RESUMO
O presente texto tem por objetivo
apresentar uma visão sucinta do conceito de Banalidade do Mal da pensadora Hannah
Arendt, aplicado ao caso investigatório da Comissão Nacional da Verdade que
entrevistou, em depoimento, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado
de chefiar torturas e assassinatos cometidos contra civis brasileiros durante o
período ditatorial do governo militar brasileiro, entre as décadas de 60 e 80.
Além de propor uma leitura comparativa entre o contexto em que Hannah Arendt
criou o termo Banalidade do Mal e o caso Ustra, o texto ampliará tal reflexão
para o fenômeno denominado como “bolsonarismo”, para designar posturas
individuais e coletivas que, através de um projeto político e ideológico, tem
se afirmado no Brasil como expressão de um mal banalizado em discursos e
práticas que relativizam crimes e legitimam ataques sistemáticos a direitos
constitucionalmente garantidos, bem como de desrespeito à questões humanitárias
fundamentais. Mais do que isso, mostrará que a perpetuação de tais práticas e
discursos decorrem de um processo de negação da própria racionalidade, enquanto
condição humana, e ignorância coletiva, o que dificulta o discernimento e julgamento
na compreensão do que é, de fato, bom e mal.
Palavras-chave: Banalidade do Mal; Hannah Arendt;
Caso Ustra; bolsonarismo, Redes sociais.
José Wilson Correa Garcia[1]
Letícia Santiago Farias[2]
1. INTRODUÇÃO
A
vitória de Jair Messias Bolsonaro ao mais alto cargo público brasileiro não
deve ser lida somente como ascensão de um projeto político. Por trás de sua
vitória está, na verdade, a ascensão de pressupostos ideológicos que se
inter-relacionam à interesses econômicos, políticos, bem como a interpretações
jurídicas e morais que parecem inverter o sentido de progresso civilizatório de
uma sociedade constituída com base na garantia de direitos fundamentais,
individuais ou coletivos.
O
Brasil, atualmente, parece viver uma crise de significado e sentido de valores
humanos e democráticos. Grupos minoritários são marginalizados e
criminalizados. O direito fundado na garantia da liberdade é reinterpretado
como se sua única função passasse a ser punitiva e vingativa. Discursos de ódio
racial, de gênero, de nacionalidade, de classe, etc. passaram a se apresentar
como alternativa normal e questionadora à lutas que, historicamente, buscaram
garantir visibilidade e direitos humanos a grupos historicamente minoritários.
Uma “nova” consciência moral mostra a inversão do que até então se conhecia
como “bom” e “mal”. Parece comum a defesa do mal e a condenação do bem. O caso
Ustra é um bom exemplo disso.
O
Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ao ser interrogado em uma audiência da Comissão
da Verdade, chega ao ponto de sugerir que o processo de repressões, torturas e
assassinatos cometidos durante a ditadura militar foi um mal necessário para
conter a onda de insurreição de grupos que resistiam às arbitrariedades do regime
militar brasileiro. Mais do que isso, ele aparenta demostrar uma postura que
ignora o sentido daquilo que se compreende como “bom” e “mal”. Curiosamente,
foi a mesma postura identificada pela pensadora judia Hannah Arendt, ao
acompanhar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, condenado por crimes
contra judeus durante a segunda guerra mundial. Caso que fez a filósofa cunhar
o conceito “Banalidade do Mal”.
Para
Arendt, no contexto social e político em que Eichmann estava inserido, sua
postura de burocrata e simples cumpridor de ordens, parecia que o tornava
incapaz de usar a própria consciência para compreender a extensão da maldade de
seus atos. O mal, perpetuado por suas ações, se banalizou. É possível aplicar a
reflexão filosófica feita por Arendt ao contexto brasileiro? Em que medida, a
mesma postura de banalização do mal pode ser identificada nas ações de figuras
como Carlos Alberto Brilhante Ustra? Mais do que isso, qual a extensão da
“banalidade do mal” presente no fenômeno do “bolsonarismo” e suas expressões
totalitárias?
São
essas questões que orientarão as reflexões aqui feitas, na tentativa de
esclarecer e contribuir para um debate que atente aos apelos que a democracia
brasileira parece fazer ao ambiente acadêmico, também tão marcado por
tentativas de intimidação, repressão e criminalização.
2. A BANALIDADE DO MAL EM HANNA ARENDT E SEU CONTEXTO
O
conceito “Banalidade do Mal” foi cunhado por Hannah Arendt em sua obra de 1963
“Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. A publicação, em
forma de livro, é uma versão estendida da matéria jornalística feita por
ocasião da sua cobertura no julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann,
responsável pela logística de extermínio de milhões de pessoas durante a ascensão
do 3º Reich alemão na Segunda Guerra Mundial.
Na
obra, Arendt começa apresentando um perfil do acusado, sugerindo um
comportamento estranhamente normal (ARENDT, 1999), contradizendo a versão
informal, comum e defendida pela corte de Jerusalém de que, tais crimes contra
a humanidade, só poderiam ser cometidos e consentidos por um monstro psicopata,
demoníaco e antissemita que personificasse o mal em si próprio. Arendt, curiosamente,
o identifica como uma pessoa assustadoramente comum, um burocrata, um “cidadão
de bem”, mas também uma pessoa medíocre que tinha a função de apenas cumprir as
ordens recebidas, renunciado a pensar nas consequências que seus atos poderiam
ter. A ausência de juízo crítico e reflexivo na figura de Eichmann foi a chave
de leitura utilizada por Arendt para cunhar o conceito de “Banalidade do Mal”,
uma vez que, perguntando-se sobre a natureza da relação entre a atividade
reflexiva e ações malignas “podemos detectar uma das expressões do mal, qual
seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?” (ARENDT, 2008.) A
resposta positiva da pensadora, a partir do caso de Eichmann, sugere uma
característica comum nas sociedades massificadas sobre princípios ideológicos
totalitários. Essas sociedades tendem a alimentar nas multidões o cumprimento
de ordens e ações sem qualquer tipo de questionamento, o que as tornam
incapazes de fazer julgamentos morais. Pessoas normais, “cidadãos de bem” que,
ao não pensarem, perpetuam uma rede de maldade que se espalha, camuflada por
uma impressão de normalidade na sociedade.
Eichmann,
encarna a condição de sujeito que, ao abrir mão de sua condição reflexiva, abre
mão daquilo que o caracteriza, fundamentalmente, como ser humano. Ele
representa a condição de toda pessoa que, inserida em um sistema de relações
ideológicas e sociais totalitárias, se desumaniza. Nesse sentido, é
interessante salientar que o sistema perpetuado pelo nazi-fascismo não
desumanizou somente as vítimas, mas também os algozes que contribuíram com tal
sistema, direta ou indiretamente, para a legitimação da desumanização através
da perpetuação de um mal banal.
3. A BANALIDADE DO MAL NO CASO USTRA E NO BOLSONARISMO
No Brasil, pode-se atualizar a questão
do mal banalizado por um sistema que o legitime, tomando como exemplo o
depoimento realizado em audiência na Comissão Nacional da Verdade do coronel do
exército brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do Destacamento de
Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
órgão subordinado à presidência da república no regime militar de 64,
responsável pela repressão política e ideológica, usando para tal fim
estratégias que violaram os direitos humanos: torturas e assassinatos de
cidadãos e civis brasileiros considerados “subversivos” por questionarem o
sistema político vigente.
O relato do depoimento de Ustra à
Comissão Nacional da Verdade, diante dos casos e evidências de violação de direitos
humanos cometidos pelo órgão que chefiava, revela três características que vale
a pena considerar para o objetivo deste artigo. Primeiro, Ustra a todo instante
nega a sua responsabilidade por aquilo que o acusam. Segundo, ele sempre estereotipa
de “terroristas”, “comunistas”, etc. cidadãos e movimentos que lutavam por
direitos civis e sociais, muitas vezes através do também direito à insurreição.
Terceiro, ele usa como estratégia, transferir a responsabilidade, uma vez que
sua função era apenas cumprir ordens de seus superiores. “Portanto, quem deve
estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem deve estar é o
Exército Brasileiro. [...] que assumiu por ordem do presidente da República a
ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens”.
(VERDADE, 2013)
As
narrativas presentes no discurso do depoimento em questão sustentam a tese de
“normalidade” que esconde um mal banalizado, porque parece relativizado nas
obrigações legais e burocráticas de quem o comete por ignorância. Como
Eichmann, Ustra revela uma atitude de assustadora normalidade diante das
consequências de atos malignos perpetuados por um sistema através do qual ele
mesmo era parte significativa. Tais discursos e narrativas não são,
necessariamente, monopólio de uma só pessoa. A tendência a igualar o exercício
da violência ao mero cumprimento de atividades burocráticas, revela que a
banalização do mal, seja no caso da Alemanha nazista ou do Brasil ditatorial, parece
separar os valores éticos individuais do comportamento duvidoso assumido por um
grupo ou sistema que perpetua esse mal. Por isso, segundo Hannah Arendt, o
maior mal do mundo é aquele cometido por ninguém, ou seja, quando ninguém
acredita estar fazendo o mal é, talvez de fato, quando o maior mal aconteça. É
o que parece revelar exatamente o fenômeno do bolsonarismo no Brasil.
O
fenômeno do bolsonarismo, na verdade, se situa na própria fragilidade histórica
da democracia brasileira. Diferentemente da Alemanha, que faz uma memória
constante dos males advindos do nazismo, o Brasil parece esquecer da opressão
sofrida durante a ditadura de 64, chegando ao ponto de pequenos grupos se
organizarem em passeatas pedindo o retorno do regime. De uma forma geral, os
brasileiros sempre se acostumaram a conviver com influências conservadoras e
autoritárias. Depois da redemocratização, sucedeu-se um curto período de
aparente autonomia democrática. Porém, com a fragilidade institucional e
política desta autonomia, somada ao clima de desesperança generalizada, em
meados de 2013, o conservadorismo e autoritarismo se reorganizou,
principalmente, em torno de figuras como o então deputado Jair Bolsonaro.
Porém, “o bolsonarismo é um fenômeno muito maior do que ele, no sentido de que
a figura dele entrou em vários vácuos da sociedade brasileira e, como todo
autoritarismo, conseguiu preencher vários buracos e frustrações”. (MENDES,
2018) O discurso autoritário e fascista é alimentado e assimilado através de
narrativas ideologicamente construídas, principalmente, no ambiente relativamente
livre das redes sociais.
Evidentemente, assim como todo movimento
precisa de uma base social para se afirmar e se fortalecer, no caso do
bolsonarismo, essa base social se revelou “imensa, cujos preconceitos já
existiam, decantados, como a lama do fundo do poço da cultura patriarcal, mas
que nunca tiveram – pelo menos na escala atual – expressão política”. (FRANCO,
2018) Somada a tais bases e manifestações, acrescentou-se narrativas
preconceituosas avessas aos Direitos Humanos, às minorias, à diversidade de
costumes e modos de vida. O caráter (pseudo)intelectual do bolsonarismo foi
acrescentado pelo discurso neo-macarthista, que encontrou na força de teorias
conspiratórias a base de criminalização intelectual a qualquer tendência
progressista.
Nesse conjunto ideológico, social,
político e pseudo-intelectual, forma-se o bolsonarismo, através da comunicação
maciça de respostas prontas, memes, falsas
alegações, chavões, piadas, xingamentos e expressões que objetivam
desqualificar quem pensa diferente. No terreno da ignorância do bolsonarismo é
plantado o mal banalizado.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As redes sociais se tornaram a grande
sombra que parece esconder o mal presente em discursos e práticas do
bolsonarismo. A criminalização de seres humanos, os discursos que tendem a esconder
posturas xenofóbicas, machistas, sexistas, homofóbicas, racistas, etc. são
cometidos por pessoas assustadoramente normais, que se recusaram a serem
humanas, pois se recusam a pensar por si próprias ao seguir, cegamente, as
regras e os discursos de outros. Não é de se admirar o crescimento do
bolsonarismo exatamente nos lugares em que a sombra que esconde o mal parece
ser afirmada, ou seja, nas redes sociais.
As
notícias, informações e perfis falsos são um sintoma real do mal banalizado
nesse ambiente virtual de sombras. Hoje, é fácil disseminar o mal apenas com
uma atividade de apertar um botão, assumindo determinados comportamentos sem ao
menos adotar uma postura de questionamento moral sobre as consequências de tais
ações. É exatamente isso que o bolsonarismo faz. Quando se observa a quantidade
de absurdos afirmados todas as vezes que o atual presidente Jair Bolsonaro
fala, e a quantidade de pessoas que consideram tais narrativas como se fossem
aparentemente normais, se chega à conclusão de que o mal está escondido na
ignorância, na incapacidade de pensar por si, na supressão da própria
racionalidade como condição para se afirmar como verdadeiramente humanos.
Até que ponto o bolsonarismo sustenta
padrões éticos e morais deploráveis, simplesmente por não induzir as pessoas a
analisar as consequências de seus próprios atos? Não é estranho perceber como o
bolsonarismo vê a educação crítica como inimiga de seus preconceitos. Em uma
sociedade onde o mal é banalizado pelas sombras da ignorância, pensar
criticamente se torna uma exceção.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT,
Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato
sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999;
________, Hannah. Compreender: formação, exílio e
totalitarismo. Belo Horizonte (BH): Companhia das Letras/Editora
UFMG; 2008;
FRANCO, Augusto de. Há um fenômeno social, ainda inexplicado,
na ascensão do bolsonarismo. Disponível em: http://dagobah.com.br/ha-um-fenomeno-social-ainda-inexplicado-na-ascensao-do-bolsonarismo/ Acesso
em 06 de Setembro de 2019.
MENDES, Vinícius. O “bolsonarismo” é maior do que Bolsonaro,
diz antropóloga. Entrevista. Disponível em: https://calle2.com/o-bolsonarismo-e-maior-do-que-bolsonaro-diz-especialista/ Acesso
em 06 de Setembro de 2019.
VERDADE, Comissão Nacional da
verdade. Depoimento do Coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, 2013. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo15/Nota%2039%20-%2000092.000666_2013-17.pdf Acesso
em: 05 de Setembro de 2019.
[1] Graduado
em Filosofia, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); Graduando em
Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – email:
josewilsongp@gmail.com
[2] Graduanda
em Direito, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) – email: le-santiago@outlook.com