Como as redes sociais ajudaram a forjar uma nova geração de conservadores no Brasil do século XXI
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Por Murilo Cleto - in: REVISTA FÓRUM
Logo após a contratação de Kim Kataguiri para assinar uma coluna semanal na versão online da Folha de S. Paulo,
Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto, recuperou a memória de Plínio de Arruda Sampaio para
relativizar a ideia comum de que velhice e juventude são sinônimos
absolutos de conservadorismo e progressismo, respectivamente. “Ficar
velho não é virar velhaco”, disse o saudoso representante do Partido
Socialismo e Liberdade certa feita no auge das sete décadas de vida
militante.
Boulos
tem razão. Mas não é exatamente uma inverdade que a juventude mantenha
uma relação histórica com a mudança. É o que o século XX ensinou através
dos diversos movimentos sociais, sobretudo nos anos 60, que puseram
abaixo segregações naturalizadas e legalmente amparadas em todo o
Ocidente. E não foi diferente no lado leste do Muro de Berlim.
Parte
desta realidade foi possível também porque somente a partir do século
XIX a juventude passou a ser compreendida como uma fase distinta da
adulta e que, como a psicologia ajudou a explicar, tende a flertar com a
contestação de valores arraigados. Normalmente é ali que a rigidez das
regras entra em conflito com o potencial subversivo, que, alimentado
pela explosão de hormônios, acaba por pressioná-la ao menos para sua
dilatação.
Não
surpreende que movimentos estudantis, por exemplo, estejam
historicamente vinculados a ideais de esquerda. Forjados em períodos de
grande repressão, como no Brasil do regime militar, tinham na direita
autoritária um alvo comum de fácil identificação.
Mas o
quadro da América do Sul virou no limiar do século XXI, logo após um
período de consolidação do neoliberalismo. Com a ascensão de governos de
esquerda e centro-esquerda, o Estado voltou a ser protagonista nas
políticas econômicas de diversos países e o discurso anti-globalização e
privatizações tornou-se a regra do bloco. E tudo isso com um novo
componente: as redes sociais.
Desde o
início deste processo, ganharam popularidade, na América do Sul, redes
que hoje dão boa parte do tom na percepção que os cidadãos têm de seus
governos. Também não é novidade alguma que é a juventude, por sua vez,
que pauta o seu conteúdo, seja ele fundamentalmente político ou não.
Esta combinação contribuiu significativamente para que o ímpeto
contestatório jovem tenha passado a se identificar também com a direita.
E este
não é fundamentalmente um problema. Um dos desdobramentos da democracia é
justamente a pluralidade – e, na sua esteira, posições que estejam
alinhadas à esquerda ou à direita. A questão é que os Direitos Humanos,
pauta que nasceu liberal e dava indícios de que se tornaria universal,
acabaram sendo empurrados para a esquerda e, no Brasil, se tornaram
sinônimo do desvirtuamento de valores morais consagrados – vide a
recorrente simplificação que o reduz à defesa da criminalidade. Neste
sentido, parte substancial da direita liberal passou a flertar com
bandeiras conservadoras, diante do avanço das políticas de afeto no
continente. Foi neste período que homossexuais conquistaram o direito de
se casar e mulheres e negros obtiveram cotas na Universidade e no
serviço público, além de leis específicas que tipificaram a violência
qualificada.
No
Brasil, as siglas de direita moderada que até então estavam ocupadas com
políticas econômicas passaram também a se organizar em torno de muitas
dessas políticas de afeto, mas do outro lado.
O
DEM chegou a ajuizar uma ação de inconstitucionalidade no STF para
barrar as cotas. O PSDB fechou posição em favor da proposta de redução
da maioridade penal. E não é de hoje que o seu eleitorado tem reagido
com estridência a políticas afirmativas de qualquer natureza.
Neste
sentido, as redes sociais caíram como uma luva. Com a sensação de que a
internet é um território livre da interferência do Estado – este
alinhavado com a esquerda –, boa parte da juventude passou a concentrar
nela a sua indignação, que ali ganhou forma. E também no campo dos
valores, como nos movimentos contraculturais novecentistas, mas em favor
da velha ordem. Quer dizer, não mais pela liberação, mas pela contenção
sexual; não mais pela afirmação de minorias historicamente segregadas,
mas pela manutenção da lógica meritocrática. Tudo isso em nome de um
pensamento que se vende como crítico, como o da igualdade perante a lei
sob a roupagem do combate às injustiças, mas que representa simplesmente
a preservação de velhos valores morais. No Brasil, mesmo a defesa do
Estado mínimo tem sido mais acompanhada deles do que de propostas
efetivas para o aprimoramento do uso da máquina pública.
Há
atualmente, no país, páginas especializadas em conquistar o público
jovem com recursos de desqualificação de personagens da esquerda dita
progressista. Bolsonaro Zuero 3.0 tem quase meio milhão de assinantes. Em diversas delas, vídeos no formato Turn Down For What
têm sido utilizados para simular nocautes através de argumentos
definitivos que apontam incoerência no discurso adversário. Nas eleições
de 2014, eram comuns montagens que exibiam Aécio Neves batendo,
literalmente, em Dilma Rousseff e Luciana Genro. Em todas elas os óculos
escuros característicos da plataforma o revestem de uma autoridade
conquistada no grito. (O recurso funciona tão bem que páginas de
conteúdo progressista e mesmo governista também têm tentando
reproduzi-lo.)
Kim
Kataguiri e o Movimento Brasil Livre também são resultado disso. O grupo
explora como poucos a crescente sensação de que veículos tradicionais
de comunicação estão a serviço do governo, mesmo aqueles que o desgastam
cotidianamente. E, desta forma, preenche parte deste potencial de
contestação que a juventude carrega consigo, fornecendo respostas
fáceis, com direito a teorias conspiratórias de toda ordem, que vão do
projeto comuno-bolivariano petista de dominação do país ao da ditadura
gay.
Isso não
significa, evidentemente, que a juventude no Brasil tenha se tornado
reacionária. E os movimentos de ocupação de escolas em São Paulo e Goiás
não são a única prova disso. Significa, no entanto, que tem ganhado
destaque, corpo e adeptos uma juventude identificada com o pensamento
conservador como não se viu em outros momentos da história.
Há quem
insista que a melhor resposta ao espaço que Kataguiri tem ocupado na
mídia é o boicote. Não parece ser minimamente possível encontrar algo
para se aproveitar no seu discurso, mesmo para contestar. E a sentença
faz todo o sentido. Mas compreender o seu papel na internet e no debate
público nacional é também descobrir muito do Brasil de hoje. E, por mais
difícil que seja admitir, essa é uma realidade flagrante. Resta saber
se haverá estômago.