“VIDAS PELA VIDA. VIDAS PELO
REINO!”
dom Pedro Casaldáliga
Bispo da prelazia de são
Félix do Araguaia
Mato Grosso – BRASIL
Desde o
primeiro momento que pisei nestas plagas mato-grossenses o espírito profético
desse grande homem – Pedro Casaldáliga – se fez presença atuante e viva.
Realmente as distâncias são imensas.
A prelazia de São Félix do Araguaia é uma região localizada ao norte do Estado
do Mato Grosso com 150.000 Km2. Só se tem noção destas distancias quando se
percorre, mesmo que uma pequena parcela, deste imenso território de missão.
Para chegar até o lugar onde passei
as duas semanas de missão tive que sair de Goiânia, de onde me dirigi para
Canarana, já no Mato Grosso. Desta cidade dirigi-me para Querência, uma
cidadezinha ainda menor, formada por retirantes do Sul do País, que acolhia a
100 Km de sua sede os quatro assentamentos que se tornaram referência para mim.
O sistema de transporte rodoviário,
desde Canarana, se mostrou totalmente precário. Era difícil de acreditar que o
ônibus naquele estado pudesse agüentar os 200 Km que ligavam Canarana a
Querência. As estradas nem se falam. O que sobrava do asfalto se juntava aos
buracos e à terra vermelha da região.
No Caminho a realidade da região se
descortinava. Eram camponeses que iam e vinham das diversas cidadelas. Famílias
indígenas com suas mulheres carregando no colo sempre suas crianças que calavam
o choro com a ordem do pai, sempre melhor vestido.
Uma região exclusivamente agrária,
onde a presença das grandes fazendas latifundiárias é tão marcante que chegam a
configurar e interferir visivelmente na geografia.
Me escandalizei ao percorrer duas
horas de ônibus dentro de uma mesma fazenda. E, por incrível que pareça, um
camponês falou que aquela fazenda não era tão grande em comparação a outras que
existem na região. Milhares e milhares de hectares desmatados por causa das
lavouras, geralmente de soja.
Grande parte da fonte de renda se
concentra em trabalhos nestas grandes fazendas latifundiárias, onde já foi
detectada a presença da exploração de mão de obra escrava. Esses grandes
latifúndios, na maioria das vezes, se revelam de forma oculta e silenciosa,
como verdadeiros instrumentos de opressão e morte de tantos camponeses pela
falta de opção, e de tantas nações indígenas que são cada vez mais espremidas e
esmagadas pelo latifúndio.
Graças ao trabalho da prelazia e a
algumas instituições que ajudam a pensar soluções para esses problemas, muitas
coisas já foram feitas, mesmo que a custa do sangue derramado de tantas e
tantas vidas. Por causa de trabalhos como esses, nações indígenas hoje são
olhadas com mais seriedade e responsabilidade; fazendas latifundiárias foram
desapropriadas e distribuído terra a quem não tinha.
Mas tudo o que já foi feito parece
ser pouco diante da imensidão de problemas e desafios que esta região comporta.
A distancia da sede de Querência até
os quatro assentamentos que tive contato é de 100 Km. Esses assentamentos –
Coutinho União, Brasil Novo, São Miguel e T65 – são desapropriações de terra do
que já foi uma grande fazenda latifundiária. Cada família assentada recebe uma
parcela de terra, estabelecida pelo INCRA, com média de 100 hectares.
A aquisição dessas terras por parte
das famílias e a forma de lidar com ela é um pouco complicada. Geralmente são
terras nativas, cheias de árvores e animais silvestres. É comum encontrar nos
assentamentos bichos como onça, sucuri, jacaré, capivara, veado, tatu, etc...
Para o plantio é necessário que esta
terra nativa seja tratada e preparada, por ser de uma qualidade “não muito boa”.
E, para isso, são necessários recursos financeiros, de que nem sempre as
famílias dispõem.
Este é um grande desafio, pois já
está mais que comprovado que não basta só distribuir terra se não se oferece o
mínimo necessário para que o lavrador possa fazer esse pedaço de terra, que é
seu, produzir.
Aí entra um outro grande problema. O
INCRA que é o órgão federal que deveria organizar a distribuição das terras de
forma igualitária, bem como os recursos federais para o pequeno lavrador, age
de forma descarada e corrupta, junto com as prefeituras, desviando grande parte
dos recursos, que deveriam beneficiar os assentamentos, sabe-se lá para onde.
Chego às vezes a pensar que esses
recursos financeiros quando chegam nas mãos do lavrador não bastam,
independentemente da quantia, por incrível que pareça.
Muitos usam o dinheiro, que era para
ser usado no trato da terra, de forma desordenada e irregular. Isso sem falar
na necessidade cega de se plantar para se produzir cada vez mais, com mais concorrência,
com mais ganância, mais e mais... com isso, cada vez mais, milhares e milhares
de hectares de matas são queimadas e desmatadas, dando assim, continuidade ao
sistema de fazendas, só que agora em parcelas menores.
Não! Acho que a reforma agrária não
é isso. A reforma agrária é muito mais do que distribuição de terra e dinheiro.
A reforma agrária é consciência comunitária, é consciência humana, ecológica e
fraterna. Penso que é exatamente neste ponto que as vidas são doadas pela Vida,
pelo Reino. É neste momento que posso falar e citar tantos homens e mulheres
que doam suas vidas junto a essa realidade por uma causa que é maior que
qualquer ideologia.
O grupo de agentes de pastoral da
prelazia de São Félix do Araguaia formados por religiosos, religiosas,
ministros ordenados, leigos e leigas estão inseridos em todo território da
prelazia e articulados por regionais e comunidades eclesiais de base (CEB’s). A
articulação pastoral se dá por conselhos, que vão desde o conselho comunitário
de base, passa pelo conselho regional, até o conselho geral da prelazia. Numa
divisão dinâmica e discernida, todas as propostas de atividades e decisões
passam respectivamente por esses conselhos; de baixo para cima, é claro.
Mas a base de toda atividade
pastoral da prelazia está no silêncio e no anonimato dos agentes inseridos nas
realidades de cada comunidade, vila ou assentamento.
Eu, nestas semanas de missão, tentei
me inserir junto à realidade de três irmãs Capuchinhas Missionárias: Maria
José, Núbia e Elismar; que vivem na fraternidade Margarida Alves no
assentamento Coutinho União. Elas, juntas com alguns moradores dos
assentamentos, prestam assistência no que for necessário a cada realidade
particular.
Junto ao trabalho e estilo de vida
destas irmãs experimentei o que chamarei de “utopia da vida religiosa”. Nada
mais próximo ou mais distante dos assentamentos. Assim vivem essas religiosas,
e creio que a maioria dos agentes de pastoral da prelazia. Com um estilo de
vida dinâmico e criativo, de acordo com cada necessidade, elas vivem sua consagração e vida respeitando os
limites de cada pessoa dos assentamentos, assumindo os desafios, dificuldades e
alegrias como se fossem seus – o que na verdade são. Mas nem por isso deixam de
ser uma presença que questiona, anima, trabalha e celebra.
Em realidades como essas dos assentamentos é difícil de se encontrar uma
estrutura já definida e formada de comunidade: com pastorais e grupos. Por
isso, a necessidade de uma presença que saiba escutar, dialogar e respeitar o
ritmo e a caminhada deste povo, sem esperar resultados imediatos e sem
interferir, de forma brusca, no ritmo de vida já tão martirizado pelo trabalho
duro ou mesmo pela falta dele.
Penso que nenhuma ação pastoral é mais eficaz que aquela capaz de se inserir
concretamente na realidade local, dinamizando com maturidade e responsabilidade
o testemunho, que se dá a partir da opção de vida própria do religioso e
religiosa e seu carisma.
De forma lenta, anônima, mas sólida o agente de pastoral vai incutindo no
meio da comunidade, vila ou assentamento o espírito evangélico dos libertados,
marcado radicalmente pela acolhida e pelo Amor fraterno a todos e a todas, sem
distinção de raça, cor ou credo.
As “casas das equipes”, como são chamadas as casas pertencentes à
prelazia onde residem os agentes de pastoral, estão sempre abertas, prontas
para acolher a qualquer hora, qualquer pessoa que chegue e peça ajuda, ou mesmo
para uma visita ou conversa de fim de tarde.
Elas se refletem, de forma muito parecida, com a residência do bispo, na
simplicidade na acolhida e na humildade, muito diferente do que estamos
acostumados a ver pelo Brasil e pelo mundo afora.
Dom Pedro – faço questão de chamá-lo assim, apesar dele preferir somente
Pedro – conserva uma serenidade impressionante. A lucidez de suas colocações e
posições em relação à igreja e à sociedade são muito mais atuais que muitas
posições caducas de hoje em dia. Me marcou profundamente sua acolhida e sua
disponibilidade em servir a todos, de todas as formas possíveis. Um místico com
um olhar penetrante e profundo, que me parece ir além das coisas visíveis.
Em sua casa, em sua presença tudo respira um ar de paz e profecia. Alias,
esse foi o ar que respirei ao longo dessas semanas. Um ar que penetrou como
testemunho, fé e serviço o seio de toda nossa igreja, particularmente da igreja
latino-americana e brasileira. Um ar que ainda hoje, apesar das intenções
contrarias pessoais e institucionais, continua e penetrar e a inundar os
corações de tantos irmãos e irmãs fieis ao espírito de Jesus Cristo que se
manifesta na presença questionadora dos pobres.
No coração permanece a lembrança e as cicatrizes dos corações de tantas
pessoas, pelo peso da opressão e do descaso nesta bendita terra de missão, mas,
sobretudo a certeza de que levo um pouco do fogo que ainda queima com força
esses mesmos corações sedentos de Justiça, Dignidade e Paz.
Com o braço e coração erguidos, não em sinal de despedida, mas de bênção
ou talvez de até logo, está aquele grande homem na porta de sua simples casa. Ele
que soube como ninguém doar sua vida pela Vida, sua vida pelo reino. É
inevitável a lembrança do abraço apertado e fraterno de Dom Pedro, carregado de
Paz e acolhida exclamando para mim: “Zé Wilson, seja fiel, aos pobres”.
José Wilson Correa Garcia
São Félix do Araguaia, 25 de Dezembro de 2004.