sábado, 30 de janeiro de 2016

Juventude Reacionária

Como as redes sociais ajudaram a forjar uma nova geração de conservadores no Brasil do século XXI

Por Murilo Cleto - in: REVISTA FÓRUM


Logo após a contratação de Kim Kataguiri para assinar uma coluna semanal na versão online da Folha de S. Paulo, Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, recuperou a memória de Plínio de Arruda Sampaio para relativizar a ideia comum de que velhice e juventude são sinônimos absolutos de conservadorismo e progressismo, respectivamente. “Ficar velho não é virar velhaco”, disse o saudoso representante do Partido Socialismo e Liberdade certa feita no auge das sete décadas de vida militante.
 
Boulos tem razão. Mas não é exatamente uma inverdade que a juventude mantenha uma relação histórica com a mudança. É o que o século XX ensinou através dos diversos movimentos sociais, sobretudo nos anos 60, que puseram abaixo segregações naturalizadas e legalmente amparadas em todo o Ocidente. E não foi diferente no lado leste do Muro de Berlim.

Parte desta realidade foi possível também porque somente a partir do século XIX a juventude passou a ser compreendida como uma fase distinta da adulta e que, como a psicologia ajudou a explicar, tende a flertar com a contestação de valores arraigados. Normalmente é ali que a rigidez das regras entra em conflito com o potencial subversivo, que, alimentado pela explosão de hormônios, acaba por pressioná-la ao menos para sua dilatação.

Não surpreende que movimentos estudantis, por exemplo, estejam historicamente vinculados a ideais de esquerda. Forjados em períodos de grande repressão, como no Brasil do regime militar, tinham na direita autoritária um alvo comum de fácil identificação.

Mas o quadro da América do Sul virou no limiar do século XXI, logo após um período de consolidação do neoliberalismo. Com a ascensão de governos de esquerda e centro-esquerda, o Estado voltou a ser protagonista nas políticas econômicas de diversos países e o discurso anti-globalização e privatizações tornou-se a regra do bloco. E tudo isso com um novo componente: as redes sociais.

Desde o início deste processo, ganharam popularidade, na América do Sul, redes que hoje dão boa parte do tom na percepção que os cidadãos têm de seus governos. Também não é novidade alguma que é a juventude, por sua vez, que pauta o seu conteúdo, seja ele fundamentalmente político ou não. Esta combinação contribuiu significativamente para que o ímpeto contestatório jovem tenha passado a se identificar também com a direita.

E este não é fundamentalmente um problema. Um dos desdobramentos da democracia é justamente a pluralidade – e, na sua esteira, posições que estejam alinhadas à esquerda ou à direita. A questão é que os Direitos Humanos, pauta que nasceu liberal e dava indícios de que se tornaria universal, acabaram sendo empurrados para a esquerda e, no Brasil, se tornaram sinônimo do desvirtuamento de valores morais consagrados – vide a recorrente simplificação que o reduz à defesa da criminalidade. Neste sentido, parte substancial da direita liberal passou a flertar com bandeiras conservadoras, diante do avanço das políticas de afeto no continente. Foi neste período que homossexuais conquistaram o direito de se casar e mulheres e negros obtiveram cotas na Universidade e no serviço público, além de leis específicas que tipificaram a violência qualificada.

No Brasil, as siglas de direita moderada que até então estavam ocupadas com políticas econômicas passaram também a se organizar em torno de muitas dessas políticas de afeto, mas do outro lado. 

O DEM chegou a ajuizar uma ação de inconstitucionalidade no STF para barrar as cotas. O PSDB fechou posição em favor da proposta de redução da maioridade penal. E não é de hoje que o seu eleitorado tem reagido com estridência a políticas afirmativas de qualquer natureza.

Neste sentido, as redes sociais caíram como uma luva. Com a sensação de que a internet é um território livre da interferência do Estado – este alinhavado com a esquerda –, boa parte da juventude passou a concentrar nela a sua indignação, que ali ganhou forma. E também no campo dos valores, como nos movimentos contraculturais novecentistas, mas em favor da velha ordem. Quer dizer, não mais pela liberação, mas pela contenção sexual; não mais pela afirmação de minorias historicamente segregadas, mas pela manutenção da lógica meritocrática. Tudo isso em nome de um pensamento que se vende como crítico, como o da igualdade perante a lei sob a roupagem do combate às injustiças, mas que representa simplesmente a preservação de velhos valores morais. No Brasil, mesmo a defesa do Estado mínimo tem sido mais acompanhada deles do que de propostas efetivas para o aprimoramento do uso da máquina pública.

Há atualmente, no país, páginas especializadas em conquistar o público jovem com recursos de desqualificação de personagens da esquerda dita progressista. Bolsonaro Zuero 3.0 tem quase meio milhão de assinantes. Em diversas delas, vídeos no formato Turn Down For What têm sido utilizados para simular nocautes através de argumentos definitivos que apontam incoerência no discurso adversário. Nas eleições de 2014, eram comuns montagens que exibiam Aécio Neves batendo, literalmente, em Dilma Rousseff e Luciana Genro. Em todas elas os óculos escuros característicos da plataforma o revestem de uma autoridade conquistada no grito. (O recurso funciona tão bem que páginas de conteúdo progressista e mesmo governista também têm tentando reproduzi-lo.)

Kim Kataguiri e o Movimento Brasil Livre também são resultado disso. O grupo explora como poucos a crescente sensação de que veículos tradicionais de comunicação estão a serviço do governo, mesmo aqueles que o desgastam cotidianamente. E, desta forma, preenche parte deste potencial de contestação que a juventude carrega consigo, fornecendo respostas fáceis, com direito a teorias conspiratórias de toda ordem, que vão do projeto comuno-bolivariano petista de dominação do país ao da ditadura gay.

Isso não significa, evidentemente, que a juventude no Brasil tenha se tornado reacionária. E os movimentos de ocupação de escolas em São Paulo e Goiás não são a única prova disso. Significa, no entanto, que tem ganhado destaque, corpo e adeptos uma juventude identificada com o pensamento conservador como não se viu em outros momentos da história.

Há quem insista que a melhor resposta ao espaço que Kataguiri tem ocupado na mídia é o boicote. Não parece ser minimamente possível encontrar algo para se aproveitar no seu discurso, mesmo para contestar. E a sentença faz todo o sentido. Mas compreender o seu papel na internet e no debate público nacional é também descobrir muito do Brasil de hoje. E, por mais difícil que seja admitir, essa é uma realidade flagrante. Resta saber se haverá estômago.












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domingo, 17 de janeiro de 2016

A MORTE SEGUNDO MEUS SOBRINHOS

A perda do meu irmão Alexandre foi uma das experiências mais difíceis que eu já vivi. Não só eu, mas a família de uma forma geral. Não estávamos preparados para ela. Na verdade, nunca se está.

Os dias que passamos juntos foram intensos, envoltos em muitos sentimentos, questionamentos, silêncios. Entre nós, cada um a seu tempo e da sua maneira, a dor era vivida, experimentada e externada. Mas ficava observando meus sobrinhos e notava que, neles, era diferente...

A criança parece ter uma experiência completamente diferente de nós adultos da morte. Eles sentem, mas não entendem. Pelo menos não da forma como nós entendemos.
 
No dia seguinte ao enterro de Alexandre, saí com João Pedro pra frente da praia. Saí com medo, porque tinha certeza que ele falaria do pai e eu não teria força ou coragem pra responder. Ele já tinha começado a entender que algo tinha acontecido com o pai que machucava todo mundo, por isso não falava. Mas comigo ele falava, talvez pela aparência, não sei... Não deu outra. No meu colo sussurrou quase como um segredo sagrado: "Papai tá vindo?". Abracei ele forte, solucei... Depois de um tempo eu disse que o papai dele tinha ido morar com Papai do céu. Não sei se foi a melhor resposta, mas foi a que saiu do coração. Ele com uma certeza dolorosamente ingênua, termina: "papai tá trabalhando!". Me calei...

No coração de uma criança a morte não existe da forma como existe pra nós. Porque para eles a pessoa continua viva, mesmo que não fisicamente presente porque está distante, fazendo as coisas que sempre fez... Para eles a morte não é perda.

Algum tempo depois Pedro Henrique, meu sobrinho mais velho, compartilhava conosco que tinha sonhado com o tio. No sonho, experimentava a naturalidade das coisas que Alexandre sempre fez com ele. No sonho, saíram pra passear de barco, jogaram vídeo game, essas coisas simples da vida. Na volta pra casa, se despediram, o tio andando sobre a água (porque essas coisas são possíveis nos sonhos), Pedro perguntou se ele ia ficar bem. A resposta foi um sorriso afirmativo.

Curiosamente, também sonhei com ele. Não costumo sonhar com pessoas que já faleceram, mas com meu irmão foi um sonho diferente, porque foi um sonho de paz, tão real para o coração quanto para meus sobrinhos! Estava no quarto de mamãe, senti ele do meu lado, a gente conversava, aquelas coisas que só o coração sabe. Mamãe apareceu na porta, eu me calei, não queria machucá-la porque sabia que só eu estava vendo ele. Mesmo assim, acariciei seu braço e, no final, perguntei se ele estava bem. A resposta foi, também, um sorriso afirmativo.

Foi um sonho de criança. Um beijo consolado de esperança. Uma certeza estranha de que, mesmo com a morte, há vida. Meus sobrinhos sabem disso, porque vivem isso. Para eles o tio, de alguma forma, continua vivo, na memória do presente que só um coração de criança é capaz de viver plenamente. Hoje, depois de dois meses, a saudade do meu irmão é ainda vivida como perda, mesmo contra toda certeza que a fé me dá. Queria continuar sonhando com ele, mas os sonhos nem sempre acontecem da forma como desejamos. Por isso, tenho meus sobrinhos pra me recordar que a morte é uma parte estranha da vida, feita de memórias vivas de quem amamos...
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