Por, Luís Michel Françoso.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/sobe-n%C3%BAmero-de-casos-suspeitos-de-coronav%C3%ADrus-no-brasil/a-52221386
Em recente entrevista ao programa Roda Vida1, o presidente do STF (Superior Tribunal Federal), Dias Toffoli2, reivindicou a figura do antropólogo Lévi-Strauss3 para declarar que “a democracia não é um dado da natureza, a democracia é fruto da cultura humana...”. A fala tornou-se emblemática, pois tergiversa a pergunta do jornalista ao questionar o atual estado de solidez da democracia no Brasil.
Ao opor natureza e cultura, Toffoli procurou relativizar a deterioração da
democracia com o subterfúgio de que as coisas da cultura estão
sujeitas aos humores do destino, seriam indomáveis, diferente das coisas da
natureza, que seriam imutáveis. E assim, nas entrelinhas, a selvageria dos
animais políticos parece ser justificada e incorporada nas contingências da
cultura, no caso, a democrática.
Oportuno resgate da distinção entre natureza e cultura, pois os coronavírus
parecem desautorizar expectativas sobre limites entre estes pólos. Vindos do
mundo selvagem, os coronavírus adentraram a vida humana tendo sido tomados como
invasores do mundo biológico. Porém, foi nosso modo de vida que, em constante
expansão, avançou sobre habitats naturais e impôs uma cultura de dominação.
Exemplo deste fenômeno são as intervenções coloniais europeias no continente
africano no início do século XX. O surgimento do vírus HIV se iniciou na cidade
de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, por volta de 1920. Seu
aparecimento ocorreu em meio ao contexto da construção de ferrovias e de
cidades por colonos belgas, como desdobramento das imposições coloniais
europeias4. Estas alterações criaram o contexto que proporcionou que um vírus
presente em macacos se adaptasse para infectar humanos, o que deu início a uma
primeira contaminação nas cidades conectadas por esta ferrovia.
Do mesmo modo, a atual biopandemia por Covid-19 é o resultado de um mecanismo
em que um vírus presente em animais selvagens se adapta a ponto de poder
infectar seres humanos. Desta interação forçada ocorre um fenômeno denominado
de ultrapassar a barreira de espécie5.
Desde a invenção da agricultura e das técnicas de domesticação dos animais, a
partir da revolução neolítica, o ser humano altera matas nativas e estabelece
relações forçadas com outros animais, até então distantes do nosso convívio.
Desta interação ocorre, por vezes, a transformação de microrganismos (a priori
benignos em seu habitat natural) em agentes patogênicos6. Ao longo do tempo,
por exemplo, das vacas herdamos o sarampo e a tuberculose, dos porcos a
coqueluche e dos patos a gripe7.
Atualmente, a destruição destes habitats vem sendo favorecida pelo aumento da
população humana e pela intensificação da produção animal, tal como aponta
Janice Reis Ciacci Zanella, pesquisadora da Embrapa, em estudo8 sobre
suínos e aves. Conforme afirma Zanella, em 2009, a USAID9 revelou que mais
de 75% das doenças humanas que surgiram no século XX são de origem animal.
O excessivo consumo de carne, por sua vez, vem forçando o aumento de áreas para
criação de gado (a área total já devastada para esta finalidade corresponde ao
tamanho do continente africano)10. No interior destas populações de animais
confinados para o abate, cria-se um cenário ideal para a geração de vírus, ao
custo do contínuo abatimento de animais infectados e potenciais riscos a
humanidade.
Outras causas ainda são o aquecimento climático, exploração de novas fronteiras
agrícolas e a introdução de vetores em contexto urbano, como roedores e
mosquitos. O crescimento das cidades atingiu níveis alarmantes desde 2007. Das
7,7 bilhões de pessoas existentes no mundo, 4 bilhões vivem em 1% da massa
terrestre do planeta11. Há mais gente morando em núcleos urbanos do que fora
deles.
Concomitante à atual biopandemia, ocorre o aumento no contágio de doenças
infecciosas causadas por vírus, bactérias e parasitas através da interação
entre seres humanos e outros animais.
Um olhar para a biopandemia enquanto fenômeno cultural pode permitir corrigir o
ilusionismo de Toffoli em querer relativizar cenários de destruição. Ao invés
de uma guerra contra a implacável natureza de um vírus, que só nos quer fazer
morrer, estamos encarando os efeitos da reprodução de uma cultura destrutiva
que impomos aos outros seres vivos da Terra.
Observar a biopandemia de Covid-19 enquanto um fenômeno cultural faz surgir
questionamentos sobre a aceleração do desmatamento, da urbanização, do
agronegócio, do modelo latifundiário e industrial12. Enfim, a reprodução do
modelo de desenvolvimento predatório e o atual ataque à democracia apontam para
o mesmo lugar: a degradação da vida.
Luís Michel Françoso é antropólogo, professor e mestre em Ciências Sociais
pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp – Araraquara (SP).
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1 Programa de entrevistas da
TV Cultura exibido em 11 de maio de 2020.
2 José Antonio Dias Toffoli
é um jurista e magistrado brasileiro, atual ministro e presidente do Supremo
Tribunal Federal.
3 Claude Lévi-Strauss,
antropólogo belga, referência no debate sobre as noções de natureza e cultura.
Faleceu em 2009.
4 https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/02/ciencia/1412260639_097968.html
5 Viroses emergentes e
reemergentes http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2001000700031
6 Organismo capaz de gerar
doenças infecciosas.
7 https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/
8 Zoonoses emergentes e
reemergentes e sua importância para saúde e produção animal, disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/pab/v51n5/1678-3921-pab-51-05-00510.pdf.
9 Agência dos Estados Unidos
para o Desenvolvimento Internacional
10 George Monbiot, “There’s
a population crisis all right. But probably not the one you think” [Sim, há uma
crise populacional. Mas, provavelmente, não aquela em que você está pensando],
The Guardian, 19 nov. 2015.
11 Reportagem da BBC
Internacional de 01 de fevereiro de 2020 aponta que Wuhan, na China, foco
inicial do atual surto de coronavírus é um ponto de referência na circulação de
pessoas: “Wuhan é a principal estação do serviço ferroviário de alta velocidade
da China, e o vírus chegou no momento em que o país estava prestes a realizar a
maior migração humana da história — mais de três bilhões de viagens são feitas
pelo país na época do Ano Novo Chinês”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51296088
12 Para mais informações o
interessante artigo do Le Monde Diplomatique. https://diplomatique.org.br/contra-a-pandemia-ecologia/