Na tradição
Judaico-Cristã as cinzas se tratam de um símbolo de conversão. Há muitas narrativas bíblicas, principalmente do Antigo Testamento, que mostram as cinzas sendo
usadas sobre a cabeça e/ou corpo em sinal e gesto de arrependimento. Na idade
média, quando uma pessoa se aproximava do momento da morte, colocavam-na no
chão deitada em cima de um saco com cinzas. O sacerdote ministrava o ritual,
com água benta, proferindo as seguintes palavras: Lembra-te que és do pó e para
o pó voltarás.
Segundo o
calendário litúrgico cristão, na quarta feira de cinzas, após o carnaval,
celebra-se esse mesmo gesto das cinzas, onde o ministro impõe sobre a cabeça dos
fiéis um pouco de cinzas dizendo: Convertei-vos e credes no evangelho. Longe de
ser um gesto de afirmação da morte a Quarta Feira de Cinzas, que antecede os
40 dias da quaresma, celebra o anúncio de uma experiência muito mais
fundamental para a fé Crista: a ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição.
As cinzas, nesse sentido, se tornam o recordar de nossa finitude humana que,
pela fé, é transfigurada na eternidade através da ressurreição. Ela nos coloca
diante de nossa condição primordial terrena e divina, somos feitos de pó, mas
também de céu...
Muitos povos,
culturas e tradições humanas têm como orientação definitiva de sua experiência
espiritual e teológica a ressurreição. O ser humano parece que nunca se
contentou em considerar a morte como a última instância, a última palavra. O
caminho da experiência humana não pode terminar com a morte... ou não seria tão
perfeita assim a força criadora a qual se crê. Por isso, muitas dessas
culturas criaram símbolos, mitologias ou teologias para tentar se aproximar
desse profundo mistério que acompanha o ser humano desde que ele existe
enquanto tal...
Na mitologia
grega, por exemplo, Fênix (ϕοῖνιξ) é um pássaro que entrava em autocombustão ao terminar seu longo ciclo de vida. Do
meio das cinzas que sobravam do seu ritual aparentemente suicida, o pássaro revivia
- criança - para um novo ciclo de vida. De fato, para os gregos a essência do
ser humano é a Alma. O corpo, por outro lado, como sugere o filósofo Sócrates/Platão,
é uma espécie de prisão da alma. Portanto, a ressurreição, para os gregos, era
uma experiência fundamentalmente da Alma. O corpo se torna pó e cinza, mas a
alma continua. A fênix, apesar de ter
morrido para seu antigo corpo, continua fênix,
e renasce com um novo corpo.
O Cristianismo
é mais radical quando se trata de ressurreição. Para o cristão a ressurreição
não é uma experiência de separação entre Corpo e da Alma. O ser humano, segundo
a teologia cristã, é uma unidade indivisível. Portanto, sua ressurreição é a
transformação de sua totalidade e de sua unidade, formada por seu corpo e pela sua
alma, inseparavelmente. A experiência humana mostra que quando se tenta separar
uma coisa da outra, geralmente, se atribui um valor maior a uma delas enquanto
se esvazia a importância da outra. A proposta da ressurreição cristã é profundamente
humana porque valoriza o corpo e a alma, junta e inseparavelmente. O ser humano
ressuscita por inteiro, corpo e alma. Mas isso nem sempre foi tão claro entre as
correntes espiritualistas e teológicas no interior da cultura cristã. Também, foi motivo de escândalo para algumas culturas, como é o caso da cultura
grega. Um ótimo exemplo é o belíssimo texto do livro dos Atos dos Apóstolos (At
17, 16-34), que narra o apóstolo Paulo pregando entre os Gregos de Atenas. No texto,
em um primeiro momento, Paulo consegue uma boa aceitação, mas quando toca no
assunto da ressurreição da carne, ao anunciar a experiência de Jesus e também
de cada pessoa que nele crer, os Gregos desacreditaram, não entrava na cabeça
deles. Por isso Paulo afirma que a ressurreição é escândalo.
E de fato é
escândalo, sim. Como qualquer experiência espiritual, a ressurreição só é
possível de ser experimentada e entendida absolutamente a partir da fé. Por
isso, sabiamente, a liturgia cristã nos apresenta as cinzas. Ela é o sinal de
que somos da mesma matéria do universo, mas também potencialmente divinizados
pela ressurreição de Jesus como garantia da nossa ressurreição. Só que, para
isso, é preciso uma vida de conversão. Etimologicamente, conversão é a
transformação de uma coisa em outra. E isso já nos esclareceria tudo...
José Wilson Correa Garcia