pra essa questão do tempo. Lembra que você nunca gostava de se atrasar pra nada? Nem de se adiantar... Pois é. Fico imaginando você agoniado aí no céu, com vontade de correr atrás de uma bola pra lá e pra cá. Deve ser difícil se contentar em apenas voar... É estranho, quando a gente tá aqui na terra sonha em voar. Quando está aí no céu, como você, sonha em sentir o chão. Diga pra Deus dar um jeito nisso. Eu sei que podemos fazer daqui, mas prefiro que você faça daí, sem pressa, porque não há tempo com que se preocupar ou se perder.

Não sei se você lembra, mas a gente marca o tempo aqui na terra. Hoje faz 11 meses que você se transformou em anjo. O local onde te plantamos está verdinho, lindo de se ver. Celeste, mesmo escondido, sempre está por lá. Ela, assim como eu, estamos aprendendo a olhar praquele chão com cuidado e amor. Virgínia e papai, não foram ainda, talvez com medo, por causa da dor, de não conseguirem ver a vida que cresce. Mas sei que eles irão.

Como deve ter visto, Celeste levou mamãe. Ela sofreu, mesmo que a gente não consiga entender a extensão do sofrimento dela. No dia, ela se debruçou sobre o chão onde te plantamos e tentava falar contigo, como se fala com uma criança. Acho que, dentre todos nós, mamãe é a que mais, misteriosa e dolorosamente, vive o mistério da sua partida sem se apegar ao tempo. Para ela você continua sendo o bebezinho, o Xandinho dela. Espero que contar isso não te chateie ou te faça sofrer. Apesar de compreender que você sabe, uso como último recurso as palavras, porque sei que através delas você consegue sentir os pensamentos e compreender os sentimentos mais profundos de cada um que as lê, mesmo com nossos limites humanos. Por isso, acolha como um desabafo.

Uma coisa me chamou atenção, as rosas que crescem lá estão lindas. Fiquei pensando que o tempo delas é determinado pelo tempo do sol, assim como seu tempo aí em cima é determinado pelo tempo de Deus. Elas estão lindas porque descobriram que a vida delas só tem sentido se se nutrem do chão onde estão plantadas da mesma forma como se abrem pra receber a luz que irradia do sol. É curioso como a gente também tem aprendido a conservar a memória do tempo que passamos juntos aqui no chão da nossa história como alimento pra vida, assim como sua chegada aí em cima se tornou motivo pra se nutrir com as coisas do céu. Seja aqui ou aí, você continua sendo alimento para todos nós.
 
Há rosas abertas e há rosas ainda escondidas dentro de um botão que, a seu tempo, se abrirá para contemplar o infinito mistério da vida. Seu tempo, meu irmão, se mistura ao tempo de cada uma dessas rosas, que somos nós. Você que está aí, mais perto de Deus do que nós, abrace-nos sempre com suas recordações e não se esqueça de que, aqui, continuamos nutrindo nossas vidas com o melhor que de ti ficou...
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segunda-feira, 18 de julho de 2016

CRÔNICA: O CÉU COM ALEXANDRE


Hoje, depois de oito meses da sua partida, sonhei que fui te fazer uma visita no céu. Chegando na porta, São Pedro, logo de cara, me disse que a festa da sua chegada, mesmo com toda a programação em cima da hora, tinha sido linda e grande. Teve até aqueles churrascos que você costumava fazer aqui em baixo. Lembra da carne temperada com Alecrim que você odiou? Não teve esse tempero aí no céu, mas teve muito pão de alho, aquela picanha que você tanto gostava. O curioso é que São Pedro dizia que você não queria sair da churrasqueira. E fiquei pensando que você foi fazer no céu a mesma coisa que fazia aqui na terra: cuidar dos outros.

Achei que muita gente aí em cima fosse estranhar suas tatuagens, mas fiquei impressionado em saber que os arcanjos pintaram elas nas paredes do céu para te acolher.

Mais pra frente encontrei outros pescadores que largaram tudo pra, também, servir aos outros. Eles me contaram que aí no céu você não para de pescar. Lembrei daquela vez que a gente saiu pra pescar com as redes de papai. Lembra da conversa que tivemos enquanto íamos revezando a puxada da rede? Pois é! Foi tão profunda quanto aquela que tivemos quando você apareceu para mim em sonho no quarto de mamãe. E essas verdades, eu guardo só para mim e para nós. É que aqui na terra a gente ainda tem a possibilidade de viver um pouco o egoísmo, não é como aí no céu.

Enfim, antes de acordar, andei um pouco pelas nuvens de algodão doce à sua procura. Nossa Senhora, sentada na porta, como mamãe quando te esperava chegar, me disse que você tinha ido soltar pipa com o menino Jesus. Desculpe não ter ido te dar um abraço apertado, mas não quis atrapalhar esse momento de vocês. As pipas são objetos de união, como quando saíamos pra solta-las com papai pra praia de madrugada. Lembra?!

Bem, depois de acordar desse sonho de paz, resolvi te escrever.

Aqui embaixo a gente continua levando a vida aprendendo a vive-la sem você. Às vezes é mais difícil... você sabe como é nossa família! Tem coisas que parece que a gente sente tudo junto, mesmo não estando perto. No sonho, me contaram que de vez em quando te pegam chorando pelos cantos. Perguntei se isso era normal aí no céu. Disseram que tem horas reservadas para chorar porque, afinal de contas, nem todo choro é ruim. É que o amor aí em cima é tão grande que não dá pra ser vivido só de um jeito, sorrindo por exemplo. Também se chora pra mostrar que se ama. Fiquei quieto com essas verdades celestiais e compreendendo que, na verdade, você tava melhor do que a gente.

Mamãe e papai estão se recuperando melhor do que a gente imaginava. De verdade, por isso não precisa se preocupar. Celeste sofreu bastante e ainda sofre. Ela manda dizer que espera sua visita em seus sonhos, pra te dar um abraço daqueles que só vocês dois compreendiam. Eu sei que vocês tinham uma ligação diferente, sempre entendi e nunca me chateei, pelo contrário. Virgínia também sofreu muito, mas diferente de Celeste, se sente mais consolada por Deus, mesmo tentando esconder a dor que sente quando sua presença é mais perceptiva. Fernanda continua te amando com intensidade. Ela sofreu bastante, teve muitas dúvidas, mas está buscando os caminhos pra transformar a saudade que tem por você em mais amor. Ela tem se transformado em uma mãe incrível, você teria muito orgulho. Por falar nisso, seu príncipe, João Pedro, continua do mesmo jeitinho de sempre. Assim que você se foi, ficamos preocupados como ele reagiria, da mesma forma como ficamos preocupados como você se sentiria aí sem ele. Por isso, deixei você e o menino Jesus em paz soltando pipa. Tenho certeza que com Ele, João também está.

Nossos sobrinhos, Pedro, Barbara e Bruna, continuam lindos e cada vez maiores, chega assustar. São tão inteligentes, você ia se orgulhar deles.
 
Gabi, apesar de ter te conhecido uma única vez, manda abraços e não vê a hora de ir pro ES. Nossos parentes, amigos e conhecidos continuam lembrando de você com saudades. No dia do seu velório tantos apareceram que, apesar da dor, foi um momento de fé. Todo mundo sabia e sabe que você está bem. Teve até a presença do Pastor Marcelo e Padre Firmino falando. Sua missa de sétimo dia foi linda de se ver. Fernanda fez questão de que fosse na Matriz, hoje Santuário Nacional de José de Anchieta, porque sabia que você gostava de lá. Virgínia e Celeste foram, assim como nossos parentes mais próximos e seus amigos. No final, muitos vieram nos abraçar e em cada abraço um desejo incontrolável de te abraçar junto. Queria ter te dado esse abraço no meu sonho, mas sei que ele estava sendo dado pelo menino Jesus, por isso não quis atrapalhar.
 
Nós continuaremos aqui, sabendo que você continuará aí, agora como anjo. Receba um beijo e um abraço cheio de muito amor e saudades de cada um de nós e não esqueça de continuar cuidando, como sempre fez, de cada um que, aqui embaixo, continua te amando.
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sábado, 23 de abril de 2016

O LIXO DO DESCASO E DA INDIFERENÇA - Por Bárbara das Graças de Lima

NOTA: Há pouco tempo fiz, com meus alunos e alunas das turmas de terceiro ano da Escola Profissionalizante de Russas, uma aula de campo das disciplinas de Filosofia e Sociologia para trabalharmos a temática da Ética Ambiental, Sociedade e Meio Ambiente. O local escolhido foi a Comunidade do Alto São João, localizada na cidade de Russas, às margens de tudo: da BR 116, do lixão municipal e de tantas outras marginalizações. O relato que segue foi o testemunho humanista de uma aluna, Bárbara, a partir de seu olhar humanista. Qualquer tentativa de explicação se tornará injusta. Apenas leiam...



O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)

Fazendo menção ao poema de Manuel Bandeira, expresso um pouco daquilo que vi e senti em meio a um espaço geográfico composto por um lixo tóxico de descaso, indiferença e que, em meio a tudo isso, vivi algo que até então ficava apenas aos meus ouvidos, discursos e mais discursos da vida surreal daqueles e daquelas que tiram seu sustento dos lixões.

“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos.”

Vi sim, a imundície que somos capazes de produzir e que somos incapazes de buscar pôr em prática em um simples ato, a coleta seletiva. Não, a única coleta que percebi que estamos fazendo é a coleta de nossa hipocrisia, a que nos cega ao ponto de sermos indiferentes ao descaso dessas condições, que faz do ser humano um concorrente de urubus, porcos e insetos.

Ao sair de minha zona de conforto e ir até o “pátio” é que dei conta que o odor que senti naquele momento não chega perto ao que exala as políticas públicas que simplesmente adiam as possíveis melhorias dessas condições. Afinal, o prazo final para implantação dos chamados aterros sanitários instituída pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, era para 2014, mas pelo que consta no calendário, já se vão dias e anos deste prazo.

É inadmissível perceber, enquanto se prolongam os prazos, a vida dos que estão a mercê dessas condições vão se confundindo entre sacos, restos de comida, plástico, etc. E tudo aquilo que é “lixo” se confunde com aquilo que é vida. Vi que é muito fácil para uma visitante chegar, se indignar, trocar a roupa pois o cheiro ficou entravado, mas é muito difícil tomar parte da responsabilidade da formação disso tudo.

Talvez não seja o lixo literalmente falando que salta aos olhos e que faz tremer a pele, aperta o coração e faz a consciência ficar atordoada. Mas, sim, se dar conta de uma realidade que faz parte da vida de várias Marias, Josés, Inácios - e tantos que fogem ao alcance - e lembrar que junto desta realidade, há milhares de outras.

Senti silenciosamente além dos gemidos daqueles que ali encontrei, os gemidos da mãe natureza, tão maltratada, tão esquecida que participa da luta em favor da vida daqueles que estão lançados, muitas vezes, à sorte de encontrar os materiais que possam gerar um maior lucro... até mesmo o alimento do dia.

“O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato.”

O poema de Bandeira finaliza com o espanto de que nenhum animal que ali estava era ele mesmo. Era e é o homem que se prostra às condições que o faz bicho, que o faz sentir vergonha. Porém, mesmo diante de tudo isso que testemunhei e compartilho, apesar de não ser um rato, um gato ou um cão e sim um ser humano, este possui e sempre irá possuir em sua pele, em seu coração e sua consciência a vontade mais singela, a de ser homem nas legitimidade das condições humanas.

Talvez eu tenha sido um pouco quanto humanista nas entrelinhas, mas isso foi reflexo do que de humano não percebi em todo aquele lixo que estava aos meus olhos e que em algum lugar em meio a todo ele, estava meu lixo, não somente o lixo no seu contexto literal, mas também o meu lixo de indiferença e descaso.

“O bicho, meu Deus, era um homem.”

Por, Bárbara das Graças de Lima.
Aluna do terceiro ano de Comércio da Escola Profissionalizante de Russas, Prof. Walquer Cavalcante Maia.
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quarta-feira, 9 de março de 2016

A NOITE ESCURA DA ALMA

Passei minha vida de criança, adolescente e jovem quase inteira na mesma casa, no mesmo bairro. E ainda hoje, depois de mais de 20 anos morando fora, me pego lembrando dos pequenos detalhes do meu bairro, de cada esquina, de cada detalhe de suas praças, de cada castanheira. Muito disso já não existem mais da forma como lembro, mas para mim é como se nunca tivesse deixado de existir. E o que me faz recordar todos esses pequenos e essenciais detalhes foram as brincadeiras de “pique esconde” de uma infância mística e pura. Entre os momentos de acharmo-nos e perdermo-nos uns dos outros conhecíamos aquilo que ficou eternamente gravado na memória do coração.

Hoje, quando escutava uma interpretação da poesia “A noite escura da alma” do místico espanhol São João da Cruz lembrei dessa experiência da nossa infância.

Toda experiência mística cristã, aquela de união profunda com Deus, acontece a partir de uma experiência de vazio e aridez, que São João da Cruz traduziu por “noite escura”. Outros grandes místicos como Teresa D´Ávila, Inácio de Loyola, Madre Teresa de Calcutá, etc. viveram esse tipo de experiência. Cada pessoa, em algum momento de sua vida, viveu ou viverá algo parecido com essa experiência. A “noite escura” é o silêncio de Deus, é a falta de sentido, é a ausência de respostas. Nela, Deus se esconde como uma criança e cada vez que estamos nos aproximando de encontrá-lo, Ele se esconde ainda mais. Madre Teresa de Calcutá viveu essa ausência solitária de Deus por mais de 60 anos, até o momento de sua morte. Seus escritos nos deixaram essa misteriosa verdade. E pra que? Eis a profundidade do mistério do encontro da Alma com Deus. O que a Alma mais procura é o que ela mais conhece, sem saber. Conhecerá definitivamente quando se unir definitivamente a Deus. Até lá, continuará brincando de “pique esconde”, conhecendo cada parte Daquele que se mostra e se esconde na nossa “noite escura”.



THE DARK NIGHT OF THE SOUL – A NOITE ESCURA DA ALMA
(Interpretação de Loreena McKennitt, no álbum “The Mask and Mirror”)

Em uma noite escura
A chama do amor queimava em meu peito
E, no clarão de uma lanterna
Fugi de casa enquanto todos dormiam
Encoberto pela noite
e pelo meu destino incerto rapidamente corria
O véu ocultava os meus olhos
Enquanto todos em casa repousavam como mortos.

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Adentro esta noite enevoada
Em segredo, para além daquela visão mortal
Sem um guia ou uma luz
Senão a que ardia tão profundamente em meu coração.
Esta chama que me guiava
Com brilho mais claro que o do sol do meio-dia
Para onde ele me esperava, imóvel 
Era um lugar onde ninguém mais podia chegar 

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Dentro do meu palpitante coração
Que se guardou inteiramente para ele
Ele mergulhou no seu sono
Debaixo do cedros, todo o meu amor eu lhe dei
E, pelos muros da fortaleza
O vento roçava seus cabelos contra a sua testa.
E com sua mão macia
Acariciava todos os meus sentidos possíveis

Ó, noite, tu fostes o meu guia
Ó, noite, mais adorável que o nascer do sol
Ó, noite, que uniu o amante à amada
Transformando cada um deles um no outro. 

Eu me entreguei a ele 
E repousei minha face nos seios do meu amor
A inquietação e a tristeza tornaram-se escuras
Como uma enevoada manhã que se transforma em luz
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.
E lá elas dissiparam-se por entre os belos lírios.



CANÇÃO DA ALMA (Poema original de São João da Cruz)

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que, inteiro, para Ele só guardava
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, O regalava,
E dos cedros o leque O refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.



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sábado, 30 de janeiro de 2016

Juventude Reacionária

Como as redes sociais ajudaram a forjar uma nova geração de conservadores no Brasil do século XXI

Por Murilo Cleto - in: REVISTA FÓRUM


Logo após a contratação de Kim Kataguiri para assinar uma coluna semanal na versão online da Folha de S. Paulo, Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, recuperou a memória de Plínio de Arruda Sampaio para relativizar a ideia comum de que velhice e juventude são sinônimos absolutos de conservadorismo e progressismo, respectivamente. “Ficar velho não é virar velhaco”, disse o saudoso representante do Partido Socialismo e Liberdade certa feita no auge das sete décadas de vida militante.
 
Boulos tem razão. Mas não é exatamente uma inverdade que a juventude mantenha uma relação histórica com a mudança. É o que o século XX ensinou através dos diversos movimentos sociais, sobretudo nos anos 60, que puseram abaixo segregações naturalizadas e legalmente amparadas em todo o Ocidente. E não foi diferente no lado leste do Muro de Berlim.

Parte desta realidade foi possível também porque somente a partir do século XIX a juventude passou a ser compreendida como uma fase distinta da adulta e que, como a psicologia ajudou a explicar, tende a flertar com a contestação de valores arraigados. Normalmente é ali que a rigidez das regras entra em conflito com o potencial subversivo, que, alimentado pela explosão de hormônios, acaba por pressioná-la ao menos para sua dilatação.

Não surpreende que movimentos estudantis, por exemplo, estejam historicamente vinculados a ideais de esquerda. Forjados em períodos de grande repressão, como no Brasil do regime militar, tinham na direita autoritária um alvo comum de fácil identificação.

Mas o quadro da América do Sul virou no limiar do século XXI, logo após um período de consolidação do neoliberalismo. Com a ascensão de governos de esquerda e centro-esquerda, o Estado voltou a ser protagonista nas políticas econômicas de diversos países e o discurso anti-globalização e privatizações tornou-se a regra do bloco. E tudo isso com um novo componente: as redes sociais.

Desde o início deste processo, ganharam popularidade, na América do Sul, redes que hoje dão boa parte do tom na percepção que os cidadãos têm de seus governos. Também não é novidade alguma que é a juventude, por sua vez, que pauta o seu conteúdo, seja ele fundamentalmente político ou não. Esta combinação contribuiu significativamente para que o ímpeto contestatório jovem tenha passado a se identificar também com a direita.

E este não é fundamentalmente um problema. Um dos desdobramentos da democracia é justamente a pluralidade – e, na sua esteira, posições que estejam alinhadas à esquerda ou à direita. A questão é que os Direitos Humanos, pauta que nasceu liberal e dava indícios de que se tornaria universal, acabaram sendo empurrados para a esquerda e, no Brasil, se tornaram sinônimo do desvirtuamento de valores morais consagrados – vide a recorrente simplificação que o reduz à defesa da criminalidade. Neste sentido, parte substancial da direita liberal passou a flertar com bandeiras conservadoras, diante do avanço das políticas de afeto no continente. Foi neste período que homossexuais conquistaram o direito de se casar e mulheres e negros obtiveram cotas na Universidade e no serviço público, além de leis específicas que tipificaram a violência qualificada.

No Brasil, as siglas de direita moderada que até então estavam ocupadas com políticas econômicas passaram também a se organizar em torno de muitas dessas políticas de afeto, mas do outro lado. 

O DEM chegou a ajuizar uma ação de inconstitucionalidade no STF para barrar as cotas. O PSDB fechou posição em favor da proposta de redução da maioridade penal. E não é de hoje que o seu eleitorado tem reagido com estridência a políticas afirmativas de qualquer natureza.

Neste sentido, as redes sociais caíram como uma luva. Com a sensação de que a internet é um território livre da interferência do Estado – este alinhavado com a esquerda –, boa parte da juventude passou a concentrar nela a sua indignação, que ali ganhou forma. E também no campo dos valores, como nos movimentos contraculturais novecentistas, mas em favor da velha ordem. Quer dizer, não mais pela liberação, mas pela contenção sexual; não mais pela afirmação de minorias historicamente segregadas, mas pela manutenção da lógica meritocrática. Tudo isso em nome de um pensamento que se vende como crítico, como o da igualdade perante a lei sob a roupagem do combate às injustiças, mas que representa simplesmente a preservação de velhos valores morais. No Brasil, mesmo a defesa do Estado mínimo tem sido mais acompanhada deles do que de propostas efetivas para o aprimoramento do uso da máquina pública.

Há atualmente, no país, páginas especializadas em conquistar o público jovem com recursos de desqualificação de personagens da esquerda dita progressista. Bolsonaro Zuero 3.0 tem quase meio milhão de assinantes. Em diversas delas, vídeos no formato Turn Down For What têm sido utilizados para simular nocautes através de argumentos definitivos que apontam incoerência no discurso adversário. Nas eleições de 2014, eram comuns montagens que exibiam Aécio Neves batendo, literalmente, em Dilma Rousseff e Luciana Genro. Em todas elas os óculos escuros característicos da plataforma o revestem de uma autoridade conquistada no grito. (O recurso funciona tão bem que páginas de conteúdo progressista e mesmo governista também têm tentando reproduzi-lo.)

Kim Kataguiri e o Movimento Brasil Livre também são resultado disso. O grupo explora como poucos a crescente sensação de que veículos tradicionais de comunicação estão a serviço do governo, mesmo aqueles que o desgastam cotidianamente. E, desta forma, preenche parte deste potencial de contestação que a juventude carrega consigo, fornecendo respostas fáceis, com direito a teorias conspiratórias de toda ordem, que vão do projeto comuno-bolivariano petista de dominação do país ao da ditadura gay.

Isso não significa, evidentemente, que a juventude no Brasil tenha se tornado reacionária. E os movimentos de ocupação de escolas em São Paulo e Goiás não são a única prova disso. Significa, no entanto, que tem ganhado destaque, corpo e adeptos uma juventude identificada com o pensamento conservador como não se viu em outros momentos da história.

Há quem insista que a melhor resposta ao espaço que Kataguiri tem ocupado na mídia é o boicote. Não parece ser minimamente possível encontrar algo para se aproveitar no seu discurso, mesmo para contestar. E a sentença faz todo o sentido. Mas compreender o seu papel na internet e no debate público nacional é também descobrir muito do Brasil de hoje. E, por mais difícil que seja admitir, essa é uma realidade flagrante. Resta saber se haverá estômago.












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domingo, 17 de janeiro de 2016

A MORTE SEGUNDO MEUS SOBRINHOS

A perda do meu irmão Alexandre foi uma das experiências mais difíceis que eu já vivi. Não só eu, mas a família de uma forma geral. Não estávamos preparados para ela. Na verdade, nunca se está.

Os dias que passamos juntos foram intensos, envoltos em muitos sentimentos, questionamentos, silêncios. Entre nós, cada um a seu tempo e da sua maneira, a dor era vivida, experimentada e externada. Mas ficava observando meus sobrinhos e notava que, neles, era diferente...

A criança parece ter uma experiência completamente diferente de nós adultos da morte. Eles sentem, mas não entendem. Pelo menos não da forma como nós entendemos.
 
No dia seguinte ao enterro de Alexandre, saí com João Pedro pra frente da praia. Saí com medo, porque tinha certeza que ele falaria do pai e eu não teria força ou coragem pra responder. Ele já tinha começado a entender que algo tinha acontecido com o pai que machucava todo mundo, por isso não falava. Mas comigo ele falava, talvez pela aparência, não sei... Não deu outra. No meu colo sussurrou quase como um segredo sagrado: "Papai tá vindo?". Abracei ele forte, solucei... Depois de um tempo eu disse que o papai dele tinha ido morar com Papai do céu. Não sei se foi a melhor resposta, mas foi a que saiu do coração. Ele com uma certeza dolorosamente ingênua, termina: "papai tá trabalhando!". Me calei...

No coração de uma criança a morte não existe da forma como existe pra nós. Porque para eles a pessoa continua viva, mesmo que não fisicamente presente porque está distante, fazendo as coisas que sempre fez... Para eles a morte não é perda.

Algum tempo depois Pedro Henrique, meu sobrinho mais velho, compartilhava conosco que tinha sonhado com o tio. No sonho, experimentava a naturalidade das coisas que Alexandre sempre fez com ele. No sonho, saíram pra passear de barco, jogaram vídeo game, essas coisas simples da vida. Na volta pra casa, se despediram, o tio andando sobre a água (porque essas coisas são possíveis nos sonhos), Pedro perguntou se ele ia ficar bem. A resposta foi um sorriso afirmativo.

Curiosamente, também sonhei com ele. Não costumo sonhar com pessoas que já faleceram, mas com meu irmão foi um sonho diferente, porque foi um sonho de paz, tão real para o coração quanto para meus sobrinhos! Estava no quarto de mamãe, senti ele do meu lado, a gente conversava, aquelas coisas que só o coração sabe. Mamãe apareceu na porta, eu me calei, não queria machucá-la porque sabia que só eu estava vendo ele. Mesmo assim, acariciei seu braço e, no final, perguntei se ele estava bem. A resposta foi, também, um sorriso afirmativo.

Foi um sonho de criança. Um beijo consolado de esperança. Uma certeza estranha de que, mesmo com a morte, há vida. Meus sobrinhos sabem disso, porque vivem isso. Para eles o tio, de alguma forma, continua vivo, na memória do presente que só um coração de criança é capaz de viver plenamente. Hoje, depois de dois meses, a saudade do meu irmão é ainda vivida como perda, mesmo contra toda certeza que a fé me dá. Queria continuar sonhando com ele, mas os sonhos nem sempre acontecem da forma como desejamos. Por isso, tenho meus sobrinhos pra me recordar que a morte é uma parte estranha da vida, feita de memórias vivas de quem amamos...
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