domingo, 16 de agosto de 2020

Socialização, Saúde Mental e inércia no contexto de pandemia.

Chegamos em um estágio desta pandemia em que é inevitável não reconhecer as diversas experiências de socialização presencial como fator fundamental para a realização humana. É no contato com o outro que nos realizamos, crescemos, nos desenvolvemos. A família é um lugar de socialização, mas ela está limitada a um universo que não supre outras dimensões da vida, como amizade, companheirismo, paixão, etc.

A ausência desse contato, para além da socialização familiar, aleija a vida. E as pessoas, depois de mais de quatro meses tentando, aos trancos e barrancos, se manter distantes das outras formas de socialização, começam a sentir as consequências: estresse, irritabilidade, solidão, tristeza e depressão. Sei disso porque sou professor e observo, mesmo a distância, os sinais que meus alunos dão.

Hoje, vemos shoppings centers, praças e praias lotadas de gente. A primeira tendência daqueles mais conscientes, diante deste atual cenário, é julgar e condenar os outros que querem sair de alguma forma. É até compreensível, tendo em vista que, culturalmente, não somos reconhecidos como um povo consciente.

Hoje, me despindo de qualquer carga de moralismo, como professor, eu diria para os pais de meus alunos: levem seus filhos para espaços de socialização. Mas levem em segurança, com distanciamento e com os cuidados que vocês já sabem bem quais são. Se o ambiente tem outras pessoas que não são conscientes e responsáveis, se afastem. Mas não deixem mais seus filhos dentro de casa por muito tempo.

O que vale para a família, em relação a este conselho, também vale para a Escola. É possível, sim, voltarmos aos poucos de forma segura e controlada.

O problema é que, em se tratando (principalmente) de educação pública, nosso sistema educativo não está preparado para esse retorno, assim como não está preparado para outras mudanças necessárias que o contexto de pandemia está exigindo das instituições de ensino. Digo isso porque sou estudante de uma instituição pública e conheço a ineficiência ou má vontade, mesmo depois de quatro meses, em estabelecer um plano de ação de retomada de atividades de forma segura e responsável.

O sistema público brasileiro se acostumou com a lógica de oferecer serviços e realizá-los da forma mais fácil e simples possível. Por isso, permanecemos ainda inertes. É mais fácil simplesmente parar as atividades. E permanecer parados até sabe-se lá quando. Difícil é não se resignar.

A mesma lógica acontece com o problema da seca no nordeste. Entra governo, sai governo e a lógica da relação com a seca permanece: é preciso combater a seca e não conviver com ela. O mesmo vale para a pandemia do coronavírus, que é uma realidade que chegou para ficar, não tenho dúvidas.

Até quando permaneceremos inertes e irresponsáveis diante das consequências sociais, culturais e psíquicas de tantas crianças, adolescentes e jovens brasileiros?
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sábado, 8 de agosto de 2020

MEMÓRIA DE UMA MISSÃO: SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA E DOM PEDRO CASALDÁLIGA

 

“VIDAS PELA VIDA. VIDAS PELO REINO!”

dom Pedro Casaldáliga

Bispo da prelazia de são Félix do Araguaia

Mato Grosso – BRASIL

  

Desde o primeiro momento que pisei nestas plagas mato-grossenses o espírito profético desse grande homem – Pedro Casaldáliga – se fez presença atuante e viva.

            Realmente as distâncias são imensas. A prelazia de São Félix do Araguaia é uma região localizada ao norte do Estado do Mato Grosso com 150.000 Km2. Só se tem noção destas distancias quando se percorre, mesmo que uma pequena parcela, deste imenso território de missão.

            Para chegar até o lugar onde passei as duas semanas de missão tive que sair de Goiânia, de onde me dirigi para Canarana, já no Mato Grosso. Desta cidade dirigi-me para Querência, uma cidadezinha ainda menor, formada por retirantes do Sul do País, que acolhia a 100 Km de sua sede os quatro assentamentos que se tornaram referência para mim.

            O sistema de transporte rodoviário, desde Canarana, se mostrou totalmente precário. Era difícil de acreditar que o ônibus naquele estado pudesse agüentar os 200 Km que ligavam Canarana a Querência. As estradas nem se falam. O que sobrava do asfalto se juntava aos buracos e à terra vermelha da região.

            No Caminho a realidade da região se descortinava. Eram camponeses que iam e vinham das diversas cidadelas. Famílias indígenas com suas mulheres carregando no colo sempre suas crianças que calavam o choro com a ordem do pai, sempre melhor vestido.

            Uma região exclusivamente agrária, onde a presença das grandes fazendas latifundiárias é tão marcante que chegam a configurar e interferir visivelmente na geografia.

            Me escandalizei ao percorrer duas horas de ônibus dentro de uma mesma fazenda. E, por incrível que pareça, um camponês falou que aquela fazenda não era tão grande em comparação a outras que existem na região. Milhares e milhares de hectares desmatados por causa das lavouras, geralmente de soja.

            Grande parte da fonte de renda se concentra em trabalhos nestas grandes fazendas latifundiárias, onde já foi detectada a presença da exploração de mão de obra escrava. Esses grandes latifúndios, na maioria das vezes, se revelam de forma oculta e silenciosa, como verdadeiros instrumentos de opressão e morte de tantos camponeses pela falta de opção, e de tantas nações indígenas que são cada vez mais espremidas e esmagadas pelo latifúndio.

            Graças ao trabalho da prelazia e a algumas instituições que ajudam a pensar soluções para esses problemas, muitas coisas já foram feitas, mesmo que a custa do sangue derramado de tantas e tantas vidas. Por causa de trabalhos como esses, nações indígenas hoje são olhadas com mais seriedade e responsabilidade; fazendas latifundiárias foram desapropriadas e distribuído terra a quem não tinha.

            Mas tudo o que já foi feito parece ser pouco diante da imensidão de problemas e desafios que esta região comporta.

             A distancia da sede de Querência até os quatro assentamentos que tive contato é de 100 Km. Esses assentamentos – Coutinho União, Brasil Novo, São Miguel e T65 – são desapropriações de terra do que já foi uma grande fazenda latifundiária. Cada família assentada recebe uma parcela de terra, estabelecida pelo INCRA, com média de 100 hectares.

            A aquisição dessas terras por parte das famílias e a forma de lidar com ela é um pouco complicada. Geralmente são terras nativas, cheias de árvores e animais silvestres. É comum encontrar nos assentamentos bichos como onça, sucuri, jacaré, capivara, veado, tatu, etc...

            Para o plantio é necessário que esta terra nativa seja tratada e preparada, por ser de uma qualidade “não muito boa”. E, para isso, são necessários recursos financeiros, de que nem sempre as famílias dispõem.

            Este é um grande desafio, pois já está mais que comprovado que não basta só distribuir terra se não se oferece o mínimo necessário para que o lavrador possa fazer esse pedaço de terra, que é seu, produzir.

            Aí entra um outro grande problema. O INCRA que é o órgão federal que deveria organizar a distribuição das terras de forma igualitária, bem como os recursos federais para o pequeno lavrador, age de forma descarada e corrupta, junto com as prefeituras, desviando grande parte dos recursos, que deveriam beneficiar os assentamentos, sabe-se lá para onde.

            Chego às vezes a pensar que esses recursos financeiros quando chegam nas mãos do lavrador não bastam, independentemente da quantia, por incrível que pareça.

            Muitos usam o dinheiro, que era para ser usado no trato da terra, de forma desordenada e irregular. Isso sem falar na necessidade cega de se plantar para se produzir cada vez mais, com mais concorrência, com mais ganância, mais e mais... com isso, cada vez mais, milhares e milhares de hectares de matas são queimadas e desmatadas, dando assim, continuidade ao sistema de fazendas, só que agora em parcelas menores.

            Não! Acho que a reforma agrária não é isso. A reforma agrária é muito mais do que distribuição de terra e dinheiro. A reforma agrária é consciência comunitária, é consciência humana, ecológica e fraterna. Penso que é exatamente neste ponto que as vidas são doadas pela Vida, pelo Reino. É neste momento que posso falar e citar tantos homens e mulheres que doam suas vidas junto a essa realidade por uma causa que é maior que qualquer ideologia.

             O grupo de agentes de pastoral da prelazia de São Félix do Araguaia formados por religiosos, religiosas, ministros ordenados, leigos e leigas estão inseridos em todo território da prelazia e articulados por regionais e comunidades eclesiais de base (CEB’s). A articulação pastoral se dá por conselhos, que vão desde o conselho comunitário de base, passa pelo conselho regional, até o conselho geral da prelazia. Numa divisão dinâmica e discernida, todas as propostas de atividades e decisões passam respectivamente por esses conselhos; de baixo para cima, é claro.

            Mas a base de toda atividade pastoral da prelazia está no silêncio e no anonimato dos agentes inseridos nas realidades de cada comunidade, vila ou assentamento.

            Eu, nestas semanas de missão, tentei me inserir junto à realidade de três irmãs Capuchinhas Missionárias: Maria José, Núbia e Elismar; que vivem na fraternidade Margarida Alves no assentamento Coutinho União. Elas, juntas com alguns moradores dos assentamentos, prestam assistência no que for necessário a cada realidade particular.

            Junto ao trabalho e estilo de vida destas irmãs experimentei o que chamarei de “utopia da vida religiosa”. Nada mais próximo ou mais distante dos assentamentos. Assim vivem essas religiosas, e creio que a maioria dos agentes de pastoral da prelazia. Com um estilo de vida dinâmico e criativo, de acordo com cada necessidade, elas  vivem sua consagração e vida respeitando os limites de cada pessoa dos assentamentos, assumindo os desafios, dificuldades e alegrias como se fossem seus – o que na verdade são. Mas nem por isso deixam de ser uma presença que questiona, anima, trabalha e celebra.

 Em realidades como essas dos assentamentos é difícil de se encontrar uma estrutura já definida e formada de comunidade: com pastorais e grupos. Por isso, a necessidade de uma presença que saiba escutar, dialogar e respeitar o ritmo e a caminhada deste povo, sem esperar resultados imediatos e sem interferir, de forma brusca, no ritmo de vida já tão martirizado pelo trabalho duro ou mesmo pela falta dele.

Penso que nenhuma ação pastoral é mais eficaz que aquela capaz de se inserir concretamente na realidade local, dinamizando com maturidade e responsabilidade o testemunho, que se dá a partir da opção de vida própria do religioso e religiosa e seu carisma.

De forma lenta, anônima, mas sólida o agente de pastoral vai incutindo no meio da comunidade, vila ou assentamento o espírito evangélico dos libertados, marcado radicalmente pela acolhida e pelo Amor fraterno a todos e a todas, sem distinção de raça, cor ou credo.

As “casas das equipes”, como são chamadas as casas pertencentes à prelazia onde residem os agentes de pastoral, estão sempre abertas, prontas para acolher a qualquer hora, qualquer pessoa que chegue e peça ajuda, ou mesmo para uma visita ou conversa de fim de tarde.

Elas se refletem, de forma muito parecida, com a residência do bispo, na simplicidade na acolhida e na humildade, muito diferente do que estamos acostumados a ver pelo Brasil e pelo mundo afora.

Dom Pedro – faço questão de chamá-lo assim, apesar dele preferir somente Pedro – conserva uma serenidade impressionante. A lucidez de suas colocações e posições em relação à igreja e à sociedade são muito mais atuais que muitas posições caducas de hoje em dia. Me marcou profundamente sua acolhida e sua disponibilidade em servir a todos, de todas as formas possíveis. Um místico com um olhar penetrante e profundo, que me parece ir além das coisas visíveis.

Em sua casa, em sua presença tudo respira um ar de paz e profecia. Alias, esse foi o ar que respirei ao longo dessas semanas. Um ar que penetrou como testemunho, fé e serviço o seio de toda nossa igreja, particularmente da igreja latino-americana e brasileira. Um ar que ainda hoje, apesar das intenções contrarias pessoais e institucionais, continua e penetrar e a inundar os corações de tantos irmãos e irmãs fieis ao espírito de Jesus Cristo que se manifesta na presença questionadora dos pobres.

 

No coração permanece a lembrança e as cicatrizes dos corações de tantas pessoas, pelo peso da opressão e do descaso nesta bendita terra de missão, mas, sobretudo a certeza de que levo um pouco do fogo que ainda queima com força esses mesmos corações sedentos de Justiça, Dignidade e Paz.

Com o braço e coração erguidos, não em sinal de despedida, mas de bênção ou talvez de até logo, está aquele grande homem na porta de sua simples casa. Ele que soube como ninguém doar sua vida pela Vida, sua vida pelo reino. É inevitável a lembrança do abraço apertado e fraterno de Dom Pedro, carregado de Paz e acolhida exclamando para mim: “Zé Wilson, seja fiel, aos pobres”.

  

José Wilson Correa Garcia

São Félix do Araguaia, 25 de Dezembro de 2004.


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