domingo, 27 de abril de 2014

NÓS...

Como seria tão fácil não ser humano, meu Deus!
Não ter que sentir a dor da distância e da saudade.
Como seria fácil amar sem limites,
pensar que poderíamos fazer do tempo e do espaço
a possibilidade de ser mais intensos e imortais.
Não ter que buscar palavras
impossíveis de expressar o essencial
sem ao menos, submeter-se ao medo,
à vergonha...
Como seria fácil ser fraco
para sentir-se dentro de tudo.
Não ter que se esconder – do confronto –
para não dizer que se é vulnerável...

Devo estar – há muito tempo – longe do Mar.
Sinto falta do seu cheiro,
de pisar suas ondas que,
eternamente, vão e vem...
Saudades do desenho – imagem – da lua
que, na noite, dança extasiada por suas águas...
Ali, onde a liberdade parece consumir o mundo,
sem que ninguém nada perceba...
Ali onde a verdade de cada coisa
parece se escancarar...

Pensar em ti, ó Mar,
é reconhecer que tú precisas de mim...
é reconhecer que eu preciso de ti...
E nessa humana dependência
dou razão de ser à tuas ondas.
E elas, a meus pés que caminham descalços
entre tantas verdades sentidas...

Não posso renunciar a essa dependência
que me faz assemelhar-me a ti.
Não posso desejar o que não é parte de mim,
sob o perigo de perder-me
no esquecimento da tua solidão...

Preciso voltar a ser criança
para desejar sempre pisar
o infinito desconhecido desta vida...
Sem medos,
Sem vergonhas,
Sem facilidades...
Preciso renunciar ao que me tornei
para ser apenas o que sou...



José Wilson Correa Garcia
Belo horizonte. Primeira noite de Outubro, 2006.
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segunda-feira, 21 de abril de 2014

"LIBERDADE"

O feriado de Tira Dentes, comemorado no dia 21 de Abril, ainda está longe de ser uma celebração da liberdade sobre o processo histórico colonizador que, ainda hoje, estende suas raízes sobre o Brasil... De qualquer forma, compartilho essa beleza de Cecília Meireles. Trata-se de seu poema “Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência”, retirado de sua obra O Romanceiro da Inconfidência.


Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados aos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Vergílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.

Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
"Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio..."
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
"Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam..."
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
 "Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?"
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade - essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.
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O SILÊNCIO DO AMOR

"Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." Wittgenstein.

Ultimamente tenho pensado muito no silêncio, talvez por tê-lo experimentado como algo constitutivo da minha personalidade ao longo da vida. Hoje, quando mais uma vez pensava nele, percebi que há silêncios que alimentam uma solidão sem sentido, vazia, opressora... e há silêncios que possibilitam uma solidão necessária e construtiva, exatamente porque nos abre um horizonte de sentido e amor... um silêncio libertador. A raiz desse último, na minha história, encontrei em minha família...

Em casa nunca fomos de falar de nossas intimidadas pessoais. O que parecia ser normal entre amigos, dentro da família era sempre tabu. Isso, porém, nos ensinou a amar de outras formas, através de nossos silêncios, daquilo que não era falado, mas era vivido e sentido...

Lembro da primeira grande decepção que tive na minha vida de jovem/adolescente (que agora não convém detalhar) e da dor que ela me causou. Estava recente e ainda não tinha aprendido a curar minhas dores com o choro (o choro também era um tabu em casa). Numa noite, quando não conseguia dormir porque o choro sufocado também sufocava a necessidade de falar, levantei da cama e fui ao quarto de minhas irmãs. Virgínia, a mais velha, estava dormindo. Quis acordá-la, dizer o que estava sentindo e como estava doendo e me fazendo sofrer aquela situação, mas não o fiz. Ao contrário, sentei ao lado da sua cama e ali simplesmente chorei. Foi o diálogo mais profundo que tive com ela (e tenho certeza que até hoje ela sequer sabe disso) porque no seu silêncio de sono me senti acolhido, entendido e amado. Ali ela me dizia tudo o que precisava ouvir, mesmo sem dizer uma só palavra, mas sendo o que simplesmente era: minha irmã, minha família.

Sábado de manhã era especialmente um terror. Lembro que sempre desejava ficar na cama até mais tarde, eu e meu irmão, mas mamãe e minhas irmãs sempre inventavam de arrumar a casa justamente o mais cedo possível naquele dia, início do final de semana. O piso de casa ainda era de madeira e as batidas da vassoura no rodapé eram terrivelmente perturbadoras, e acho que elas sabiam disso e usavam como método para nos acordar. Porém, aquela infernal seção de tortura do meu sono era amenizada pelo silêncio de mamãe, que nos seus afazeres ficava assoviando canções religiosas. Depois de algum tempo eu entendi que era uma das formas dela de nos educar na fé...

Os domingos em casa (não sei porque, mas especialmente os domingos) eram repletos de silêncios de simplicidade e felicidade. No almoço o cheiro do alho refogado na panela, sacralmente preparada por mamãe, falava de amor e cuidado. À noite, todos sentados ao redor da televisão e aquela vinheta terrível do programa anunciando a segunda feira, sentíamo-nos de muitas formas silenciosas mais próximos, mais unidos, mais família. Cada um de nós filhos, ao seu tempo, ia dormir dando boa noite a papai e mamãe como num ritual sagrado. E a última lembrança que tinha do domingo, já deitado na cama sonolento, era do beijo silencioso de meus pais...

José Wilson Correa Garcia
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quinta-feira, 3 de abril de 2014

TOLERÂNCIA: sustentando as diferenças


"Na minha escola tem uma menina que eu não tolero ela de jeito nenhum. Ela é chata, feia, pobre... Quero é distância dela!"

Eu ouvi isso de "Diferença", uma aluna. Ela estava falando de "Tolerância", uma colega sua de escola, também minha aluna. Falar algo desse tipo já é muito sério. Mais sério ainda é falar algo desse tipo com as próprias ações. Sim, "Diferença" não estava falando literalmente, mas estava falando com suas práticas e ações dentro da escola.


"Tolerância" é uma jovem linda, inteligente, faladeira. Acolhedora com os colegas e professores, sempre está disponível a tudo e a todos. Na sala de aula ela sempre está perguntando, questionando, inquieta... E suas posições são coerentes com sua simplicidade de vida e a simplicidade de vida da sua família. Ela me ajuda muito com isso, é lindo de se ver! Lembro que no dia da Consciência Negra pedimos a "Tolerância" para fazer uma dança. Ela, com sua negritude e seus cabelos crespos lindos, dançou que era uma beleza. Enfim, "Tolerância" tem tudo o que a maioria de seus colegas não tem na escola e isso se torna um estigma sem sentido para ela.


Uma vez no recreio, eu estava em uma roda conversando e brincando com um grupinho de alunos. "Tolerância" chegou, me deu um abraço apertado, ficou do meu lado, participando da conversa, brincando, sorrindo. Aos poucos, os outros foram silenciando, fechando a cara, e simplesmente saindo de mansinho, num silêncio desconcertante e opressor. Não sei se "Tolerância" percebeu, mas eu percebi... Fiquei me perguntando: como uma pessoa com tantas qualidades e belezas pode ser rejeitada dessa forma? Quem não daria tudo pela presença agradabilíssima da "Tolerância"? Ela me ajudou a perceber que "Diferença" estava influenciando negativamente os outros colegas e que casos como aquele se repetiam dia a dia na escola, como se fosse absurdamente anormal ser diferente.




"Tolerância" também era inteligente. Lembro que um dia ela me disse que a origem do seu nome vinha da palavra latina tolerare e significava duas coisas: suportar e sustentar. O primeiro significado ela não gostava muito e eu concordava com ela. Suportar alguma coisa ou alguém parece soar estranhamente opressor. Se alguém suporta algo ou alguém é porque o faz como peso, mas "Tolerância" não conseguia olhar para as pessoas como se fossem um peso ou fardo. Diferentemente ela entendia que o significado "sustentar" parecia mais apropriado para sua vida, pois sustentar não significa o mesmo que suportar. Sustentar quer dizer ser base, ser alicerce, ser o fundamento de algo ou de alguém. Uma construção sem fundamento desmorona no primeiro vendaval, dizia-me "Tolerância". E isso tudo me pareceu muito verdadeiro e cheio de sentido...


No dia seguinte, na sala de aula, discutíamos sobre a importância da bíblia como Palavra de Deus na vida de um cristão. Sim, pois a bíblia pode ser outras coisas não muito legais, além de Palavra de Deus... As opiniões eram diversas e "Diferença", tomando a palavra, quis afirmar e impor sua opinião como única e exclusivamente verdadeira. A maior parte da turma silenciou, talvez com medo ou vergonha, mas "Tolerância", tomando a palavra, leu um trecho do Evangelho de Mateus (Mt 7, 24-25) que diz assim: "Portanto, quem ouve essas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem prudente que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, os ventos sopraram com força contra a casa, mas a casa não caiu, porque fora construída sobre a rocha". E conclui dizendo que a "Diferença", mesmo sendo motivo de dor e sofrimento para ela, ensinou que para ser "Tolerância" é preciso ser e ter fundamento para sustentar que a "Diferença" não deve ser motivo de divisões e pré-conceitos entre a gente. A turma silenciou e desde aquele dia "Diferença" mudou, assim como eu...


Se eu tenho fundamento e sustento no que sou e creio, então eu consigo olhar para as nossas diferenças como algo que me enriquece e me faz crescer, me faz ser melhor do que sou, ou seja, sou tolerante. Caso contrário, a intolerância revela minha falta de fundamento e, por isso mesmo, minha falta de conteúdo, pois não consigo olhar para as pessoas para além de suas diferenças em relação a mim... É nesse sentido que a tolerância deve sustentar as diferenças, não suportá-las... É quando a Tolerância se torna um valor...



José Wilson Correa Garcia
Professor de Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia.
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