Não importa no que você acredita, mas como você vive, Cristo estava dizendo.
Fonte: DCM
Tolstói certa vez disse que “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Aqui, nossa aldeia se encontra na Palestina do Século I, no tempo das comunidades patriarcais.
Por questões de sobrevivência, era necessário assumir uma postura gregária, de proteção mútua. Em razão da escassez de alimento e da dificuldade de se proteger a propriedade, o isolamento era garantia de morte prematura.
As pessoas se encontravam, portanto, intimamente ligadas à terra. Do apascentamento dos rebanhos ao cultivo dos grãos, tudo era feito em conjunto pelo aldeões.
E o grande responsável pela manutenção dessa ordem era o patriarca, figura a quem se devia, portanto, grande respeito.
Sua influência se estendia para além do núcleo familiar, abrangendo também os seus empregados e suas respectivas famílias.
Diante desse cenário, e para um grupo de camponeses, Jesus narra uma parábola cuja incompreensão atravessa os séculos.
“Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao seu pai: ‘Pai, quero a minha parte da herança’. Assim, ele repartiu sua propriedade entre eles. “Não muito tempo depois, o filho mais novo reuniu tudo o que tinha e foi para uma região distante; e lá desperdiçou os seus bens vivendo irresponsavelmente.
Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e ele começou a passar necessidade. Por isso foi empregar-se com um dos cidadãos daquela região, que o mandou para o seu campo a fim de cuidar de porcos. Ele desejava encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.
“Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm comida de sobra, e eu aqui, morrendo de fome! Eu me porei a caminho e voltarei para meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados’. A seguir, levantou-se e foi para seu pai.
“Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
“O filho lhe disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho’. “Mas o pai disse aos seus servos: ‘Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado’. E começaram a festejar o seu regresso.
“Enquanto isso, o filho mais velho estava no campo. Quando se aproximou da casa, ouviu a música e a dança. Então chamou um dos servos e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe respondeu: ‘Seu irmão voltou, e seu pai matou o novilho gordo, porque o recebeu de volta são e salvo’.
“O filho mais velho encheu-se de ira e não quis entrar. Então seu pai saiu e insistiu com ele. Mas ele respondeu ao seu pai: ‘Olha! todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens. Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele!’
“Disse o pai: ‘Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu. Mas nós tínhamos que celebrar a volta deste seu irmão e alegrar-nos, porque ele estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado’”.
Para se compreender essa parábola, é preciso viajar no tempo e deixar de lado algumas concepções sociológicas que nós, ocidentais do Século XXI, costumamos utilizar.
Jesus falava de acordo com o tempo e os lugares.
Assim, um gesto que pode passar despercebido, mas que é fundamental no contexto social do Oriente Próximo, onde a história se passa, é o problema causado pela questão da antecipação da herança. Para aquelas pessoas, esse pedido equivalia a desejar a morte do patriarca, uma falta tão grave que poderia ser punida com o apedrejamento.
Mesmo diante daquela humilhação, o patriarca concorda com a solicitação do filho.
Este, ciente da sua situação, rapidamente vende os bens herdados e parte uma terra distante. Lá, dilapida o patrimônio e se vê obrigado a cuidar de porcos, algo absolutamente degradante para a época. E em razão da fome que se abate na região, passa a tentar se alimentar da comida destinada a esses animais.
No auge do seu sofrimento, ele “cai em si”. E a dor, qual uma ferramenta pedagógica, faz sua consciência despertar. Arrependido, ele decide buscar o perdão do pai.
E precisamente no episódio do retorno à casa, a sutileza da sabedoria de Jesus impressiona: o patriarca, um homem de andar lento e solene, corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o no rosto, na frente de todos. Aquela cena chocante contrariava todas as tradições do patriarcado.
Por amor ao filho, porém, o pai se humilha perante a aldeia naquele gesto público.
Aqui, um detalhe. Naquela região, até hoje, quando há um conflito, uma forma comum de resolução é a mediação, feita por uma pessoa de confiança dos litigantes. Se a questão for resolvida, o gesto que sela a paz é exatamente o beijo no rosto.
Porém, no caso da parábola, em que o problema envolvia pai e filho na divisão de bens, a mediação caberia ao representante legal do patriarca — pela lei, o filho mais velho.
Este, contudo, percebendo que poderia se beneficiar daquela discórdia, prefere se omitir, deixando entrever sua verdadeira personalidade.
Retomemos.
O pai então manda trazer para o filho egresso sandálias e um anel, objetos utilizados apenas por membros da família, jamais por empregados, sinalizando que a reconciliação era plena. Ele estava sendo aceito novamente como filho, e não como mero serviçal.
A melhor roupa e o novilho gordo significavam que todos na aldeia estavam convidados para aquela ocasião especialíssima, solucionando o problema entre o pródigo e a comunidade.
Ao perceber que as festividades se deviam ao retorno do irmão mais novo, o mais velho “se enche de ira”, e se recusa a entrar na casa e receber os convidados, como ordenava a tradição.
“Então o pai saiu e insistiu com ele”.
Nesse instante, o filho enfurecido altera o tom de voz e sequer o reconhece como pai — “olha!” é o tratamento que ele usa. Como não bastasse, em tom de desprezo, refere-se ao próprio irmão como “este teu filho”.
Considerando tratar-se do futuro patriarca, de quem se espera uma postura de liderança e justiça, aquelas eram faltas tão graves quanto o pedido de antecipação de herança.
Preguiçoso, o filho mais velho se queixa de ter trabalhado muito — nas terras que seriam suas; ingrato, ele reclama não ter recebido sequer um cabrito — que poderia ter tido quando bem entendesse; difamador, ele esbraveja publicamente que o irmão gastara o dinheiro com prostitutas — algo que não se encontra no texto, mas em sua imaginação.
“Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu”. Naquela sociedade, era impensável que um patriarca precisasse se justificar a um filho, sobretudo publicamente, em meio a um desrespeitoso arroubo de fúria.
Novamente por amor, o pai se humilha perante toda a comunidade em atenção ao filho mais velho.
Note que, de acordo com a narrativa, este estava no campo quando percebeu a movimentação. É alegórico o fato de ele não estar em casa. O seu comportamento indica que jamais esteve realmente na “casa do Pai”.
Por várias razões, somos levados a nos deter nos erros do filho pródigo, muito embora ambos os filhos estejam igualmente perdidos em seu egoísmo, cada um à sua maneira. O primeiro, por rejeitar a providência do pai e fragilizar as estruturas mais fundamentais da comunidade; o mais velho, pelo chauvinismo velado e pela postura farisaica.
O Pai, por sua vez, preocupa-se apenas com uma única regra, a do amor. Sem maniqueísmos nem preferências.
Regressemos novamente ao trecho em que o Pai avista o filho que retorna. Naquelas poucas palavras encontra-se uma das mais importantes lições do Cristianismo, tão sutil que quase se perdeu no tempo.
No momento em que o pai corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o, a sabedoria do Cristo está querendo nos mostrar que o restabelecimento dos laços primordiais, a religação, a “religião” entre Deus e os homens é algo direto, imediato, sem interferências de qualquer natureza.
Com sua linguagem alegórica, voltada para homens simples de dois mil anos atrás, o Cristo desconstrói concepções religiosas vigentes até hoje: utilizando-se das próprias Escrituras, Ele indica serem dispensáveis as convenções sociais, os cultos exteriores, os dogmas.
Nada deve ser interpor na relação entre o Pai e seus filhos.
De forma sublime, o Cristo nos mostra que não importa no que você acredita, mas como você vive.
O que “estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado”, em verdade, é o vigor de Seus ensinamentos.